quarta-feira, 10 de julho de 2019

Pensamento do Dia


Fios desencapados

A imagem que tinha na cabeça quando comecei a escrever este artigo estava mais para cabos elétricos soltos do que fios desencapados, mas o efeito visual é mais ou menos o mesmo. Pensava em postes elétricos caídos e aqueles cabos chamuscando e soltando fagulhas, perigo para qualquer um que passe perto. Fios desencapados servem ao mesmo propósito de visualizar perigos aos quais somos expostos todos os dias e à necessidade de conter os danos desses fios desarmando-os e refutando argumentos estapafúrdios.

Não falo sobre os terraplanistas, pois esses já se tornaram folclóricos de tão primitivos que são. Falo dos outros. Falo do susto brutal de aprender repentinamente que, no Brasil, parte da elite não sabe o que é trabalho infantil, ou finge que não sabe para proteger o presidente da República da repercussão de seus tuítes. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define o trabalho infantil assim: “Nem todo o trabalho exercido por crianças ou adolescentes deve ser classificado como trabalho infantil. A participação de crianças e adolescentes em atividades que não afetem sua saúde ou desenvolvimento e não interfiram nas atividades escolares é geralmente vista como positiva”. Isso inclui atividades como ajudar os pais nas tarefas de casa, nos negócios da família, ou algo que possibilite ganhar um dinheirinho extra durante as férias escolares ou feriados.

O termo “trabalho infantil se refere a atividades que privem as crianças de sua infância, de seu potencial, de sua dignidade, e que possam ser prejudiciais ao seu desenvolvimento físico e mental”. Portanto, a parlamentar que vendia brigadeiros na escola para pagar as aulas de tênis “sem precisar”, a jornalista que trabalhava no armazém do pai, ou o juiz que aos 12 anos foi trabalhar numa pequena loja da família não foram vítimas de trabalho infantil. Assim como não foram vítimas de trabalho infantil as centenas de pessoas que tuitaram suas experiências a pedido do filho deputado do presidente.


Vítima de trabalho infantil é a meninada que vende bala nos semáforos das cidades brasileiras, que cata lata nos litorais do nosso País, que corta cana debaixo de sol escaldante. Vítima de trabalho infantil são as 2,4 milhões de crianças exploradas País afora, segundo os mais recentes dados da OIT. Cabe lembrar, tuítes à parte, que o Estado brasileiro se comprometeu a erradicar a violação de direitos da criança e do adolescente por meio da exploração laboral até 2025 – faltam menos de 6 anos para terminar o prazo.

Nesses tempos de fios desencapados, em que as descargas elétricas parecem provocar convulsões intelectuais em quem deveria ter preparo suficiente para separar os mais abjetos absurdos da mera ignorância, está difícil usar valores morais para convencer as pessoas dos malefícios de certos argumentos. Valores morais universais foram atropelados pela ideologia e, nesse momento, estrebucham nos grupos de família de WhatsApp, nas redes sociais, na briga constante como forma de “diálogo”. Nesse ambiente, a única forma de trazer alguma racionalidade para a discussão é colocá-la de forma fria, deixando de lado – pasmem – a moralidade.

De forma fria, a literatura mostra que o trabalho infantil prejudica o crescimento econômico, ainda que possa auxiliar algumas famílias miseráveis no curto prazo – e mesmo essa premissa é questionável diante dos dados. Ao competir com a educação, o trabalho infantil impede que as crianças cresçam para se tornarem adultos com mais escolaridade, e, portanto, mais produtivos e com maiores chances de obter empregos que ofereçam salários melhores do que a renda de seus pais. Ficam essas crianças, quando adultas, presas em ciclo de pobreza quase perpétuo, o que pode aumentar o grau de desigualdade de renda de um país, para não falar da falta de acesso a qualquer outra oportunidade que favoreça o desenvolvimento econômico. Países que utilizam trabalho infantil geram desincentivos ao investimento e ao aprimoramento produtivo, já que há um recurso barato em abundância – as crianças.

Cabe a todos aqueles com espaço nos jornais o esforço de encapar fios constantemente para que a ignomínia não resulte na regressão autodestrutiva.

Vantagens

Alguns velhinhos se dizem mais felizes no asilo do que eram em casa. Têm com quem conversar, jogam dominó, as refeições são servidas sem um minuto de atraso, às vezes há até sobremesa e, em ocasiões especiais, o piano é aberto e uma irmã de caridade toca hinos religiosos. Há uma biblioteca, em que se podem encontrar biografias de santos, e um jardim muito bonito. Médicos e dentistas voluntários fazem visitas regulares e até uma psicóloga recém-formada de vez em quando vai conversar com algum velhinho que pareça deprimido. Um deles conseguiu cortar os pulsos na semana passada, mas ninguém até agora estranhou sua ausência. Os velhinhos não foram abandonados só pelas famílias, mas também pela memória.

O presidente e a cultura

Quando um jornalista lhe pediu uma declaração sobre a morte de João Gilberto, o presidente Bolsonarao limitou-se a dizer em meio à comoção geral: “Ele era uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá ok?” E só. Os mais importantes jornais estrangeiros já tinham noticiado com destaque e pesar o falecimento do artista, classificando-o não como uma “pessoa conhecida”, mas como o reconhecido gênio que levou o mundo a aplaudir a bossa nova e fez de sua voz, quase um murmúrio, um som universal.

É estranho, porque Bolsonaro não faz economia de palavras quando não deve. É o rei da gafe e da inconveniência. Uma vez escrevi que ele sofria de incontinência verbal, e isso provocou reclamações. Não é implicância. Se ele conseguisse ficar sem opinar por algum tempo, esse silêncio obsequioso lhe faria muito bem, e ao governo também.


O Google está aí para provar, com o registro de centenas de frases polêmicas. Há suas famosas afirmações homofóbicas (“Seria incapaz de amar um filho homossexual”), contra a mulher (“Ela é muito ruim, feia, jamais a estupraria”), racistas (“Quilombolas não fazem nada. Nem para procriador servem mais”), a favor da violência (“Vamos fuzilar a petralhada toda aqui do Acre”, “O erro da ditadura foi torturar e não matar”) e muitas outras que não cabem neste espaço.

Quando se cala em relação às conquistas do cinema brasileiro em Cannes e de Chico Buarque com o Prêmio Camões ou, como agora, em que se refere ao genial intérprete de “Chega de saudade” sem um elogio, sem uma homenagem, sem luto oficial, trata-se de um recado implícito: a cultura é para ele um prato indigesto.

O seu último palpite infeliz foi a defesa do trabalho infantil: “Trabalhei desde os 8 anos de idade plantando milho, colhendo banana, com caixa de banana nas costas com 10 anos de idade e estudava. E hoje sou quem sou. O trabalho dignifica o homem, a mulher, não importa a idade”.

A versão de seu irmão Renato é outra: “Meu pai (…) nunca deixou um filho trabalhar, porque achava que filho tinha que estudar”.

Sem comentários. 

Que Estado queremos?

Há quase 30 anos o Congresso debate a necessidade de mudanças no sistema tributário. No mesmo período, especialistas avisam que, sem reforma, empresas brasileiras - e as estrangeiras que produzem aqui - jamais conseguirão competir no mercado internacional. Governadores alegam que, se a reforma acabar com a possibilidade de os Estados concederem incentivos para atrair investimento produtivo, a desigualdade entre os entes mais ricos da Federação, como São Paulo, e os mais pobres, como Alagoas e Maranhão, vai aumentar. Empresários se queixam há décadas da carga e da complexidade que dificulta e encarece o que deveria ser simples - o pagamento de tributos. A indústria reclama do fato de pagar mais impostos, mesmo sabendo-se que sua participação no PIB encolheu de forma significativa nas últimas três décadas.

Se ninguém está satisfeito com o sistema tributário, por que todas as tentativas de reformá-lo fracassaram? A última reforma foi realizada em 1988, durante a elaboração da Constituição. O texto não agradou, tanto que, três anos depois, o governo Collor começou a discutir mudanças. Outras propostas foram debatidas nas gestões de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), Lula (2003-2010), Dilma (2011-2016) e Temer (2016-2018), mas nada andou.

A derradeira tentativa séria ocorreu no segundo mandato de Lula, a partir do trabalho árduo do economista Bernard Appy, que, nos bastidores, foi boicotado por seu chefe - o então ministro da Fazenda, Guido Mantega. Appy especializou-se no tema e formulou proposta que está sendo adotada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), como ponto de partida para uma nova tentativa de reforma.

Maia quer fazer na área tributária o que empreendeu na Previdência: esquecer o governo e construir consenso dentro do Legislativo para votar reformas. É possível que a estratégia funcione porque a iniciativa de mudar o que não está funcionando parte do Congresso, e não do governo federal, parte interessada em modelos tributários que em geral centralizam ainda mais o poder em Brasília. É mais fácil tratar de questões regionais na casa do povo do que nos ministérios.

Durante muito tempo, acreditou-se na seguinte falácia: "só é viável fazer a reforma a partir de diálogo com os Estados, pois isso diminui a resistência das bancadas parlamentares". Ora, convidados para o convescote, secretários estaduais de Fazenda, em sua maioria técnicos bem intencionados, participam por educação ou para tomar nota das maquinações do governo central. Na prática, as propostas "acordadas" entre Ministério da Fazenda e Estados sempre foram bombardeadas pelo Parlamento antes de chegarem a instâncias relevantes da tramitação.

O eterno retorno do tema mostra, uma vez mais, que será debatido sem, antes, a sociedade definir o tamanho do Estado que os tributos vão financiar. Se for aprovada no formato em que saiu da comissão especial da Câmara, a reforma da Previdência será o primeiro passo na redefinição das prioridades do Estado brasileiro. As mudanças reduzirão o subsídio bilionário e injustificável das aposentadorias do funcionalismo federal; instituirá idade mínima num país em que, felizmente, as pessoas estão vivendo mais; promoverá redistribuição de renda e começará a enfrentar realidade inescapável - o fim, muito próximo, do bônus demográfico, isto é, do fato de haver mais brasileiros trabalhando do que aposentados, situação que lança a indagação: se a Previdência já é deficitária com o bônus, como ficará quando este acabar?

O que sabemos do atual regime tributário é mais ou menos isso: é amparado mais em tributos que incidem sobre o faturamento das empresas do que sobre a renda e a propriedade; é regressivo na tributação da renda, uma vez que a classe média e os ricos deduzem da tributação gastos com saúde e educação, o que no fim tira dinheiro da saúde e da educação públicas; taxa muito mais o consumo, fazendo com que os pobres paguem, em proporção da renda, mais imposto que os ricos; promove a exportação de tributos, um anacronismo sem paralelo no planeta; inibe o investimento produtivo e a formação de poupança privada; beneficia, com renúncia neste ano superior a R$ 300 bilhões, setores específicos da sociedade e da economia, sem qualquer avaliação dos resultados efetivos.

Se a reforma tributária voltará ao centro do debate, será útil que os parlamentares se debrucem sobre os gastos federais e a máquina estatal - faz sentido, por exemplo, a União manter seis bancos, além de Petrobras, Eletrobras e a gratuidade do ensino superior? - e, também, sobre o orçamento anual do "gasto tributário", uma forma de eternizar incentivos fiscais que, ao fim e ao cabo, concentram renda e perpetuam a pobreza e a brutal desigualdade de renda. A tabela mostra por setor que os donos do poder, escolhidos em Brasília, não mudam a triste realidade social.

Imagem do Dia

Burano (Itália)

A desculpa esfarrapada do capitão

Empenhado em manter de pé a enganação de que uma Nova Política subiu a rampa do Palácio do Planalto e por lá ficou desde que ele tomou posse há seis meses, o presidente Jair Bolsonaro apressou-se a postar no Tiwtter a mensagem que segue aqui:

“Por conta do orçamento impositivo, o governo é obrigado a liberar anualmente recursos previstos no orçamento da União aos parlamentares e a aplicação destas emendas é indicada pelos mesmos. Estamos apenas cumprindo o que a lei determina”.

É verdade que a lei determina. Cumpra-se, portanto. Mas o governo só libera dinheiro para o pagamento das emendas quando quer. E, de preferência, para quem atender aos seus desejos. Todo governo procede assim. E o de Bolsonaro não fugiu à regra.

Deixou para soltar a grana às vésperas da votação da reforma da Previdência. E premiou os que se comprometeram a votar a favor. Na base do toma lá, me dá cá. Tome lá grana para pequenas obras em suas bases eleitorais. Em troca, dê-me seu voto.

Foi assim, por exemplo, que o ex-presidente Temer evitou por três vezes que a Câmara aprovasse pedidos do Supremo Tribunal Federal para processá-lo por corrupção. Bolsonaro mandou os escrúpulos às favas – e, com eles, a lorota da Nova Política.

Presságios

Para entender a perda de poder do Estado é preciso mais talento humanista do que habilidade política. De maneira geral, governos usam sua força como oficina de testes para usufruir ou confrontar fatos dos quais com frequência são os causadores. Mas para entender como a sociedade está reagindo a tais iniciativas experimentais melhor mesmo é ampliar o ponto de observação e evitar a depressão e revolta que é viver sob governos ingênuos.

O mundo é da riqueza, das hierarquias e dos criadores. E o povo, ora, o povo nunca esteve tão fora de moda como agora. Estão aí três sistemas sociais poderosos que explicam o rápido processo de mudança a partir da atual revolução tecnológica e da crise do sistema financeiro. Chips & Pounds, dois impérios virtuais em guerra que vão se chocar e tirar do Estado a capacidade de vigiar e imprimir dinheiro.

A tecnologia acelera em ritmo cada vez maior e vem pervertendo tanto nosso sistema de reflexos que sua velocidade já é uma doença. O sistema financeiro, por sua vez, gigantesco e socialmente infértil, será engolido pela criptomoeda como o Uber comeu o táxi.


A tecnologia deu aos bancos um suporte material e um saber extraordinário sobre a angústia dos clientes, mas não lhes deu nenhuma sensibilidade sobre a experiência de salvá-los pela vida produtiva. Se o concentrado sistema bancário não enfrentar sua riqueza enganadora, usando de forma virtuosa a memória que armazena dos seus clientes, será tragado pela degenerescência do dinheiro virtual provocando um Alzheimer na riqueza.

Tecnologia e Moeda são impérios virtuais que se aproveitam do sono dos Parlamentos, anestesiados pelo narcisismo dos selfies e prisioneiros de qualquer Big Data que se ofereça. Notícias não compensam a falta de ideias. A maquinação digital é uma armadilha que consiste em transferir a legalidade de todas as coisas para os que armazenam os meios eletrônicos, fazendo o controle da verdade pertencer ao manipulador de dados.

O mundo está inundado de dinheiro fraco e caro. Dinheiro que se converteu em entorpecente provocando necessidade de antidepressivos. Os bancos não conhecem analogia e acham que nada tem que ver com eles o fato de que nos EUA e na Europa são cobradas taxas para o uso de drogas recreativas em cafés ou oferecidas drogas medicinais em dispensários para usuários. Nada repressivo, totalmente liberal. Se não criarmos abrigos para inadimplentes, ou alguma moeda social não contributiva, o dinheiro não circulará pela massa de excluídos e a mercadoria não mais será comprada pela maioria.

A exclusão social deve ser considerada uma droga e se os bancos não mudarem sua relação doentia com o tráfico de dinheiro, a moeda deve passar a ser tratado pelos sistemas de saúde, e não pelo sistema financeiro. A OMS sabe mais do mundo do que o FMI.

A política, e seu medo estúpido da economia e da tecnologia, infantilizou o papel da luta política, prisioneira do obsoleto estatuto do poder. Tipo de política que não usa nenhuma brecha para propor uma linha de fuga que possa reverter sua impotência diante da violência dos processos tecnológicos e financeiros.

Recomeçou o ciclo do grande endividamento.

A riqueza bancária e a informatização usam as facilidades da política, de direita ou esquerda, para penetrar sem lei nos países que não atravessaram nenhum grande acontecimento da História mundial. Com a concentração, a segurança econômica pressupõe subordinação bancária e não significa liberdade. O crédito imposto, o endividamento, virou um mecanismo de conformidade violento. A Pátria cobriu-se de juros, o nome do dinheiro caro.

A bravura dos que trabalham e produzem a riqueza perdeu aliados para disputas políticas ideologizadas, sem nenhuma ligação com a dor e o prazer trazidos pelo progresso. A alta tecnologia escondeu-se em paraísos fiscais, alimenta hackers, cria empresas virtuais, manipula e desorganiza governos a seu favor.

Enquanto a política não acorda para o problema real que aflige a pessoa comum, que é o novo mundo do trabalho e sua relação com a insegurança pessoal, a boemia bancária, indiferente à revolução tecnológica no mercado de mão de obra, adoece o crédito com o assédio ao necessitado.

A revolução digital e sua interferência na lógica dos empregos e dos negócios mudaram as exigências da vida. O desemprego dos capazes, surpreendidos por habilidades presas ao passado, aumentou a subordinação das pessoas a bancos e a remédios. E é essa prisão sem amigos, a ausência de decisões novas que façam a riqueza circular de forma ampla, mas fruto de algum compromisso coletivo da economia com o trabalho, que contamina a esperança na política. As hierarquias que dominam os interesses políticos não sabem escrever protocolos para que a criação e a circulação da riqueza existam na perspectiva de todos.

A política perdeu a noção de como os bens são produzidos. A convivência com este estado de coisas – veloz, deseducado, atrativo, desconhecido e sugado por juros – domina o dia dos governos. Um mecanismo que desregulamenta nosso futuro, com a perda da esperança no consenso produtivo e na criatividade do trabalho.

Nas crises de sociedades sem comando, as recompensas que ela acaba proporcionando são desproporcionais e descabidas ao extremo. Cresce demais para uns, desaparece para outros. O cerne do desequilíbrio é a predominância de um tipo novo de vitoriosos ousados na arquitetura do poder. A riqueza se concentra nas mãos de alguns grandes criadores de dinheiro “sem fábrica”, aliados aos hipercompetitivos personagens dos negócios midiáticos, políticos e financeiros.

Assim o mundo corre veloz com sua economia oca. Uma energia desagregadora fazendo e desfazendo valores. Sem monitoramento estatal sábio que possa unir riqueza, hierarquias e criadores, adeus, bem-estar social. O custo desse erro tem sido assustador.

Sem privilégios?

41% dos benefícios pagos pela Previdência Social beneficiam os 20% mais ricos da sociedade. Ao mesmo tempo, apenas 3% dos recursos vão para os mais pobres.
Os 20% de maior renda no país recebem R$ 243 bilhões do sistema previdenciário, e os 20% de rendimento mais baixo, R$ 17,8 bi

Após reformar Previdência, Congresso pressionará Bolsonaro por crescimento

Desde que assumiu a Presidência da República, há seis meses, Jair Bolsonaro vive às turras com o Congresso Nacional. Ele vende a tese segundo a qual o Planalto não é o problema. Os congressistas é que são o problema do governo. Pois bem, o Legislativo prepara o troco. A reação virá assim que for aprovada a reforma da Previdência, que começa a ser debatida no plenário da Câmara nesta terça-feira.


Num podcast divulgado neste início de semana, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, deu uma ideia do que está por vir. Ele declarou que a provável aprovação da reforma da Previdência será uma vitória do Parlamento, não do Planalto, que não conseguiu organizar uma maioria parlamentar. Maia chegou a declarar que "o governo em alguns momentos atrapalhou".

O deputado disse, de resto, que, no dia seguinte à aprovação da mexida previdenciária, o poder Executivo precisa retomar "uma agenda de recuperação econômica". O presidente da Câmara foi ao ponto: "A gente precisa, de forma urgente, voltar a gerar empregos". Eis a novidade: imprensados por Bolsonaro, os congressistas passarão a imprensar o presidente.

Num instante em que sua popularidade estacionou em 33% segundo o Datafolha, menor índice alcançado por um presidente nos primeiros seis meses desde Fernando Collor, o capitão será instado a apresentar resultados. O discurso da herança maldita vai perdendo o prazo de validade. Não podendo culpar o Congresso, restará ao governo dedicar-se à atividade para a qual Bolsonaro foi eleito: trabalhar.

Os animais e a peste

Em certo ano terrível de peste entre os animais, o leão, mais apreensivo, consultou um macaco de barbas brancas.

– Esta peste é um castigo do céu – respondeu o macaco – e o remédio é aplacarmos a cólera divina sacrificando aos deuses um de nós.

– Qual? – perguntou o leão.

– O mais carregado de crimes.

Resultado de imagem para reforma da previdência e privilégios  charge
O leão fechou os olhos, concentrou-se e, depois duma pausa, disse aos súditos reunidos em redor:

– Amigos! É fora de dúvida que quem deve sacrificar-se sou eu. Cometi grandes crimes, matei centenas de veados, devorei inúmeras ovelhas e até vários pastores. Ofereço-me, pois, para o acrifício necessário ao bem comum.

A raposa adiantou-se e disse:

– Acho conveniente ouvir a confissão das outras feras. Porque, para mim, nada do que Vossa Majestade alegou constitui crime. São coisas que até que honram o nosso virtuosíssimo rei Leão.

Grandes aplausos abafaram as últimas palavras da bajuladora e o leão foi posto de lado como impróprio para o sacrifício.

Apresentou-se em seguida o tigre e repete-se a cena. Acusa-se de mil crimes, mas a raposa mostra que também ele era um anjo de inocência.

E o mesmo aconteceu com todas as outras feras.

Nisto chega a vez do burro. Adianta-se o pobre animal e diz:

– A consciência só me acusa de haver comido uma folha de couve da horta do senhor vigário.

Os animais entreolharam-se. Era muito sério aquilo. A raposa toma a palavra:

– Eis amigos, o grande criminoso! Tão horrível o que ele nos conta, que é inútil prosseguirmos na investigação. A vítima a sacrificar-se aos deuses não pode ser outra porque não pode haver crime maior do que furtar a sacratíssima couve do senhor vigário.

Toda a bicharada concordou e o triste burro foi unanimemente eleito para o sacrifício.

Moral da Estória: Aos poderosos, tudo se desculpa… Aos miseráveis, nada se perdoa.
Monteiro Lobato

Paisagem brasileira

Ouro Preto (1973), Durval Pereira  

Bolsonaro sonha com reeleição antes mesmo de tirar o país dessa grave crise

Com apenas seis meses de governo, os admiradores de Jair Bolsonaro não admitem críticas ao governo, acham que ainda é muito cedo. No entanto, o próprio presidente da República não pensa assim. Considera seu governo um sucesso absoluto e já está claramente fixado na reeleição em 2022. Como todos sabem, sonhar não é proibido, mas não adianta se iludir com a tese de que a reforma da Previdência será suficiente para a retomada da economia.

Quem acredita nessa balela vai se decepcionar muito daqui para a frente, porque a crise econômica está piorando. Quem governa não pode perder o foco. É preciso analisar friamente a situação, em busca de alternativas. Mas os atuais ocupantes do poder parecem viver em outro mundo, enquanto quem critica a gestão é chamado de esquerdopata ou derrotista, como se posicionou recentemente o general Augusto Heleno, que pode ser considerado uma espécie de superministro.


Curiosamente, o presidente do partido Novo, empresário e ex-banqueiro João Amoêdo, seria um desses esquerdopatas ou derrotistas, segundo a palestra que deu em Florianópolis neste sábado. Outro que pode ser enquadrado assim é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Os dois têm criticado a falta de um projeto de governo, assim como a polarização que o Planalto tenta forçar, para que se acredite que todo antipetista é defensor de Bolsonaro.

Rodrigo Maia, por exemplo, tenta executar seu próprio plano e anuncia ter contratado uma consultoria com o objetivo de reduzir os custos da Câmara dos Deputados.

“Nós precisamos reduzir as despesas públicas e não apenas a previdenciária”, explicou ao Estadão, ao defender uma reforma administrativa que possa melhorar a qualidade da gestão e voltar a ter carreira no serviço público, exatamente como a Tribuna da Internet tem cobrado, com insistência.

Na defesa de sua tese, Maia critica as distorções hoje existentes no serviço público. “As elites dos três poderes começam a carreira com salários lá no alto. Em cinco anos estão todos praticamente ganhando o teto, que é a remuneração dos ministros do Supremo”, acentua o presidente da Câmara, acrescentando: “A gente precisa ter a coragem de fazer as reformas, o salário dos servidores públicos hoje é 67% maior que o seu equivalente no setor privado, e ainda têm estabilidade”.

Maia tem razão, é claro. Mas é preciso compreender que nada disso terá solução a curto prazo. Não é possível reduzir salários sem ferir os direitos adquiridos pela nomenklatura. É um sonho impossível, que jamais se concretizará. A reforma vai atingir apenas os servidores ainda a serem contratados, em meio à bagunça atual, em que os três Poderes, incluindo as estatais, estão inflados de servidores terceirizados, fenômeno que contamina estados e municípios.

O maior problema brasileiro é a dívida pública, mas ninguém se importa com isso. Pouco estão ligando para a crise, enquanto o pais caminha para uma situação igual à da Grécia, que se deixou sufocar pela dívida. A economia grega caiu ao mesmo patamar de 2003, não dá sinais de recuperação.

Nos últimos dois anos, o PIB da Grécia teve crescimento que seria comemorado no Brasil, com 1,7% em 2017 e 1,3% em 2018, mas os salários, corroídos pelas medidas de austeridade, seguem baixos e há muita informalidade. O desemprego entre os jovens beira os 50%. A Grécia foi às urnas neste domingo. Os eleitores sabem que não há esperança. Direita e esquerda se revezam no poder, sem achar a saída, porque o país se tornou refém da dívida.

Na mesma situação, o Equador fez o contrário, convocou especialistas internacionais, inclusive a brasileira Maria Lúcia Fattorelli, auditou a dívida, reduziu-a em 70%, nenhum banco quebrou, ninguém reclamou, vida que segue, como dizia o João Saldanha.

Novas concessões e velhos defeitos

Quando o Brasil esperava que a discussão da reforma da Previdência finalmente começasse em plenário, os deputados passaram horas discutindo se deveria ou não ser aprovado um projeto que regulamenta a vaquejada. O assunto parecia despropositado, e era. Se a proposta não estava sendo votada é porque corria riscos de ser derrotada naquele momento. Para tentar angariar mais apoio, o governo fez novas concessões, como regras tributárias ainda mais flexíveis para igrejas, perdão de dívida rural e novas flexibilizações para mulheres.

O caminho escolhido foi desidratar ainda mais a reforma, dando novas vantagens aos policiais, ou fazendo o que o presidente Jair Bolsonaro propôs, que é tirar as forças de segurança da reforma. Nesse ponto, até faz sentido discutir a vaquejada. Com proteções dos grupos pelos quais o presidente faz lobby, a vaca vai mesmo para o brejo. A Previdência não está mudando, está confirmando seus defeitos.


Houve cristalização de privilégios corporativos. Os policiais já têm pelo texto da reforma muita vantagem em relação ao resto do país. Trabalharão menos e terão integralidade e paridade. As Forças Armadas também mantiveram, no projeto que ainda será analisado, esses mesmos privilégios. Outro problema da reforma é o de ter aceitado que os estados e municípios fiquem de fora, mantendo uma parte grande do desequilíbrio no sistema.

O objetivo proclamado da reforma era combater rombos e privilégios. Se for aprovada, reduzirá o rombo, mas não será possível caminhar para um sistema menos desigual. Não faz sentido dar a ninguém, numa reforma feita hoje, o direito de se aposentar com o último salário e acompanhar todos os aumentos da ativa. É exatamente isso que tem feito o custo dos inativos ser tão alto. Na reforma do governo Lula, isso foi mudado para o futuro. Quem entrou no serviço público até 2003 permaneceu tendo esses dois privilégios, mas daí em diante não.

A proposta atual provoca um retrocesso nesse avanço feito no governo Lula. Estabelece que algumas corporações continuarão tendo esses dois direitos, que são evidentemente excessivos para os tempos atuais, e diante do rombo previdenciário e da crise fiscal do país. Naquela mudança, feita pelo PT, todos passariam a receber até o teto do INSS e acima disso teriam que contribuir para o fundo de pensão dos funcionários públicos, só que eles sabotaram a própria reforma demorando 10 anos para constituir o Funpresp. Mas conceder esse direito numa reforma feita agora, e que veio embalada com o discurso de combate aos privilégios, é um absurdo completo.

Para se ter uma ideia, os brasileiros do regime geral tiveram uma piora. Antes, para se calcular o valor da aposentadoria eram levados em conta 80% dos seus salários, desprezando-se os 20% menores. Essa média é que ele receberia até o teto do INSS. Agora, serão levados em conta 100% dos salários. Isso puxará a média para baixo. Se for servidor e tiver entrado entre 2003 e 2013, receberá 60% da média de todos os salários, com 2% ao ano a mais a cada ano que contribuir além dos 20 anos. Se tiver entrado depois de 2013, é o teto do INSS. Já os policiais se aposentarão aos 55 e recusaram proposta do governo para baixar para 53. E todos os que estão na ativa vão receber a integralidade e a paridade.

Como resumiu o deputado Marcelo Ramos em entrevista a este jornal no último sábado:

— Estamos propondo que o pedreiro, o gari, o ajudante de servente trabalhem mais cinco anos até 65 anos e o policial federal não pode trabalhar até os 53? Não é razoável.

Excluir os estados e municípios da reforma é contratar a manutenção de um enorme desequilíbrio, na opinião do ex-governador Paulo Hartung que, no seu primeiro mandato, conseguiu a proeza de negociar 35 anos de trabalho para os policiais.
— As corporações são muito fortes junto ao governo federal, imagine como são fortes nos estados? Como há uma possibilidade muito fraca de ainda ser incluído, o mais provável é que cada estado tenha que fazer o seu esforço e o seu dever de casa — diz Hartung.

Com a manutenção de privilégios para corporações, com tratamentos diferenciados sendo cristalizados, deixou de fazer qualquer sentido chamar a reforma do governo Jair Bolsonaro de Nova Previdência. É a velha, com alguns novos parâmetros, com a idade mínima que tinha que ser instituída, mas que nem ela, a idade mínima, é igual para todos.

Sacrifício é 'geral'

Todo brasileiro tem que estar pronto para servir o país
Roberto Kalil, cardiologista de celebridades e políticos, diretor do Hospital Sírio Libanês e presidente do Instituto do Coração

A tese da ignorância racional

A democracia se encontra em estado de atenção, não porque ela esteja acabando (mas, pode sim acabar, como tudo que é histórico), mas porque mudanças ocorreram desde o final da Guerra Fria, quando se achava que o mundo ia discutir apenas como ficar mais rico, mais legal, mais fofo, à semelhança da publicidade politicamente correta, essa bobagem.

Crises econômicas, a China como potência geopolítica, fluxos migratórios “indesejados” na Europa, diminuição da soberania popular na União Europeia, crescimento dos populismos, estreia das mídias sociais como ferramenta de vocação populista e anti-institucional, enfim, são causas que se fazem também consequências e se acumulam criando uma atmosfera, às vezes, com tons apocalípticos aqui e ali.

Estávamos acostumados com um tipo de ciência política ideológica (combate por “causas” diversas) ou preocupada com as virtudes da democracia (como fazer o eleitor mais consciente, como garantir pesos e contrapesos operantes, como garantir a separação entre os poderes da República). Os diversos tipos de ciência política não operam uns contra os outros, só os equivocados pensam isso.

A ciência política empírica, cética ou “desencantada”, como me disse Mark Lilla no Fronteiras do Pensamento no ano passado, não agrada a todos. A expressão desencantada nos traz ecos weberianos. O desencantamento do mundo, tema caro a Max Weber (1864-1920), se inicia com os profetas hebreus, segundo nosso sociólogo clássico.

Ricardo Cammarota
No momento em que esses profetas dizem que Deus quer que Israel cuide das viúvas e dos órfãos e não que faça sacrifícios animais no templo, nasce a crítica do pensamento mágico na religião, ao lado da dimensão ética da religião israelita. Posteriormente, a ciência e sua crítica ao pensamento mágico aplicado à natureza amplia esse processo de desencantamento.

Uma das marcas de uma ciência política desencantada seria uma ciência política dedicada à busca do entendimento do comportamento dos agentes políticos para além dos mitos, dogmas ou lendas que possamos ter a respeito deles. Alguns pensam que ela teria um ancestral direto em Maquiavel (1469 – 1527), por conta de sua não idealizada análise da natureza humana.

São muitos os mitos, dogmas e lendas sobre o eleitor a serem quebrados. O “eleitor doutor” não vota “melhor”, no sentido de carregar menos viés ideológico em suas escolhas. Tampouco o nível de educação em geral garante menos vieses.

Ninguém tem tempo para se informar muito sobre política em geral, afora profissionais partidários, publicitários e militantes, altamente enviesados, e jornalistas e intelectuais em geral, também com risco de viés ideológico.

Na imensa maioria dos casos, as pessoas estão ocupadas e buscam (quando buscam) informação sobre política apenas pra reforçar sua escolhas e simpatias prévias. Aqui, a dimensão irracional influencia fortemente a racional, mais do que, possivelmente, quando compramos celulares. Somos mais racionais na escolha de celulares e seguros de saúde do que quando votamos.

São muitas as referências bibliográficas disponíveis que abordam essa mitologia do comportamento do eleitor. Hoje vou indicar uma: “The Myth of the Rational Voter”, de Bryan Caplan, de 2007, da Princeton University Press. Numa tradução direta, “O Mito do Eleitor Racional”.

Este é um clássico, fonte para muitos dos cientistas políticos “desencantados” dos últimos três ou quatro anos.

O livro mapeia pesquisas que mostram a baixa racionalidade do eleitor, em alguns dos sentidos que apontei acima. Mas um desses sentidos “desencantados” é, justamente, uma das poucas dimensões racionais da escolha do eleitor: ele dedica quase tempo nenhum à sua escolha porque ele sabe que um voto não significa nada. Ele opta racionalmente por ser ignorante em matéria política. Daí essa tese ser conhecida como a tese da ignorância racional.

A ideia de que o homem age racionalmente otimizando ganhos e recusando perdas, num sentido basicamente econômico e ético, é de raiz utilitarista. Esta tese da escolha racional fundamenta a tese da ignorância racional: dedicamos mais tempo à escolha informada e racional acerca de celulares e seguro de saúde, como disse acima. O voto seria “matematicamente” irrelevante do ponto de vista individual. Com as mídias sociais, esse ignorante racional ficou empoderado.
Luiz Felipe Pondé