domingo, 15 de março de 2020

Déficit não é apenas fiscal, mas também de liderança

A crise do coronavírus, primeira grande encrenca do atual governo, transformou em fumaça a ideia de que Jair Bolsonaro dirige os rumos do país nesta ou naquela direção. A despeito do esforço do presidente para demonstrar que faz e acontece, percebe-se que ele não governa os acontecimentos, é governado por eles.

O déficit fiscal crônico dificulta a reação à tragédia econômica que chega junto com o drama de saúde pública. Mas o maior déficit do governo encontra-se entre as orelhas do presidente da República, não no Tesouro Nacional. Não é que Bolsonaro não esteja ao volante. O problema é a falta de um itinerário.


Na área da Saúde, o ministro Henrique Mandetta move-se com uma desenvoltura que inspira confiança. Na seara econômica, o que há é um jogo de empurra entre Executivo e Legislativo. Numa ponta, Paulo Guedes. Na outra, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. Culpam-se uns aos outros pela inércia. Todos têm razão.

Ecoando um sentimento que se espraia pelo Congresso, Rodrigo Maia, o mandarim da Câmara, cobra do Ministério da Economia respostas emergenciais. Davi Alcolumbre, o comandante do Senado, ecoa em privado o trombone de Maia. Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, cobra do Legislativo as reformas estruturais.

A crise intima Brasília a exibir um arsenal de providências emergenciais e estruturais. A tarefa exige coordenação. As coisas seriam mais fáceis se houvesse em cena um presidente da República dotado de duas ideias fixas: o que fazer para apagar o incêndio e para onde caminhar quando a emergência estiver resolvida.

Assiste-se na capital da República um balé de elefantes. Falta à cena um rajá, isto é, um líder que os monte, apontando-lhes um rumo, contendo-lhes os modos. Em condições normais, o inquilino do Planalto exerceria esse papel moderador. Mas Bolsonaro, como se sabe, é um presidente 100% feito de tromba.

A coreografia é burlesca. Ocorre no fundo do abismo. Voam pelos ares os bilhões que faltam ao Tesouro - R$ 30 bilhões de um orçamento impositivo que Bolsonaro empurra com a barriga; R$ 20 bilhões de uma pauta-bomba que os parlamentares lançam no colo do presidente. O cenário é árido. Falta-lhe a umidade da saliva.

Em 28 anos de vida parlamentar, Bolsonaro aprendeu a virar a mesa. Em 14 meses de Presidência, o capitão ainda não conseguiu sentar-se ao redor da mesa para negociar a solução de um problema —qualquer problema. Sem diálogo, o ruim tende sempre a evoluir para o muito pior.

A atividade econômica se encaminha da enfermaria para a UTI. Surgem no mercado previsões de crescimento abaixo de 1% em 2020. A arrecadação tributária minguará. Premido pela necessidade de fazer gastos extraordinários na saúde, o governo não terá como sacar a tesoura. O déficit ficará ainda maior.

A temperatura do caldeirão subiu. E a mistura ficou mais tóxica. Agora, além do desemprego a pino e do "pibinho", há um vírus percorrendo a conjuntura à procura de confusão. Nesse ambiente, a tese segundo a qual o pacote de reformas liberais é a única resposta à crise perdeu o prazo de validade.

Do mesmo modo, não faz nexo a ideia de que a simples troca do cartaz na porta do teatro vai melhorar a qualidade do espetáculo. Não se trata de retirar de cartaz a agenda de reformas perenes para colocar em cena o pacote de medidas emergenciais. Trata-se de tocar dois espetáculos simultaneamente.

Às voltas com taxas de investimento ridículas, a economia brasileira precisa conquistar a confiança dos investidores. Isso só vai acontecer se o país for capaz de cuidar da emergência sem descuidar do estrutural. Um presidente confuso, que ama o caos e é plenamente correspondido, não ajuda.

Paulo Guedes entrou com atraso na canoa da emergência. Como de hábito, a orquestra do ministro está desbalanceada. Tem mais tambores do que violinos. Promete 20 medidas contra a crise do coronavírus. E desafia os parlamentares a aprovarem 19 reformas que o governo já encaminhou ao Congresso. Quem tem 19 prioridades não tem nenhuma.

Noutros tempos, Rodrigo Maia ocuparia o oco existente entre as orelhas de Bolsonaro, pinçaria da lista de Paulo Guedes duas ou três prioridades reais e religaria as fornalhas do plenário. O diabo é que o coronavírus conseguiu infectar até o suposto parlamentarismo branco. Vigora em Brasília a monarquia. Reina a esculhambação.

Mentalidade bunker

Não faz tanto tempo assim. Passaram-se só quatro meses desde o 17 de novembro último, cuja única notícia internacional relevante era a crise institucional na vizinha Bolívia, e no Brasil a festa do Flamengo em cavalgada rumo ao heptacampeonato nacional. Foi naquele domingão que um cidadão chinês de 55 anos deu entrada num hospital da província de Hubei infectado por uma mutação viral então ainda desconhecida.

Esta semana a China conseguiu apontar o cidadão de Hubei como o “paciente número 1” da atual pandemia global da Covid-19. Entre aquele dia e hoje o colosso comunista parece ter contido o pico da epidemia sem afrouxar as rédeas do regime. Dos mais de três mil mortos e perto de 85 mil infectados oficiais desde novembro, apenas 22 casos novos e oito mortes teriam ocorrido dois dias atrás. Mas a semente da desconfiança popular em relação à narrativa do governo está plantada.

No resto do mundo a era do coronavírus também deve abrir uma caixa de pandora. Mudamos nós, mudou nossa percepção de espaço, de tempo e de relações humanas. De um dia para outro, comportamentos sociais enraizados perderam naturalidade. Começamos a nos sentir estrangeiros em relação a nós mesmos.

Em tempos recentes, só a devastadora disseminação do vírus da Aids na década de 1980 gerou insegurança e incompreensão semelhantes, agravada pela recusa dos governantes da época a lidar com o problema. Ficou na biografia do presidente americano Ronald Reagan a mancha de só ter liberado verbas federais para combate e pesquisa da Aids quando toda uma geração de jovens já havia definhado, carcomida pelo HIV.


Também hoje não faltam governantes que no início da epidemia, e em graus variados, inflaram a eficácia de suas indecisões, desdenharam o saber dos cientistas, suprimiram informação, escamotearam a verdade. Em regimes autoritários como os da China, Rússia e Irã, foi o esperado. Também houve falhas catastróficas em democracias plenas. “Estamos arruinados. A Itália nos abandonou”, constatou o ator Luca Franzese em vídeo postado de sua casa na Ligúria, onde estava confinado há um dia ao lado da irmã morta, aguardando uma solução das autoridades locais. A Itália, como se sabe, está de porteiras fechadas para o mundo, tentando debelar o maior número de vítimas do coronavírus — proporcionalmente, maior do que o da China.

Em Washington e Brasília, os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro se viram acossados por uma realidade indigesta, fora de hora, resistente a seus tuítes negacionistas. Ambos perderam valiosos meses de vantagem sobre a China para preparar a sociedade e adequar a estrutura pública à inexorável nacionalização do vírus. Só despertaram da visão de bunker quando o contágio chegou ao mercado financeiro.

No mundo todo pessoas normais estocam botijões de água, papel higiênico ou comida diante do desconhecido ou de um apocalipse imaginário. Algumas delas são apenas previdentes, outras mais compulsivas. Esse comportamento de massas vem sendo mapeado há vários séculos. Mas sempre há novidades, e no surto atual a mais extremada vem dos Estados Unidos.

Ali, um dos planos B de sobrevivência à Covid-19 mais radicais está em silos de 15 andares de profundidade cavados pelo governo americano durante a Guerra Fria e transformados em condomínio de luxo por empreendedores que conhecem sua clientela. Estes silos abrigavam mísseis intercontinentais Atlas capazes de cruzar continentes, tornaram-se obsoletos e foram arrematados anos atrás por Larry Hall, do Kansas. São bunkers em forma cilíndrica e paredes de concreto capazes de suportar um ataque nuclear, fornecimento ilimitado de energia, filtros de ar de gradação militar, um suprimento de água e alimentos para cinco anos de ocupação. Sem falar em amenidades óbvias como piscina, sala de cinema, parquinho para pets, processador de lixo. Cada unidade de 83 metros quadrados custa o equivalente a R$ 7,5 milhões, as mais espaçosas saem por R$ 22 milhões. Segundo reportagem de Chris Iovenko na revista on-line “Vox”, o comprador mais recente viu o anúncio do empreendimento este mês e quatro dias depois comprou uma das últimas unidades ainda disponíveis.

Trump e Bolsonaro certamente não cogitam se refugiar num desses Survival Condos. Mas ambos exercem o poder com uma mentalidade individualizada de bunker. Estão na contramão da história: para sobreviver como indivíduos e como espécie dependemos do conjunto, da comunidade. A vida sem os outros, ao contrário do que disse Sartre, é um inferno.

Menos Guedes e mais Mandetta

Salvo a descoberta de que há coisas mais preciosas do que vidas humanas, tudo deverá ser feito para que a epidemia de coronavírus produza por aqui o mínimo de mortes possíveis. O que significa em primeiro lugar: não pode faltar dinheiro para todas as ações que o Ministério da Saúde considere indispensáveis.

Se o ministro Paulo Guedes, da Economia, não for capaz de entender isso e de liberar recursos, deveria ser mandado embora. Guedes disse que a melhor maneira de enfrentar o coronavírus é aprovar as reformas que ele ainda não mandou para o Congresso, que o presidente Jair Bolsonaro hesita em mandar.


Conversa de economista ortodoxo e dito liberal que só enxerga números, não pessoas. Conversa também de quem quer tirar proveito da situação para empurrar suas propostas goela abaixo do Congresso, fazendo o mínimo de concessões. Antes de assumir o cargo, Guedes falara em dar “uma prensa no Congresso”.

Na semana passada, falou em despachar à consideração de deputados e senadores uma lista de 19 prioridades. Ouviu de volta do ex-xerife da economia da época da ditadura militar, Delfim Netto: “Quem lista 19 prioridades é porque não tem nenhuma”. Lacrou! As reformas poderão ficar para mais adiante.

A maioria dos estados brasileiros está despreparada para atender, na rede pública, casos graves de pacientes infectados pelo coronavírus, cujo destino principal são as Unidades de Tratamento Intensivo (UTI) com equipamentos de respiração para ventilação mecânica”, informa, hoje, a Folha de S. Paulo.

Segundo o jornal, “as piores situações estão nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste, as mais pobres e mais dependentes do Sistema Único de Saúde.” Nos municípios, menos de 10% têm leitos de UTI, públicos ou privados, “e os pacientes terão de ser encaminhados a hospitais de referência regionais.”

Em 2014, os hospitais públicos no Rio de Janeiro ofereciam 3.771 leitos. Hoje, 2.959. O número de leitos nos hospitais da prefeitura do Rio caiu de 3.881 em 2017 para os atuais 3.527, informa o jornal O Globo. Segundo o Censo de 2010, 22% dos moradores da cidade do Rio (ou 1,5 milhão de pessoas) vivem em favelas.

O Brasil foi dormir, ontem, com 121 casos de coronavírus confirmados. A tendência é que o número de casos dobre a cada três dias se medidas duras não forem tomadas. O pico da doença deverá ocorrer entre abril e maio. E será tanto mais alto se a curva de crescimento do número de casos não for atenuada desde já.

Outra escolha não é possível ante a gravidade da crise que Bolsonaro chamou de “pequena”, contaminada pela “fantasia” de uma imprensa irresponsável que ele costuma hostilizar à base de bananas. Menos Guedes. Mais Mandetta. Quando o pior passar, vê-se o que fazer com as reformas que o governo não entrega.
Ricardo Noblat

Covid-19: A nossa 'finest hour'

Ninguém está preparado quando nos bate à porta uma catástrofe. E aquilo a que estamos a assistir, perante uma epidemia global como é a Covid-19, é a uma calamidade. Não necessariamente pelo impacto que venha a ter em termos de saúde pública, mas pela forma como, para o evitar, vai obrigar-nos a todos a mudar drasticamente a nossa forma de vida durante um período de tempo imprevisível.

No século XXI, o mundo não está organizado para ter uma paragem forçada na engrenagem complexa que pressupõe um planeta sem fronteiras, populações com enorme mobilidade, economias dependentes de consumos externos, sistemas financeiros interligados e linhas de produção com peças vindas dos quatro cantos do globo. Um grão de areia chamado Covid-19 fez acionar o botão de stop deste motor, e o que todos agora se perguntam é a que custo.


O que vivemos é uma verdadeira prova. Um teste à globalização e a esta forma de nos organizarmos em rede, que nos dá capacidade de crescimento, mas grande fragilidade potencial perante imprevistos, que num ápice se transformam em problemas globais. Um teste aos nossos líderes e dirigentes políticos, que têm de mostrar a capacidade de resposta imediata, mantendo um equilíbrio difícil entre acionar planos de emergência e contingência e evitar os alarmismos excessivos que paralisam o País. Um teste à capacidade de resposta dos nossos sistemas de saúde, já tão fragilizados, que têm a missão primordial de salvar vidas. Um teste à nossa capacidade de turnaround económico, depois do impacto que inevitavelmente esta epidemia terá em setores fundamentais da nossa sociedade. E, o mais importante de tudo, um teste ao nosso civismo e à solidariedade intergeracional (sendo certo que o vírus é muito mais perigoso para os mais velhos) e à capacidade de cumprirmos, voluntariamente, as instruções em prol do bem comum.

Por mais duras (e nalguns acasos até aparentemente desproporcionais perante o número de casos existentes) que nos pareçam as medidas impostas agora, temos de acatá-las com empenho. Temos de perceber que as medidas de contingência são fundamentais para evitar o pior em Portugal. São elas que podem impedir um caos absoluto, com potenciais consequências devastadoras: várias centenas de contaminados por dia, milhares de hospitalizações, muitos mortos. Temos hospitais a rebentar pelas costuras; equipas médicas no limite que já trabalham no fio da navalha; poucas unidades de cuidados intensivos, mal apetrechadas e sobrelotadas (só existem, por exemplo, cerca de 600 ventiladores no País, quando, segundo os médicos italianos, 10% dos casos precisam de ventilação assistida); carência de equipamentos de proteção e segurança para o pessoal; falta de formação e de comunicação em toda a linha, desde os serviços de transporte aos hospitais de referência, passando pelas unidades de cuidados de saúde primárias.

Perante isto, só nos resta fecharmo-nos obedientemente em casa, praticarmos a distância, ou mesmo a reserva social, e assim tentarmos evitar o pior. Porque o pior, como se assiste em Itália (e também em Espanha, o próximo grande foco na Europa), onde o sistema de saúde é desenvolvido e eficaz, pode mesmo ser muito complicado de gerir. Os ingleses têm uma expressão perfeita e sem tradução direta: “rise to the occasion”, qualquer coisa como elevar-se perante as circunstâncias. Não tenhamos dúvidas: não é o apocalipse, mas as circunstâncias são mesmo sérias. Em 1940, perante a ameaça da invasão nazi, Winston Churchill proferiu um dos seus melhores discursos, que ficou conhecido como Finest Hour. “Preparemo-nos para os nossos deveres, comportemo-nos de forma que, se o Império Britânico durar mil anos, os homens ainda dirão: ‘Este foi o seu melhor momento’”, declarou. Este é um dos momentos em que somos postos à prova: mostremos que estamos à altura dele.

Brasil no paredão


Morte precoce de Bebianno: o alto preço das traições políticas

Ele só tinha 56 anos. Era faixa-preta de jiu-jitsu. Treinou com os Gracie desde os 18 anos. Claro que ninguém pode afirmar, nem mesmo médicos, se sua opção de lutar no ringue da política foi uma das causas de seu infarto fulminante no sítio em Teresópolis. Mas as escolhas de nossa vida, em qualquer campo, exercem influência sobre nossa saúde. Influência emocional, psicológica, física. Não há como dissociar. Nossas opções cobram um preço pessoal.

Gustavo Bebianno envelheceu rapidamente desde sua ascensão e queda meteóricas no governo de Jair Bolsonaro. Era só um fã, um outsider político, quando participou de uma sessão de fotografias do então candidato a presidente da República pelo nanico Patriota. Bebianno foi um voluntário dedicado, acreditava no capitão. Foi decisivo na mudança de Bolsonaro para o PSL. Coordenou a campanha. 

O ex-professor de artes marciais, que chegou a ter 100 alunos em Miami, virou presidente interino do PSL e, com a vitória de Bolsonaro, foi catapultado para ministro da secretaria-geral da Presidência. Mas cometeu o sumo pecado de brigar com Carlos Bolsonaro, que o atiçava diariamente pelas redes sociais, ciumento da influência de Bebianno como braço direito do pai. Carlos acusava Bebianno de ser pivô da crise dentro do PSL, envolvido em denúncias de uso de candidaturas laranjas. 

Bebianno reclamou de Carluxo publicamente: “Roupa suja se lava em casa”. Eduardo tomou as dores do irmão e dias depois Bebianno era chutado para fora do governo. Primeiro ministro a ser exonerado em fevereiro de 2019. “Por questão de foro íntimo”, disse Bolsonaro. Saiu do PSL quatro meses após ser demitido do governo. Segundo o próprio Bebianno, ele tinha sido demitido "pelos filhos do presidente". 

Foi um mata-leão. Bebianno conhecia bem esse golpe. Aplicado pelas costas, o mata-leão no jiu-jitsu é um estrangulamento. O competidor passa um braço por baixo do pescoço e segura no bíceps do outro braço. De fã, Bebianno passou a adversário do presidente. Em dezembro do ano passado, já no PSDB, alertava para “o grau de loucura e irresponsabilidade” de Bolsonaro. Chamava Eduardo e Carlos de “debiloides”. 

Conversei com um amigo pessoal de Bebianno, Milton Kohn, que, às 23h40min de ontem, falava com ele ao telefone. "Às 4h da manhã, meu amigo foi embora. Era um homem de 1,90m, um cavalo de tão forte, estava cheio de disposição para melhorar esse Rio avacalhado e abandonado. Bebianno foi o braço direito e esquerdo de Bolsonaro. Foi advogado, foi secretário. Horrível a forma como foi mandado embora. Ele me dizia: 'Milton, esses filhos do Bolsonaro nunca viajaram com a gente na campanha, nós dormíamos no chão'. O Carlos tinha muito ciúme da ascendência do Bebianno sobre o pai. Sinto uma tristeza imensa. Nossas conversas eram só de saúde, acho que ele não tinha noção de que sofria de problemas cardíacos. Esse jogo político fez muito mal a ele e certamente prejudicou sua saúde. Era uma pessoa séria, com uma família linda, e gostava de ficar em seu sítio, quieto, cuidando de suas ações na Bolsa, que conhecia a fundo. Será enterrado lá".

O governador de São Paulo, João Doria, padrinho-mor que o lançou agora em março pré-candidato à prefeitura no Rio de Janeiro pelo PSDB, disse em dezembro de 2019 que o passado de Bebianno tinha sido “não um erro, mas um aprendizado”. O PSDB estava rachado com o anúncio da pré-candidatura de Bebianno a prefeito do Rio. 

Não sei que aprendizado de vida é esse, que entope uma pessoa de mágoas e a confronta com disputas, brigas, inimizades. Quem sabe Bebianno estivesse vivo e feliz se continuasse envolvido com artes marciais e não com o jogo sujo da política, com golpes baixos duros de engolir. O tatame do jiu-jitsu era mais saudável. A competição, mais previsível.

Agora, após a morte repentina do ex-ministro de Bolsonaro, o presidente nacional do PSL, Luciano Bivar, afirmou que Bebianno deu “sua parcela de cidadão e patriota”.

Imolar-se a favor ou contra Bolsonaro (ou qualquer político) não pode valer a pena. Cada um de nós deve pensar o que é melhor para sua vida íntima. Em que momento devemos abandonar um ringue pesado e jogar a toalha para buscar caminhos mais prazerosos na vida. Ambições e amargura podem nos levar a um caminho sem volta. O coração pode simplesmente não aguentar.

Ruth de Aquino

Há mais vida



O luto vive dentro de nós, mas a vida é muito maior do que ele. Há muito espaço para todas as demais vivências
Haruki Murakami

Ilustre passageiro

Um dos mais famosos “cases” da propagada brasileira é um anúncio de bondes: “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado. E, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rum Creosotado”. O poeta Bastos Tigres levou a fama, mas a autoria seria do farmacêutico Ernesto de Souza (1864-1928), criador da fórmula, que até hoje serve de exemplo nas escolas de comunicação, por causa da simplicidade de seus versos. De acordo com o anúncio publicado no jornal Correio da Manhã, de 8 de agosto de 1920, a fórmula do Rum Creosotado, produzido pela centenária Drogaria Granado, era mesmo aquela que aparece na propaganda, com “fartos elementos para a hygiene dos pulmões”: iodo, hypophosphito de sódio (NaH2PO2), e de cálcio [Ca(H2PO2)2]. Naquela época, como grande público tinha baixa escolaridade, os versos e a ilustração facilitavam a propagação do anúncio boca a boca.


Seu principal concorrente era o Biotônico Fontoura, criado em 1910 pelo médico Cândido Fontoura para sua esposa. Seu amigo Monteiro Lobato, que tomava o produto para combater o cansaço, batizou a fórmula exaltando suas propriedades e o nome do criador. O Biotônico ganhou muita fama por causa da Lei Seca dos Estados Unidos (1920-1933), para onde foi exportado e fez muito sucesso como remédio que podia ser comprado nas farmácias, mas que servia para aliviar a abstinência dos beberrões, por causa do teor de 9,5% de álcool. No Brasil, era usado como abridor de apetite das crianças, misturado com leite condensado e ovos de pata, um coquetel antianêmico. Em 2001, a Anvisa proibiu que produtos destinados às crianças tivessem qualquer quantidade de álcool em sua composição, razão pela qual o produto foi modificado, ganhando os sabores morango e uva, sem álcool, para as crianças. Rico em ferro, é vendido até hoje, por R$ 26.

A propósito do tipo faceiro, ilustre passageiro ao lado, era o caso do secretário de Comunicação da Presidência da República, Fábio Wajngarten, que viajou aos Estados Unidos com o presidente Jair Bolsonaro e seus familiares e está com coronavírus. Toda a comitiva presidencial — parentes, ministros, assessores civis e militares, parlamentares — fez exames ontem para saber se alguém mais foi contaminado. Fábio está em isolamento, depois de fazer novo exame em São Paulo; o resultado da contraprova confirmou a infecção. Bolsonaro, a primeira-dama Michelle e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente da República, fizeram o teste no Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência da República, e não apresentam sintomas da doença.

Desdenhar do coronavírus é a mesma coisa que acreditar que o Rum Creosodato resolveria o problema dos pulmões, numa época em que a penicilina não havia sido descoberta e, por isso mesmo, não existiam antibióticos capazes de curar a tuberculose, e a pneumonia era quase fatal. Essa suposição é alimentada pela baixa letalidade da epidemia (entre 0,5% e 3,5% dos infectados), que atinge grupos de risco (cardiopatas, diabéticos e idosos). O problema é a velocidade da propagação da epidemia, que aumenta sua letalidade por causa da incapacidade de o sistema de saúde atender o crescimento exponencial de casos graves, que exigem entubação dos pacientes em leitos de UTIs. Até a volta dos Estados Unidos, Bolsonaro tratava o assunto de forma até leviana, comparando o coronavírus a uma simples gripe e culpando a imprensa — sempre ela — pelo justificado temor que se disseminou na população, o que é muito diferente de pânico.

Trata-se de uma escolha de Sofia (decisão difícil sob pressão e enorme sacrifício pessoal, como a vista no filme homônimo de 1982, que valeu a Meryl Streep o Oscar de melhor atriz), entre a redução das atividades da sociedade, principalmente as aglomerações e circulação das pessoas, com consequente redução da atividade econômica, ou o colapso do sistema de saúde, sem leitos, máscaras, tomógrafos, respiradores e outros equipamentos para quem precisa, provocando o aumento do número de mortos. A capacidade de reação dos países à epidemia é mais ou menos proporcional à envergadura de seu sistema de saúde, nível de esclarecimento da população e escala de medidas de contenção da epidemia por parte dos governos.

O caso da China proporcionou aos especialistas da Organização Mundial de Saúde (OMS) um estudo do comportamento da doença em diversas regiões do país, que está servindo de paradigma para o enfrentamento da epidemia, sobretudo depois do colapso do sistema de saúde da Itália, que é um dos melhores do mundo. As ruas desertas das cidades italianas escondem o drama terrível dos hospitais lotados, onde não se morre só de coronavírus, mas de câncer, ataque cardíaco, traumatismo craniano, pneumonia e até gripes comuns, por falta de leitos de UTIs.

O Brasil vai contratar 5 mil médicos pelo Programa Mais Médico e direcionar 2 mil leitos de UTI para o tratamento de pacientes com Covid-19 pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O secretário executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo, em entrevista coletiva, revelou que o nível de preocupação com leitos aumentou após registros dos casos na Itália. Ontem, em Florianópolis (SC), prefeitos das capitais e das principais cidades do país, se reuniram para discutir medidas de combate ao coronavírus. Ninguém se iluda, o sucesso no combate ao coronavírus precisa de medidas governamentais corajosas, dos prefeitos e dos governadores, para reduzir a velocidade de propagação da epidemia e contê-la, poupando vidas.

O diabo na rua, no meio do redemunho

Viver é mais perigoso a cada minuto que passa neste mundo do coronavírus. Que fake news que nada! Problema mesmo são as verdadeiras!

Eu mesmo já nem ouso mas a História certamente terá muito a dizer sobre o fantástico “case” que se desenrola diante dos nossos olhos: De como a gripe menos letal das ultimas décadas desencadeou uma epidemia global de super-reações de governantes tementes ao linchamento e precipitou, do nada, o maior pânico financeiro do milênio.

Não é só o Brasil. “O mundo nas juntas se desgovernou”, como o jagunço Riobaldo temia que se desgovernasse.


Um mundo onde os vírus migram dos morcegos para os humanos, do marketing para a política e dela para os mercados. Um mundo onde ficou tão mais barato fazer e entregar um discurso “customizado” a cada consumidor quanto mais caro servir-lhe qualquer coisa fora do padrão massificado da economia de escala dos monopólios planetários. Um mundo onde as “narrativas” e a realidade correm cada vez mais aceleradamente em direções opostas e a concentração do poder econômico é o efeito mais direto da desconcentração do foco do poder político.

Na louca febre das bolsas a contribuição chinesa deu-se por ricochete. Há meses o mercado procurava uma razão para uma queda. Serviu-a na bandeja a disposição das democracias ocidentais de tratar como igual o mandarim vermelho que, numa bela manhã – não porque tivesse sido instado a tanto pela ciência mas antes porque pode fazer o que bem entender impunemente – acordou com ganas de isolar uma mega cidade inteira depois de ouvir um par de espirros.

Na China faz-se, não se discute, porque para quem vem cheio de ideias sempre há o “campo de reeducação” – agora à paisana, no meio da cidade e com cara de condomínio – ou o tiro na nuca para os insistentes. Por mais predispostos que estejamos a esquecê-lo enquanto babamos ovo para as “Muralhas da China” e os “Palácios de Verão” dos novos imperadores, o que continua sendo, lá, é o que sempre foi, só com mais dinheiro e esperança para quem conseguir manter-se vivo e em paz com o partido. As quase democracias também continuam iguais. Nunca saíram do brejo. O que vem mudando rapidamente para pior é a ponta das democracias verdadeiras.

O dado novo, que pesa decisivamente para quem vive de voto, são as “tricoteuses” da revolução das comunicações. Todo mundo tem aquele amigo, aquela amiga, com histórico de razoabilidade que, armado do seu celular, passou a comportar-se como um fanático que se ocupa com zelo religioso em fazer circular textos e imagens que não enganariam nem uma criança em condições normais de temperatura e pressão, e a pedir mais e mais “sangue”, desde as primeiras filas da guilhotina das teorias planetárias da conspiração. A “ascensão do idiota” desde que descobriu-se maioria esmagadora e “perdeu a modéstia”, descrita por Nelson Rodrigues, acabou num grau inimaginável daquela “embriaguez pela onipotência numérica” que ele antecipou e temia antes do advento do mundo em rede.

No meio do caminho entrou em cena o potentado Putin jogando petróleo real no incêndio da febre que quem vive de voto vai ter de apagar. Mas antes disso o cenário de desolação já estava definido. Houve tempo em que a notícia é que pautava os jornais. Hoje os jornais é que pautam a notícia. Uma cidade inteira sob sítio? Vale! E lá estava, mais uma vez oferecida, a janela aberta para o mundo. E havendo janela, há que haver ministro que nela se debruce e jornalista para inquiri-lo e pauteiro para encher a linguiça de cada canal melhor que a do vizinho. E como o medo é que governa os governos nesta era do apedrejamento em rede, instalou-se mais uma vez a cadeia mundial da irracionalidade: “Ele fez. Vai que eu não faço e…”

Hoje é possível fazer um “e-comício” para cada plateia selecionada pela história das suas emoções; criar um compromisso com cada indivíduo; falar-lhe “ao pé do ouvido” de dentro do “grupo” dos seus íntimos. Mas como tratar de questões mais amplas com o necessário distanciamento num ambiente de tanta falta de cerimônia?

“Ilusão de noiva” acreditar que a supressão do intermediário especializado melhorou a relação candidato-eleitor. A tapeação agora é algoritmizável. Não precisa nem “ser artista”. Qualquer sujeito sem nenhuma graça ou talento pode enganar com eficiência científica. E se na relação intermediada pelo jornalismo o contraditório era a regra exigível cuja ausência ligava o alarme contra o enviezamento, hoje ele é o intruso expulso a socos e ponta-pés quando é flagrado insinuando-se numa “conversa de íntimos”.

Cada cercadinho emite e recebe exclusivamente o mesmo zurro. Complicadíssimo, portanto, não se esborrachar numa omelete andando por cima de tantos ovos. A onda do coronavírus baixaria radicalmente, mesmo assim, com uma providência simples. Se todas as vezes em que a palavra chegasse a ser mencionada fosse obrigatório acrescentar a informação que lhe define a estatura – …“coronavírus, a febre chinesa da vez cuja letalidade é bem menor que a da gripe N1H1”… – o mundo estaria, neste momento, bem menos emocionante.

Pensamento do Dia


Em que lugar nos sentimos em casa?

Estive há poucos dias em Marrakech, a mais cosmopolita das cidades marroquinas, participando de um festival de literaturas africanas. A maior parte dos escritores presentes partilhava um destino de sucessivos exílios, com filhos nascidos longe de África e criados em mais do que um país. Um das escritoras contou que, quando alguém pergunta ao filho adolescente de onde ele é, o rapaz faz uma longa pausa antes de responder:

— Depende… Você está com tempo para me ouvir?


A escritora Taiye Selasi, autora de um excelente primeiro romance publicado há poucas semanas no Brasil, “Adeus Gana” (TAG / Editora Planeta), defende a sua pertença não a um país em particular, mas a diferentes locais: “O ano passado comecei a minha turnê do livro”, conta a escritora, numa palestra que está disponível online e já foi vista por mais de três milhões de pessoas: “Em 13 meses, visitei 14 países e dei centenas de palestras. Cada palestra em cada país começava com uma mentira: Taiye Selasi vem do Gana e da Nigéria, ou Taiye Selasi vem de Inglaterra ou dos EUA. Eu pensava, isso não é verdade. Sim, nasci em Inglaterra, e cresci nos EUA. A minha mãe nasceu em Inglaterra, cresceu na Nigéria e agora vive no Gana. O meu pai nasceu na Costa do Ouro, hoje Gana. (…) Os meus apresentadores também me apresentavam como multinacional. (…) Não sou multinacional, não sou nacional, como pode um ser humano vir de um conceito? A História é real. Cultura é real, mas países são inventados. (…) Não sou nacional, sou local. Sou multilocal.”

Sem surpresa, um dos temas do evento em Marrakech foi “A casa”. Em que lugar nos sentimos em casa?

Fiquei a pensar naquilo. A minha casa, costumo dizer, é todo o lugar onde estão as pessoas que amo. Contudo, não é inteiramente verdade, porque já me aconteceu estar com as pessoas que amo em lugares nos quais não me sinto em casa. Então, descobri a resposta: a minha casa é todo o lugar onde não preciso explicar quem sou. Apenas sou.

Lembro-me de um amigo, que, com trinta e tantos anos, saiu de Lisboa para trabalhar em Nova York. Quis saber de que é que ele sentia mais falta. Sorriu:

— Sinto falta de ser tratado por menino. No meu bairro, todo o mundo me tratava por menino: o síndico, o padeiro, a senhora que vendia flores. Em Nova York ninguém me trata por menino.

Na verdade, o que lhe faltava em Nova York era o conforto do reconhecimento. Em Lisboa, no pequeno bairro onde vivia, não precisava explicar-se nem identificar-se. Mesmo aqueles que não o conheciam o reconheciam. Essa experiência de reconhecimento torna-se particularmente explícita no momento de contar, ou de escutar, uma piada. Você sabe que está em casa quando alguém conta uma piada e todos riem juntos. Não há pátria mais sólida do que o riso partilhado, nem lugar mais estrangeiro do que o silêncio incômodo dos outros depois que você conta uma piada.

Trágico é quando naqueles lugares que sempre foram a sua casa você se sente, de súbito, um completo estrangeiro. Tantas vezes, por causa de uma simples piada.
José Eduardo Agualusa 

De que lado?

Os de cá
os de lá
o rio que os separava evaporou.

Os de lá
os de cá
a estrada que os margeava erodiu.

Os de lá e os de cá
lado a lado
não sabem mais de que lado estão.
Alexandre Brandão, "Nenhuma poesia: uma antologia" 

O coronavírus revela que éramos cegos e não sabíamos

A imagem mais dramática e terna, que simboliza ao mesmo tempo a tristeza e a solidão do isolamento ao qual a loucura do coronavírus está nos arrastando, é a dos italianos, habitantes de um país da arte, do tato e da comunicação, que hoje cantam nas janelas das casas diante de ruas e praças vazias. Cantam para consolar os vizinhos encerrados em suas casas. Os lamentos de suas vozes são o símbolo da dor evocada pelos tristes tempos das guerras e dos refúgios contra os bombardeios.

Mas é às vezes nos tempos das catástrofes e do desalento, das perdas que nos angustiam, que descobrimos que, como dizia o Nobel de literatura José Saramago, “somos cegos que, vendo, não veem”. Descobrimos, como uma luz que acende em nossa vida, que éramos cegos, incapazes de apreciar a beleza do natural, os gestos cotidianos que tecem nossa existência e dão sentido à vida.


A pandemia do novo vírus, por mais paradoxal que pareça, poderia servir para abrir nossos olhos e percebermos que o que hoje vemos como uma perda, como passear livres pela rua, dar um beijo ou um abraço, ir ao cinema ou ao bar para tomar uma cerveja com os amigos, ou ao futebol, eram gestos de nosso cotidiano que fazíamos muitas vezes sem descobrir a força de poder agir em liberdade, sem imposições do poder.

Descobri essa sensação quando, dias atrás, fui dar a mão a um amigo e ele retirou a sua. Tinha me esquecido do vírus e pensei que meu amigo poderia estar ofendido comigo. Foi como um calafrio de tristeza.

Às vezes abraçamos, beijamos e nos movemos em liberdade sem saber o valor desses gestos que realizamos quase de forma mecânica. Quando os pais sentem às vezes, no dia a dia, o peso de terem que levar as crianças ao colégio e as deixam lá com um beijo apressado e correndo, mecânico, apreciam, depois do coronavírus, a emoção de que seu filho te peça um beijo ou segure a sua mão. E apreciamos a força de um abraço, do tato, de estarmos juntos apenas quando nos negam essa possibilidade.

Somente quando o vírus nos encerra em nossas casas e limita nossos movimentos percebemos como é triste a solidão forçada, e entendemos melhor o abandono dos presos e dos excluídos. Somente quando nos impedem de nos aproximarmos dos nossos animais de estimação é que descobrimos a maravilha que é poder acariciá-los e abraçá-los.

Se, como dizia Saramago, no cotidiano somos cegos quando não apreciamos a força da liberdade, também, muitas vezes, amando não amamos e livres nos sentimos escravos. O que nos parece cansaço e castigo da rotina revela-se como o maior valor. Quando nos privam dessa cotidianidade nos sentimos escravos, porque o homem nasceu para ser livre.

Na obra Ensaio Sobre a Cegueira (Companhia das Letras), de Saramago, tão recordada nestes momentos de trevas mundiais, na qual uma cidade inteira fica cega e as pessoas enclausuradas, descobre-se melhor nossa insolidariedade e nosso egoísmo. O escritor é duro em seu romance ao fazer daqueles cegos a metáfora de uma sociedade onde cada um, nos momentos de perigo e angústia, pensa apenas em si mesmo.

A única que redime aquela situação perversa dos cegos é uma mulher, a esposa do médico, a única que não perdeu a visão e que se faz passar por cega para ajudar os que de fato são. Aquela mulher é representada hoje pelos italianos que usam suas vozes para, com suas notas doloridas, aliviar a solidão dos vizinhos.

Nestes momentos vividos por boa parte das pessoas do mundo, enclausuradas e presas pelo rigor do poder que as condena negando-lhes a liberdade de movimento, que a dor coletiva nos ajude a vencer nosso atávico egoísmo cotidiano, ao contrário dos cegos egoístas do romance de Saramago.

Que a tragédia do coronavírus consiga nos transformar no futuro em guias e ajuda amorosa dos novos cegos de uma sociedade que muitas vezes parece não saber onde caminhar e que, quando goza de liberdade, anseia pela escravidão.

Que a dor de hoje se transforme em tomada de consciência de que vale mais a liberdade das aves do céu que a escravidão que nos impomos quando somos livres. Que o mundo não caia na tentação dos escravos que Moisés havia tirado da escravidão do Egito, que, enquanto eram conduzidos pelo deserto rumo à liberdade, continuavam preferindo as cebolas e os alhos do tempo da escravidão ao maná que Deus lhes enviava do céu. Não existe maior bem neste planeta do que a liberdade que nos permite amar e sofrer sem sucumbir.

E ante a catástrofe do coronavírus, que poderia nos alcançar a todos, que se rompam neste país as trincheiras entre bolsonaristas e lulistas para nos sentirmos solidários numa mesma preocupação.

Na dor e na calamidade coletiva, sentimos que somos menos desiguais do que pensamos. E que, no fim das contas, as lágrimas não têm ideologia.

Em ambiente de ruptura

A queda de braço no âmbito dos três Poderes, em que o Executivo sofre cerco implacável dos outros dois (Legislativo e Judiciário), é apenas um dos sintomas da ruptura do padrão clássico da política brasileira. O governo Bolsonaro é o marco zero.

O que o precedeu – a política tradicional que desembocou no desastre moral e administrativo do PT e associados; não mais voltará à cena e o que o sucederá ainda não se conhece; está em construção. A oposição dá sinais de que não percebeu essa nova realidade. Imagina que, derrubando Bolsonaro, restabelecerá o que ficou para trás – o chamado “status quo ante”. Não restabelecerá.

A política brasileira chegou ao ponto de não retorno. A própria imprensa, em grande parte, mostra que não detectou o fenômeno. Converte-se em oposição, sem prospectar o que está em curso.


Bolsonaro não é causa da mudança, mas a consequência. O esquema de compadrio da política brasileira, baseado no fisiologismo, que confunde e mistura público e privado, foi (continua sendo) exposto pela Lava Jato. E gerou um desgaste sem precedência que alcançou o conjunto das instituições do Estado.

Bolsonaro catalisou o sentimento de exaustão da sociedade para com sua classe dirigente. Por isso, ganhou com folga as eleições, não obstante a rejeição por parte da grande mídia e do segmento dos formadores de opinião (artistas acadêmicos etc.).

A sociedade, em sua maioria, preferiu apostar num futuro desconhecido do que voltar a um passado conhecidíssimo.

O triunfo de Bolsonaro, nas circunstâncias em que se deu, realçou outro fenômeno: a quebra do monopólio da opinião, desde sempre em mãos da mídia convencional (rádio, TV e imprensa).

Goste-se ou não, não há como ignorar a gigantesca Ágora em que se converteu a internet. Na tentativa de desacreditá-la, a mídia tradicional acabou ela própria sendo desacreditada.

Tanto assim que o candidato que intentou derrotar acabou vitorioso. Não há como ignorar a realidade implacável dos sites e blogs espalhados pelas redes sociais. Não vão sair de cena.

A babel instalada há de gerar um processo seletivo espontâneo dentro dela própria. Não é missão do STF arvorar-se em polícia da rede, como imaginam os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, que presidem um inquérito bizarro com esse objetivo.

O fato concreto é que ninguém é mais dono da informação e da opinião. Um boato desaparece com a mesma velocidade com que surge. E as mobilizações de massa podem ser (e estão sendo) convocadas a baixo custo e em tempo recorde.

Isso, claro, não ocorre apenas no Brasil. É fenômeno mundial. Basta ver a velocidade e extensão com que se propagou o alerta ao corona vírus. Em menos de uma semana, impôs abalos gigantescos à economia mundial, espalhando temores em todos os países.

A política contemporânea obedece a novos pressupostos. Em vez de insultá-los, o bom senso aconselha a decifrá-los. No Brasil, infelizmente, estamos ainda na fase dos insultos.