sábado, 8 de junho de 2024
A tragédia gaúcha ao olho vivo
Escrevo de Porto Alegre, onde a vida se confunde com a hecatombe. Mais de dois terços do Rio Grande do Sul estiveram literalmente submersos por mais de 30 dias. Agora, em muitas localidades, nas cidades e nos campos, as águas baixaram, mas a enchente continua, mesmo em menor intensidade e extensão. Invadidos pelas águas, até hospitais estão sem funcionar. O aeroporto da capital gaúcha está totalmente alagado, da pista de pouso à estação de passageiros. E mais ainda: a inundação também soterrou, no sentido literal do verbo. Morros despencaram, soterrando o que encontravam pela frente – pessoas, residências, fábricas, árvores, plantações, animais, móveis e automóveis.
Dos objetos pessoais, como carteiras de identidade, fotografias familiares, títulos eleitorais e outros documentos, tudo desapareceu. Nos prédios que sobraram, a água invasora rachou as paredes.
O panorama é de guerra, mesmo sem bombardeios e canhões, como se a destruição da Ucrânia ou da Faixa de Gaza tivesse se instalado no sul do Brasil. Ou como se o terrorismo do Hamas tivesse mudado de fisionomia e adotado a forma de chuva.
Tudo é indescritível. Faltam adjetivos em nossa língua, ou em qualquer outro idioma, para descrever a situação e tudo o que se vê ao redor. A cidade de Eldorado, na área metropolitana, foi totalmente alagada e em todo o Rio Grande do Sul há mais de 150 mortos. O irônico em tudo é que “El Dorado” foi a denominação que, no século 16, os conquistadores europeus deram aos locais de minas de ouro nos territórios das Américas...
Ironia maior, porém, é que a 5 de junho celebrou-se o Dia Mundial do Meio Ambiente...
Todo esse horror, porém, foi compensado, em parte, pela solidariedade de diferentes setores da sociedade brasileira. Homens e mulheres se transformaram em trabalhadores voluntários, auxiliando os danificados. Boa parte deles era de outros Estados e pela primeira vez conhecia o sul do Brasil. Essa solidariedade espontânea chegou às escolas de São Paulo (e de outras cidades) e foi compartilhada por adolescentes ou até crianças, que recolheram garrafas de água potável para serem enviadas aos atingidos pelas enchentes.
A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) levou ao Rio Grande do Sul bombas de sucção e outros materiais similares, lá inexistentes. Bombeiros de distantes Estados, como Acre e Maranhão, lá estavam (ou continuam a estar) numa demonstração em tempo real de que somos uma só nação, unida até na desgraça.
A tragédia do sul do Brasil demonstrou que as mudanças climáticas não são uma simples tese de ambientalistas, mas, sim, uma realidade que se agrava pelo nosso desdém ao tratar a natureza como um estorvo. Continuamos (ou até incentivamos) a derrubar matas nativas, e até as reflorestadas, que atuam como reguladoras das chuvas e, por consequência, dos aguaceiros e enchentes. Tudo isso alternando-se com estiagens longas que afetam a agricultura.
Agora, uma das dramáticas consequências das enchentes no Rio Grande do Sul é a possibilidade de faltar arroz. O governo federal liberou a importação do cereal prevendo que falte em nossas refeições. Poderá também faltar ou escassear soja. Os estragos deixados pelas enchentes não afetaram apenas o setor agrícola e chegam também à indústria automobilística. O Sul é fabricante de peças essenciais à produção de automóveis e de caminhões.
À beira das poucas estradas não alagadas, improvisadas barracas de lona ou plástico servem de moradia a milhares de desalojados. Em várias cidades (especialmente na capital estadual) milhares de adultos e crianças estão recolhidos em improvisados abrigos. Lá, dormem e comem os alimentos preparados por voluntários.
As águas não são más nem assassinas. Têm força, porém. Se forem contínuas, exigem cuidados dos governantes, algo que evidentemente faltou agora no Sul. A prefeitura da capital gaúcha não conservou as comportas que separam a cidade das águas do Lago Guaíba. A chuvarada rompeu tudo, alagando totalmente a zona central. Nem sequer havia bombas de sucção.
Por outro lado, o governo do Estado alterou o pioneiro Código Estadual do Meio Ambiente, que serviu de modelo a outros Estados, e, assim, facilitou a hecatombe de agora. A alteração facilitava a construção de uma mina de carvão a céu aberto, à beira do caudaloso Rio Jacuí, que desemboca no imenso Lago Guaíba, que banha a capital gaúcha. A mobilização da opinião pública evitou a abertura da mina, que, se fosse construída, teria, com as enchentes de agora, transformado o Lago Guaíba numa pestilenta cloaca.
Existe, porém, o lado oculto e pernicioso que se autointitula reconstrução, mas que em realidade se dedica ao roubo ou à fraude. Nos alojamentos provisórios houve larápios e foi necessária a intervenção policial para evitar a continuidade do roubo. Em municípios do interior, funcionários das prefeituras superfaturaram em até 200% a compra de alimentos ou roupas para os desalojados pela enchente.
A tragédia só se explica, porém, pela crise climática.
Dos objetos pessoais, como carteiras de identidade, fotografias familiares, títulos eleitorais e outros documentos, tudo desapareceu. Nos prédios que sobraram, a água invasora rachou as paredes.
O panorama é de guerra, mesmo sem bombardeios e canhões, como se a destruição da Ucrânia ou da Faixa de Gaza tivesse se instalado no sul do Brasil. Ou como se o terrorismo do Hamas tivesse mudado de fisionomia e adotado a forma de chuva.
Tudo é indescritível. Faltam adjetivos em nossa língua, ou em qualquer outro idioma, para descrever a situação e tudo o que se vê ao redor. A cidade de Eldorado, na área metropolitana, foi totalmente alagada e em todo o Rio Grande do Sul há mais de 150 mortos. O irônico em tudo é que “El Dorado” foi a denominação que, no século 16, os conquistadores europeus deram aos locais de minas de ouro nos territórios das Américas...
Ironia maior, porém, é que a 5 de junho celebrou-se o Dia Mundial do Meio Ambiente...
Todo esse horror, porém, foi compensado, em parte, pela solidariedade de diferentes setores da sociedade brasileira. Homens e mulheres se transformaram em trabalhadores voluntários, auxiliando os danificados. Boa parte deles era de outros Estados e pela primeira vez conhecia o sul do Brasil. Essa solidariedade espontânea chegou às escolas de São Paulo (e de outras cidades) e foi compartilhada por adolescentes ou até crianças, que recolheram garrafas de água potável para serem enviadas aos atingidos pelas enchentes.
A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) levou ao Rio Grande do Sul bombas de sucção e outros materiais similares, lá inexistentes. Bombeiros de distantes Estados, como Acre e Maranhão, lá estavam (ou continuam a estar) numa demonstração em tempo real de que somos uma só nação, unida até na desgraça.
A tragédia do sul do Brasil demonstrou que as mudanças climáticas não são uma simples tese de ambientalistas, mas, sim, uma realidade que se agrava pelo nosso desdém ao tratar a natureza como um estorvo. Continuamos (ou até incentivamos) a derrubar matas nativas, e até as reflorestadas, que atuam como reguladoras das chuvas e, por consequência, dos aguaceiros e enchentes. Tudo isso alternando-se com estiagens longas que afetam a agricultura.
Agora, uma das dramáticas consequências das enchentes no Rio Grande do Sul é a possibilidade de faltar arroz. O governo federal liberou a importação do cereal prevendo que falte em nossas refeições. Poderá também faltar ou escassear soja. Os estragos deixados pelas enchentes não afetaram apenas o setor agrícola e chegam também à indústria automobilística. O Sul é fabricante de peças essenciais à produção de automóveis e de caminhões.
À beira das poucas estradas não alagadas, improvisadas barracas de lona ou plástico servem de moradia a milhares de desalojados. Em várias cidades (especialmente na capital estadual) milhares de adultos e crianças estão recolhidos em improvisados abrigos. Lá, dormem e comem os alimentos preparados por voluntários.
As águas não são más nem assassinas. Têm força, porém. Se forem contínuas, exigem cuidados dos governantes, algo que evidentemente faltou agora no Sul. A prefeitura da capital gaúcha não conservou as comportas que separam a cidade das águas do Lago Guaíba. A chuvarada rompeu tudo, alagando totalmente a zona central. Nem sequer havia bombas de sucção.
Por outro lado, o governo do Estado alterou o pioneiro Código Estadual do Meio Ambiente, que serviu de modelo a outros Estados, e, assim, facilitou a hecatombe de agora. A alteração facilitava a construção de uma mina de carvão a céu aberto, à beira do caudaloso Rio Jacuí, que desemboca no imenso Lago Guaíba, que banha a capital gaúcha. A mobilização da opinião pública evitou a abertura da mina, que, se fosse construída, teria, com as enchentes de agora, transformado o Lago Guaíba numa pestilenta cloaca.
Existe, porém, o lado oculto e pernicioso que se autointitula reconstrução, mas que em realidade se dedica ao roubo ou à fraude. Nos alojamentos provisórios houve larápios e foi necessária a intervenção policial para evitar a continuidade do roubo. Em municípios do interior, funcionários das prefeituras superfaturaram em até 200% a compra de alimentos ou roupas para os desalojados pela enchente.
A tragédia só se explica, porém, pela crise climática.
A opção dos humanos: o planeta 4R
Estamos todos cientes de que este planeta é tudo o que temos. Continuando business as usual, o fim da civilização global fica cada dia mais próximo. A inércia mental e a ambição por mais “riqueza”, definida em quantidade e não em qualidade, predominam e comprometem a sobrevivência.
Se quisermos evitar a extinção da (dita) civilização, teremos que mudar hábitos. A ideia do planeta 4R vai nessa direção. Trata-se de proposta do Climate Crisis Advisory Group – CCAG, especialistas na ciência do sistema terra. Vale dizer: Reduzir rapidamente as emissões de GEE, Remover o excesso de GEE da atmosfera, Recuperar os ecossistemas e ampliar a Resiliência local e global. O CCAG defende que os líderes do G20 liderem movimento nesse sentido, com os ricos do mundo ajudando a construir resiliência, o que significa melhor qualidade de vida, principalmente no Sul Global. Trata-se de grande oportunidade para o Brasil, atual presidente do G20. Será aproveitada?
Os desastres ambientais, decorrentes da emissão de GEE principalmente pelos humanos mais ricos, estão cada vez mais caros, em vidas e em materiais. Neste início de 06/24 há grave crise de água na cidade do México, onde até os ricos têm sofrido a falta do líquido; incêndios se espalham pelo Canadá, a Inglaterra teve a primavera mais quente jamais observada e, em Nova Dehli, temperaturas nos últimos dias chegaram a 52oC, causando mortes, sofrimento, perdas econômicas e distúrbios. A situação dos gaúchos nem precisa ser lembrada.
Na Inglaterra, há um movimento no sentido de centrar os debates eleitorais na questão climática. Aqui no Brasil também teremos eleições e a maioria da população se diz preocupada com a crise climática. Nestes trópicos onde quase todas as capitais estaduais carecem de planos para enfrentar emergências, assim como de políticas de uso do solo para garantir cidades mais frescas e resilientes, será que o tema será ao menos debatido?
Se quisermos ajudar a construir um planeta 4R, o que é essencial para que nossos filhos e netos tenham qualidade de vida, precisamos andar muito depressa nessa nova direção. Seria, também, uma maneira de atender aos anseios da maioria, já consciente e preocupada com seu presente e o futuro dos seus!
Eduardo Fernandez Silva
Um exemplo de inércia mental é continuar a falar em “civilização ocidental cristã”! Há muito nossa civilização deixou de ser ocidental e cristã, tornando-se global e vendilhona. Valores cristãos, islâmicos, judaicos, hinduístas e de outros credos foram substituídos pelo culto ao dinheiro. A cooperação minguou e a competição foi exacerbada. O “nós X eles” só se mantem em razão da busca por mais dinheiro por parte da indústria bélica e associados. Os problemas que afligem 100% da humanidade, e mais agudamente os 80% que continuam muito pobres, não podem ser resolvidos pelas ficções chamadas países. Há que superar, com urgência, a inércia que nos mantem presos a tais ficções e viciados em combustíveis fósseis.
Se quisermos evitar a extinção da (dita) civilização, teremos que mudar hábitos. A ideia do planeta 4R vai nessa direção. Trata-se de proposta do Climate Crisis Advisory Group – CCAG, especialistas na ciência do sistema terra. Vale dizer: Reduzir rapidamente as emissões de GEE, Remover o excesso de GEE da atmosfera, Recuperar os ecossistemas e ampliar a Resiliência local e global. O CCAG defende que os líderes do G20 liderem movimento nesse sentido, com os ricos do mundo ajudando a construir resiliência, o que significa melhor qualidade de vida, principalmente no Sul Global. Trata-se de grande oportunidade para o Brasil, atual presidente do G20. Será aproveitada?
Os desastres ambientais, decorrentes da emissão de GEE principalmente pelos humanos mais ricos, estão cada vez mais caros, em vidas e em materiais. Neste início de 06/24 há grave crise de água na cidade do México, onde até os ricos têm sofrido a falta do líquido; incêndios se espalham pelo Canadá, a Inglaterra teve a primavera mais quente jamais observada e, em Nova Dehli, temperaturas nos últimos dias chegaram a 52oC, causando mortes, sofrimento, perdas econômicas e distúrbios. A situação dos gaúchos nem precisa ser lembrada.
Na Inglaterra, há um movimento no sentido de centrar os debates eleitorais na questão climática. Aqui no Brasil também teremos eleições e a maioria da população se diz preocupada com a crise climática. Nestes trópicos onde quase todas as capitais estaduais carecem de planos para enfrentar emergências, assim como de políticas de uso do solo para garantir cidades mais frescas e resilientes, será que o tema será ao menos debatido?
Se quisermos ajudar a construir um planeta 4R, o que é essencial para que nossos filhos e netos tenham qualidade de vida, precisamos andar muito depressa nessa nova direção. Seria, também, uma maneira de atender aos anseios da maioria, já consciente e preocupada com seu presente e o futuro dos seus!
Eduardo Fernandez Silva
Desgoverno global
As catástrofes climáticas estão por toda a parte. Chegaram mais cedo do que a humanidade esperava e com fúria inaudita. Enchentes devastadoras e secas desertificantes vêm ocorrendo em todos os cantos do planeta. Pessoas morrem de calor na Índia e no Canadá. Furacões intensos destroçam territórios norte-americanos. A Alemanha e o Rio Grande do Sul enfrentam inundações assustadoras. Nenhum continente está isento de destruições.
Os pontos de não retorno em vários biomas avançam e as tendências entrópicas do meio ambiente como um todo se agravam diariamente. O mundo parece mover-se como um trem sem freios, em alta velocidade e rumo ao abismo. O grande risco para a humanidade e todas as espécies são as transformações em curso, a indicar tendências paradoxais, para o bem e para o mal. Algumas delas indicam possibilidades de soluções colaborativas. Outras acenam para soluções divergentes, trágicas e violentas. Infelizmente, as tendências destrutivas estão ganhando o jogo.
Algumas transformações apontam para um cenário apocalíptico. As principais, segundo numerosos especialistas, são as seguintes: agravamento da crise climática pela intensificação do novo período geológico do Antropoceno; caminhada rumo ao ponto da singularidade digital de 2045 (domínio das máquinas sobre os humanos); advento do transumanismo e de nova biopolítica com tendências desumanizadoras; um nova Guerra Fria entre potências do Ocidente e do Oriente; intensificação de conflitos armados regionais, como os da Ucrânia e Gaza; impacto dos grandes deslocamentos transnacionais (migrações de fome e escassez, de guerras e de refugiados ambientais); ameaça à sobrevivência das democracias pelo fortalecimento do extremismo de direita.
O problema é que não existem governos com capacidade para enfrentar as catástrofes climáticas, estancar as ações de depredação do meio ambiente e imprimir direção e sentido às transformações em curso. Com isso crescem as tendências de acirramento dos conflitos sociais, políticos, econômicos e militares, tanto internos quanto internacionais.
As tendências conflitivas assentam-se em três razões principais: 1. Os impactos das mudanças climáticas provocam escassez de recursos e isto desencadeará a luta por recursos diversos. 2. A salvação do meio ambiente planetário e da vida implicará mudanças drásticas em relação às quais haverá resistência de grupos econômicos e de Estados. Em determinadas circunstâncias, é provável ser necessário o uso da força para a contenção da crise e para alcançar os objetivos da sustentabilidade. 3. As medidas de mitigação dos efeitos catastróficos e os investimentos necessários para mudar os padrões de produção, de consumo, de vida urbana, de energia e das políticas públicas em geral exigirão somas estratosféricas. Ocorrerão grandes disputas para determinar quem pagará os custos dessas mudanças. As forças hegemônicas dos mercados e do capitalismo globalizado agem para socializar os prejuízos e privatizar os benefícios.
O atual cenário global não favorece o enfrentamento eficaz da crise ambiental nem é capaz de viabilizar um desenvolvimento sustentável no sentido forte do termo. Ao contrário, as catástrofes ambientais e as mudanças indicadas acima agravam a governabilidade global e interna.
Esse quadro de crise tem estimulado saídas particularistas e nacionalistas nos diversos países, favorecendo a competição em detrimento da colaboração. Isso reforça o descompromisso dos Estados com os acordos firmados nos fóruns internacionais. Os nacionalismos extremados de direita alimentam teorias negacionistas sobre as mudanças climáticas.
Por outro lado, a desmaterialização provocada pela economia digital aumenta a extraterritorialidade de atividades produtivas e comerciais, enfraquecendo a regulação nacional, provocando um domínio crescente do mercado financeiro e das plataformas digitais oligopolistas, aumentando o impacto das externalidades sobre as economias locais, fragilizando a regulação jurífica de justiça e de proteção ambiental e social. Essas circunstâncias deterioram a capacidade de coordenação das instituições multilaterais e das jurisdições internacionais e supranacionais.
A captura política dos Estados nacionais por grupos particularistas e depredadores é um enorme problema, agravado pelo crescimento dos movimentos de extrema-direita, que adotam políticas negacionistas e de desmonte das proteções sociais e ambientais. É necessário aumentar a consciência dos riscos sistêmicos e engajar a sociedade nesse debate. Somente com consciência social, organização e mobilização seremos capazes de deter esse trem sem freios que se move rumo ao abismo.
Os pontos de não retorno em vários biomas avançam e as tendências entrópicas do meio ambiente como um todo se agravam diariamente. O mundo parece mover-se como um trem sem freios, em alta velocidade e rumo ao abismo. O grande risco para a humanidade e todas as espécies são as transformações em curso, a indicar tendências paradoxais, para o bem e para o mal. Algumas delas indicam possibilidades de soluções colaborativas. Outras acenam para soluções divergentes, trágicas e violentas. Infelizmente, as tendências destrutivas estão ganhando o jogo.
Algumas transformações apontam para um cenário apocalíptico. As principais, segundo numerosos especialistas, são as seguintes: agravamento da crise climática pela intensificação do novo período geológico do Antropoceno; caminhada rumo ao ponto da singularidade digital de 2045 (domínio das máquinas sobre os humanos); advento do transumanismo e de nova biopolítica com tendências desumanizadoras; um nova Guerra Fria entre potências do Ocidente e do Oriente; intensificação de conflitos armados regionais, como os da Ucrânia e Gaza; impacto dos grandes deslocamentos transnacionais (migrações de fome e escassez, de guerras e de refugiados ambientais); ameaça à sobrevivência das democracias pelo fortalecimento do extremismo de direita.
O problema é que não existem governos com capacidade para enfrentar as catástrofes climáticas, estancar as ações de depredação do meio ambiente e imprimir direção e sentido às transformações em curso. Com isso crescem as tendências de acirramento dos conflitos sociais, políticos, econômicos e militares, tanto internos quanto internacionais.
As tendências conflitivas assentam-se em três razões principais: 1. Os impactos das mudanças climáticas provocam escassez de recursos e isto desencadeará a luta por recursos diversos. 2. A salvação do meio ambiente planetário e da vida implicará mudanças drásticas em relação às quais haverá resistência de grupos econômicos e de Estados. Em determinadas circunstâncias, é provável ser necessário o uso da força para a contenção da crise e para alcançar os objetivos da sustentabilidade. 3. As medidas de mitigação dos efeitos catastróficos e os investimentos necessários para mudar os padrões de produção, de consumo, de vida urbana, de energia e das políticas públicas em geral exigirão somas estratosféricas. Ocorrerão grandes disputas para determinar quem pagará os custos dessas mudanças. As forças hegemônicas dos mercados e do capitalismo globalizado agem para socializar os prejuízos e privatizar os benefícios.
O atual cenário global não favorece o enfrentamento eficaz da crise ambiental nem é capaz de viabilizar um desenvolvimento sustentável no sentido forte do termo. Ao contrário, as catástrofes ambientais e as mudanças indicadas acima agravam a governabilidade global e interna.
Esse quadro de crise tem estimulado saídas particularistas e nacionalistas nos diversos países, favorecendo a competição em detrimento da colaboração. Isso reforça o descompromisso dos Estados com os acordos firmados nos fóruns internacionais. Os nacionalismos extremados de direita alimentam teorias negacionistas sobre as mudanças climáticas.
Por outro lado, a desmaterialização provocada pela economia digital aumenta a extraterritorialidade de atividades produtivas e comerciais, enfraquecendo a regulação nacional, provocando um domínio crescente do mercado financeiro e das plataformas digitais oligopolistas, aumentando o impacto das externalidades sobre as economias locais, fragilizando a regulação jurífica de justiça e de proteção ambiental e social. Essas circunstâncias deterioram a capacidade de coordenação das instituições multilaterais e das jurisdições internacionais e supranacionais.
A captura política dos Estados nacionais por grupos particularistas e depredadores é um enorme problema, agravado pelo crescimento dos movimentos de extrema-direita, que adotam políticas negacionistas e de desmonte das proteções sociais e ambientais. É necessário aumentar a consciência dos riscos sistêmicos e engajar a sociedade nesse debate. Somente com consciência social, organização e mobilização seremos capazes de deter esse trem sem freios que se move rumo ao abismo.
Nos desabituamos do trabalho de verificar
Todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente, do penoso trabalho de verificar. É com impressões fluídas que formamos as nossas maciças conclusões. Para julgar em Política o facto mais complexo, largamente nos contentamos com um boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Para apreciar em Literatura o livro mais profundo, atulhado de ideias novas, que o amor de extensos anos fortemente encadeou—apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo escurecedor do charuto. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos—«Este é uma besta! Aquele é um maroto!» Para proclamar—«É um génio!» ou «É um santo!» oferecemos uma resistência mais considerada. Mas ainda assim, quando uma boa digestão ou a macia luz dum céu de Maio nos inclinam à benevolência, também concedemos bizarramente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa ou a auréola, e aí empurramos para a popularidade um maganão enfeitado de louros ou nimbado de raios. Assim passamos o nosso bendito dia a estampar rótulos definitivos no dorso dos homens e das coisas. Não há ação individual ou coletiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos a promulgar rotundamente uma opinião bojuda E a opinião tem sempre, e apenas, por base aquele pequenino lado do fato, do homem, da obra, que perpassou num relance ante os nossos olhos escorregadios e fortuitos. Por um gesto julgamos um carácter: por um carácter avaliamos um povo.
Eça de Queirós, 'A Correspondência de Fradique Mendes'
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