terça-feira, 1 de outubro de 2019

Brasil de porre


Livros livres

Livros devem ser livres. Plurais. Ideias alheias em confronto com as nossas nos enriquecem. Sem imposição de pensamento único. Mesmo se o que está escrito em algum livro for uma bobagem.

Cannaday Chapman
Algo alentador no país hoje é a sede de leitura. Apesar das dificuldades. O ensino é capenga. Bibliotecas desatualizadas, só abertas em horário comercial. Indústria livreira em crise. Grandes livrarias fechando. Compras governamentais para escolas suspensas.

Mas na contramão, há sinais animadores. Pequenas livrarias resistem. Clubes de livros e blogs literários proliferam. Professores insistem em explorar com seus alunos o potencial que pulsa na literatura. Festas literárias se multiplicam por incontáveis cidades no interior .

Livros nos dão modelos (como o “Rondon” de Larry Rother) ou mostram males a combater — da escravidão (na obra de Laurentino Gomes) ao autoritarismo ( na de Lilia Schwarcz).

Não adianta vetarem Míriam Leitão e Sérgio Abranches em Jaraguá do Sul — isso lhes dá maior ressonância. Não adianta proibir uma HQ com beijo gay — isso faz 14.000 livros sobre o tema serem distribuídos de graça. Não adianta um diretor da Funarte ofender Fernanda Montenegro — o público a cobre de carinho, o apoio a nossa atriz maior viraliza nas redes. A velha lição: “você corta um verso, eu escrevo outro.”

A cultura resiste às ameaças do obscurantismo, cuja inspiração resulta das trevas que dominam o poder do Estado, como lembrou o ministro Celso de Mello.

E por falar em resistência: onde se meteram nossos estudantes antenados, no dia em que milhões de jovens saíram em defesa do meio ambiente, em mais de 150 países? Tão combativos ao ocupar escolas durante meses em 2016, tão aguerridos ao tomar as ruas quando não era só pelos 20 centavos de aumento na passagem em 2013, agora que nossas florestas ardem e o mundo protesta, eles não ligam a mínima? As raras manifestações aqui mal tinham meia dúzia de gatos pingados. Em sua maioria grisalhos. Que silêncio é esse? Cadê o gás da moçada?
Ana Maria Machado

Mundo bom, não para pobres

Triste vida, a do pobre, neste mundo de hoje. Porque o mundo cresceu e embelezou, mas não para eles
Rachel de Queiroz

Para que não se faça o jogo de Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro não precisa de uma imprensa para chamar de sua. Já tem. Poderia reunir parte dela sob o rótulo de Sistema Bolsonarista de Televisão (SBT). E outra parte num condomínio conhecido como Diários e Emissoras Associadas Contra o Socialismo – ou algo parecido com isso.

Ele estrebucha na maca, como o fez, ontem, mais uma vez porque os maiores veículos de imprensa do país resistem aos seus encantos e à sua conversa fiada, e teimam em continuar fazendo jornalismo com independência. Na sua fala diária à saída do Palácio da Alvorada, ele voltou à prática do seu esporte favorito – atacar os jornalistas.

Dessa vez disse que só voltará a falar com eles quando retificarem muito do que foi escrito e dito sobre seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque. Pura estultice! Que mais adiante ele esquecerá. À falta de um projeto para o país, Bolsonaro governa de preferência por meio da palavra.

Na verdade, pouco se lhe dá se apanha por causa de tanta estupidez que diz – desde que se reproduza tudo o que saia de sua boca. A imprensa chapa branca reproduz sem fazer o menor reparo, como se espera dela. A imprensa crítica reproduz com o cuidado de oferecer o contraditório, que é o que dela se espera.

Pode-se ser mais seletivo para não dispender energia com o que é desimportante, não conferir o mesmo peso ao que é relevante e ao que não é, e não exaurir o distinto público. O desejo dos governantes é que se fale deles, mesmo que mal. Por que satisfazê-los?

Essa é a história da sua desgraça

Menos pela indignação que ainda pulsa quando o cinismo é de calibre de agredir, é de um tédio absoluto acompanhar o debate do drama brasileiro.

Dá pra soltar o Lula e a bandidocracia sem soltar o PCC? Se não der, paciência, solte-se também o PCC. O essencial para a felicidade geral da Nação, e especialmente para o cidadão desarmado dos morros, com ou sem bandido na rua, é reafirmar a pureza do “estado de direito”.

Pois é…

Daí pra baixo são de bocejar os articulistas que espinafram “nos outros” os mesmíssimos delírios que são seus em textos em que a única variação – que não modifica nem o sentido nem a pertinência da crítica – é se o apedrejado nas primeiras linhas é o bolsonarismo ou o lulismo.

É de encher de pena o esforço acaciano dos bem intencionados que insistem em demonstrar racionalmente, tim-tim por tim-tim, porque são erros os “erros” em que ha centenas de anos insiste a minoria que no-los impõem porque eles lhes enchem indecentemente os bolsos de dinheiro.


É de doer o país moribundo, a barriga roncando, parado à espera de que terminem os intermináveis argumentos dos argumentadores – os “excelentíssimos” e os nem tanto – que se condoem e enchem de erudição para citar senões se o abuso é de otoridade contra otoridade. Contra o povo valem todos. Pobre não tem advogado. E nem imprensa mais. Inventada para advogar por ele hoje ela fala pela boca da classe media que sobrou e não é classe, é casta. Aquela que toda junta não enche a Praça dos Três Poderes mas come metade do PIB não por merecimento mas pela força das únicas leis draconianamente exigidas neste país, matem a quem matarem.

O problema do Brasil, o único problema do Brasil do qual todos os outros “emanam”, não é de lei, é de imposição da lei pela ausência da qual, a cada crise, a cada namoro com a morte, descambamos para a legisferância hiperbólica, saímos adjetivando crimes, atravancando o país que as segue com mais uma batelada de leis que nunca serão exigidas da privilegiatura, tornando perenes as cirurgias keynesianas, tentando fazer do “tripé” de breques o acelerador da economia … até o próximo forró do STF.

Quem impõe “as soluções” não acredita nelas. Quem as sofre menos ainda. E lá fora a guerra come carne de criança.

Esquerda? Direita? Centro? Tudo de novo!

Titulo I. Parágrafo Único (e nessa altura já lá vão sete fora o preâmbulo pois que a “Constituição dos Miseráveis” mente até na descrição de si mesma). “Todo poder emana do povo que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos dessa Constituição”. Dito isso dane-se o povo, para não usarmos aquela outra expressão mais chula que subiu à sua cabeça ao ler este trecho e descreve muito mais fielmente o que tem sido feito com ele. Daí pra frente é o Estado discutindo com o Estado, o Estado disputando com o Estado, o Estado “fiscalizando” o Estado, o Estado perdoando o Estado.

O povo não existe, nem para a esquerda, nem para a direita, nem para o centro, imprensa incluída. A única diferença entre o lulismo e o bolsonarismo é que no bolsonarismo a imprensa mantem aberto um olho. O resto todo cedo ou tarde se acerta ou pela comunhão de rabos presos, ou porque continua sendo ponto pacífico que o povo, o eterno tutelado, é incapaz de procurar sua própria felicidade. Está aí, debaixo de bala e desarmado, porque “vota mal”. Até o povo para quem “povo” é sempre “o outro” acha isso do povo: “Nós somos um perigo para a democracia”…

Tratemos do que é sério com quem é sério, portanto. De especialista para especialista, diga lá: quem invadiu o poder de quem? quem “agiu por inspiração política”? quem teve ou não teve uma “motivação razoável” para agir contra o ladrão com mandato? que lado ganhou? que lado perdeu?

E a indisciplina fiscal, é ou não é função do “ente” A ter recebido garantias para a gastança do “ente” B? Qual a “dosimetria” correta a ser aplicada pelo funcionário do Estado indemissível A contra o funcionário do Estado indemissível B para que ele se comporte bem da próxima vez (já que sempre, eternamente, por cláusula pétrea da constituição que o povo não ratificou, faça ele o que fizer haverá sempre uma próxima vez)? E se a “dose” sugerida voltar-se ali adiante contra os professores? Cuidado com o que diz, veja lá! No máximo meios pensamentos; no máximo meias palavras…

“Que cada poder cumpra com esmero o seu papel”? Comecemos, então, pelo primeiro do qual todos os outros não passam de “emanações”. Só o eleitor, o povo investido de poder político, tem legitimidade para agir “por inspiração política” sem ter de dar justificativas para isso. É um direito que está embutido no próprio conceito de “representação”. Basta que se sinta mal representado, sem mais, para que o ato político de cassar o mandato do seu representante seja indiscutivelmente legítimo numa “democracia representativa”.

Mas delegue esse poder a qualquer outro e a guerra suja imediatamente se instala. Essa é a historia do Brasil. Essa é a história da sua desgraça, leitor

Amarre-se cada representante aos seus representados com eleições distritais puras. Arme-se a mão deles antes, durante e depois das eleições para dar e tirar mandatos, recusar leis que soltam bandidos, ter as iniciativas de pautar compulsoriamente os legislativos e despir a toga de quem não merece vesti-la desde lá da primeira instância. Quantos dos ministros que você conhece chegariam às portas do STF envergando uma? Quantos membros da bandidocracia ainda estariam de pé? “Mais Brasil menos Brasilia” é só repartição de dinheiro “deles” com “eles” ou é representante fiscalizando representado e decidindo ele mesmo o que acha justo ceder ao coletivo do que ganhar suando? Disciplina fiscal consegue-se só impedindo um ente de governo de avalizar a gastança dos outros ou, como acontece onde ela existe, exigindo autorização direta do povo para cada obra, para cada despesa que vai violentá-la?

Você decide. Até porque o que o povo realmente decide, acontece.

Pensamento do Dia


Janot é o espírito do tempo

O ímpeto homicida — jamais materializado, de súbito revelado — de Rodrigo Janot tem um objetivo: vender o livro que está por lançar. Há método na confissão; cálculo na estratégia comercial, para a qual decerto colaborará o arbítrio de Alexandre de Moraes ao determinar busca e apreensão na residência do ex-procurador-geral da República. Vai vender. Recursos doentios de convencimento nunca foram tão bem-sucedidos quanto neste Brasil corrente. Vai vender. Não serão poucos os de coração mexido pela fantasia de um justiçamento contra ministro do Supremo dentro do tribunal. Vai vender.

Janot, lavajatista raiz, andava esquecido. Uma injustiça, sobretudo da parte do bolsonarismo. Poucos trabalharam tanto — dispararam tantas flechas a esmo contra a atividade política — quanto ele pela eleição de Bolsonaro. Missão cumprida, criminalizada de todo a classe política, o arqueiro sumiu. Não o fez sozinho. (Ou alguém terá notícia de Marcelo Miller, outrora dublê de procurador e advogado dos delatores irmãos Batista?) E decerto o fez com intuição. Antecipando o espírito do tempo, Janot sempre soube farejar quando, como — aqueles vazamentos medidos que o transformariam em fonte da paixão — e para quem falar. Um trovador de si mesmo.

Aí está. Ele voltou. Perdeu o sócio, mas retornou à militância. Ao revelar sua intenção de matar Gilmar Mendes com um balaço na cara, reencontrou lugar privilegiado entre os justiceiros jacobinistas no altar do bolsonarismo. Ou não teremos visto, da boca de graúdos pastores da fé bolsonarista, pregações segundo as quais Janot não merecia ser julgado, tão próximo teria estado de fazer a vontade do povo?


Não acredito em Janot. Nunca acreditei, conforme expressam os tantos escritos que dediquei a seu projeto de poder lavajatista-sindical. E não me surpreenderia se tivesse mesmo inventado essa novela best-seller: o desejo de matar o algoz togado, o vilão do STF, impulso em defesa da honra, a ser seguido de suicídio, movimento de repente dissuadido pela mão de Deus.

Sou grato à mão de Deus. Salvou duas vidas, mas sem poupar uma delas de expor o próprio desequilíbrio. É verdade que Janot — agente desestabilizador da institucionalidade — sempre teve atuação seletiva transparente, ajustando-se conforme as circunstâncias tocavam seu programa de ascensão privada, segundo exprimem suas existências antes e depois do impeachment de Dilma Rousseff. Estava lá para quem tivesse olhos de ver. Exemplo? Segundo também confessa, Dilma ainda presidente, teria sido pressionado por Michel Temer a não investigar Eduardo Cunha. Ficou bravo. Conta que xingou. Mas — sem qualquer reação funcional — não deixou de prevaricar. Janot já era atirador — ou não-atirador — de ocasião. A forma como manipulava a arma é que nos deveria chocar.

Nunca será demais, porém, ter acesso à mente do sujeito. Daí por que sou grato ao Senhor. Não se pode poupar o homem da própria perversidade o tempo todo. Verdadeira ou não a trama em que por pouco não matou o desafeto, de todo modo ficamos sabendo que essa cabeça — esse indivíduo duas vezes líder da lista tríplice entre os pares — comandou o Ministério Público Federal por quatro anos e foi herói (e ganha pão) de muita gente boa.

Procurador-Geral da República, Janot, este detonador de estabilidades, então representava o titular da ação penal; o detentor, delegado pela sociedade, do poder de acusar — uma prerrogativa que, depravada, converte-se facilmente em ferramenta para a defesa de interesses corporativos e em pistola para balear a reputação de adversários. Ou melhor: de inimigos. Quem entra — ou sonha entrar — armado, para matar, no local onde atua profissionalmente não tem senão inimigos.

Rodrigo Janot, este cérebro, foi procurador-geral da República contra seus ódios pessoais. Que nos lembremos da insustentável denúncia contra o presidente Temer, um engodo baseado na delação criminosa — ainda não extinta, muito menos esclarecida — dos donos da JBS; aquela flechada, de 2017, que paralisou o país, fulminou uma reforma da Previdência (que contrariava proveitos do MP) e jogou o exercício da política no lixo.

Janot levou o justiçamento — ainda que somente em delírio de bravura para fins de faturar — a outro nível. Não atirou em Gilmar Mendes; mas ora financia — há anos alimenta — os que gostariam de acanhoar o STF, a instituição. Janot é cabo e soldado. É simbólico do zeitgeist lavajatista que a mentalidade daquele um dia incumbido de denunciar formalmente, um marco da civilização contra a barbárie, cultive o elã de assassinar como maneira de defender a honra. Esse homem captou tudo. Ele é o próprio espírito do tempo. Ainda pode acabar ministro da Justiça.

Que Deus tenha misericórdia desta nação.

Pensamento amordaçado

Tudo isso é coisa de ditadura, num exemplo que a história, certamente, julgará como um triste período de “caça do Supremo a seus inimigos”. Tal situação é vergonhosa. Cria-se, em plena ordem constitucional estabelecida pela Constituição de 1988, uma verdadeira mordaça
Gustavo Tadeu Romano, ex-procurador regional da República

A nova ofensiva dos generais de Bolsonaro pelo twitter

Em 1854 um jornalista irlandês foi enviado pelo Times para acompanhar as tropas britânicas em luta na Criméia. Foi pelas mãos do repórter William Howard Russell que a população inglesa tomou conhecimento dos horrores da guerra, dos mutilados perecendo sem ajuda ou lenitivo, da falta de ambulâncias e dos ataques frontais. Em pouco tempo, o Estado-Maior britânico percebeu que deixar jornalistas circulando livremente pelos campos de batalha não era boa ideia.

Na Primeira Guerra Mundial, a liberdade dos correspondentes de guerra seria reduzida pela censura e controle exercidos pelos beligerantes. Principalmente, após o fracasso da ofensiva em Gallipoli, quando tropas francesas e britânicas desembarcaram perto de Istambul na tentativa de pôr o Império Otomano fora de combate. Tudo noticiado pelos jornais. Na ofensiva seguinte, em 1º de julho de 1916, o comando inglês moveu seus homens pelo vale do Rio Somme, no norte da França, em meio à barragem das notas oficiais.

Milhares morreram no primeiro dia de combate em troca de poucos metros de terra. Foram obliterados pelas armas alemãs depois de ganharem o topo das trincheiras. Ao fim da tarde, a poeira do Somme se tornara Inglaterra como no versos de Rupert Brooke, prevendo sua morte um ano antes no mar Egeu, quando se dirigia a Gallipoli, para “enriquecer ainda mais a rica Inglaterra”.

Enquanto o primeiro dia do Somme custava aos britânicos 57.540 baixas, a imprensa inglesa informava nas manchetes o “grande avanço das tropas” do país. O público que lesse com atenção os jornais e revistas encontraria, porém, no fundo das publicações, as intermináveis listas com o custo de tal sucesso. Era a oportunidade para descobrir a verdade censurada pelos generais. Editada em Londres, seguindo o modelo da francesa L’Illustration, a revista The Sphere publicava seu roll of honour, com as fotos dos oficiais mortos e suas pequenas biografias. Ali estava uma informação inconveniente.

Cem anos depois, os generais do Planalto veem o bolsonarismo oscilar entre a busca da transparência de suas ações e as conveniências da velha política, entre a pacificação do País e o incentivo à polarização e o confronto. Alterna-se a escalada dos conflitos com o Congresso, o Supremo e a sociedade civil com a contemporização. Quem trata a política como continuação da guerra, procura aliados em vez de interlocutores. E terá inimizades em vez do respeito de quem compartilha com ele o destino da Nação.

O chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, é um dos guerreiros ideológicos do Planalto. Um colega seu, também general, diz que a convivência de Heleno com o radicalismo bolsonarista pode ser explicada pelo fato de ele acreditar ter a paternidade do atual governo.

Heleno abriu recentemente uma conta no Twitter. Resultado: de 52 publicações feitas pelo general, 14 (26,9%) atacam jornalistas e a imprensa. Nem um humorista, que lhe creditou uma frase inventada, escapou do revide. Era uma brincadeira, mas o humor do general não lhe permitiu entender a blague. Heleno desmentiu ter dito a frase como se o texto humorístico fosse reportagem.

Seu antigo colega de Planalto, o general Santos Cruz, distanciou-se do discurso que sugere que a imprensa seja uma força inimiga. Mesmo quando discorda do que os jornalistas publicam, Santos Cruz é mais comedido e civilizado na crítica.

Seu substituto, o general Luiz Eduardo Ramos, comporta-se de forma semelhante. Mas, no fim de semana, resolveu debutar como o mais novo ombudsman da imprensa brasileira. O ministro publicou dois tuítes sobre o chamado Gabinete do Ódio, o grupo de jovens assessores do presidente que se apoderou dos ouvidos do primeiro mandatário conforme o leitor viu aqui. Trata-se de turma audaciosa, que aconselha Bolsonaro a cortar cabelo em vez de receber o chanceler francês.

Ramos disse em sua rede social: “Tomei conhecimento sobre matérias divulgadas na imprensa sobre um suposto ‘Gabinete de Ódio’, subordinado ao PR, que estaria promovendo ataques contra ministros do Governo. Nada mais fantasioso! Conheço o trabalho sério desses assessores, com os quais mantenho excelente relação.”

E, depois, ainda completou com outro tuíte. Ei-lo: “Ninguém pode negar ou diminuir ou papel relevante que os jovens assessores tiveram na vitória do Pres BOLSONARO, e continuam tendo!! Parte da imprensa tenta atingir esses Guerreiros!! A eles o meu respeito, Tercio, Matheus DIniz e Matheus Gomes!! Prossigam na missão!”

Durante a 1.ª Guerra, a “voz anônima das ruas” fez Winston Churchill, então Lord do Almirantado, renunciar a seu cargo diante do fracasso em Gallipoli. Ninguém imaginou então culpar a imprensa pelo desastre militar na Turquia, com seus 50 mil mortos.

O bolsonarismo patina com a popularidade atolada em 30%. Suas facções e filhos se devoram em intrigas palacianas, enquanto os generais, a exemplo do chefe, lançam uma nova ofensiva contra a imprensa. Aos que desejam saber a verdade que Ramos e Heleno procuram preservar dos olhos de muitos, basta seguir o exemplo dos cidadãos britânicos. A leitura atenta dos jornais revela muito mais o que se passa no teatro de operações do Planalto do que o twitter dos generais.

Blindagem de Flávio expõe pavor dos Bolsonaro

Em dezembro do ano passado, numa de suas aparições ao vivo nas redes sociais, Jair Bolsonaro comentou o caso que nasceu de relatório do Coaf sobre a movimentação bancária suspeita do "faz-tudo" Fabrício Queiroz. "Se algo estiver errado —seja comigo, com meu filho ou com o Queiroz— que paguemos a conta deste erro. Não podemos comungar com erro de ninguém. (...) O que a gente mais quer é que seja esclarecido o mais rápido possível, que sejam apuradas as responsabilidades, se é minha, se é do meu filho, se é do Queiroz. Ou de ninguém". Era tudo lorota.

Decorridos nove meses, o primogênito Flávio Bolsonaro frequenta o epicentro da suspeição como um caso inédito de superblindagem. O primeiro-filho teve a investigação contra si travada por duas liminares da Suprema Corte. Numa, expedida em julho por Dias Toffoli, trancou-se o inquérito que corria no Rio de Janeiro sob a alegação de que o Ministério Público obteve dados detalhados do Coaf sem autorização judicial. Algo que era tido como normal havia duas décadas. Noutra liminar, divulgada na noite desta segunda-feira, Gilmar Mendes reafirmou, a pedido da defesa de Flávio, o trancamento determinado por Toffoli.

A sobreposição de escudos deixa a impressão de que os investigadores acharam o mapa do tesouro. Não bastou Toffoli suspender todas as investigações do país nutridas com dados detalhados do Coaf. Bolsonaro preocupou-se em desossar o órgão. Rebatizou-o de Unidade de Inteligência Financeira (UIF). E transferiu-o para os fundões do Banco Central. Como se fosse pouco, sobreveio a decisão de Gilmar de trancar com chave extra a porta que já estava fechada. O ministro proibiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro de julgar até habeas corpus ajuizados pelos advogados do Zero Um.

Na manifestação de dezembro, feita poucos dias antes de sua posse na Presidência, Jair Bolsonaro esbanjava destemor. Não via problemas em que dados do Coaf fossem jogados no ventilador: "Não sou contra vazamento. Tem que vazar tudo mesmo. Nem devia ter nada reservado. Tem que botar tudo para fora e chegar à conclusão". Algo mudou. E não é o interesse do capitão em proteger o brasileiro de eventuais excessos dos órgãos de controle. O que há de diferente é o medo, o pavor, o pânico do que vem por aí nas investigações.

Há momentos em que os fatos colocam um governante e sua biografia em relação direta, fulminante, com a história. São instantes pânicos. É quando as qualidades de um governante são submetidas a teste. Fernando Collor encarou o seu momento pânico no dia em que o irmão ligou-o aos trambiques de PC Farias. Na sequência, o motorista Eriberto informou que PC bancava o fausto da Casa da Dinda. Collor pediu 48 horas para explicar-se. Foi escorraçado do cargo.

José Sarney conheceu o seu instante pânico antes mesmo da posse, em 15 de março de 1985. Registrou-o em suas memórias. José Fragelli, então presidente do Senado, discou para sua casa de madrugada. "Não crie mais caso, você assume às 10h". Sarney manteve a equipe de Tancredo, foi manietado pelo PMDB de Ulysses Guimarães e firmou-se como um governante fraco.

João Figueiredo encontrou-se com a história no episódio do Riocentro. Em vez de apurar os fatos e punir os responsáveis, tentou tapar o sol. Saiu do Planalto com a peneira na mão. Pela porta dos fundos. Antes, pediu aos brasileiros, numa entrevista, que o esquecessem. Foi atendido.

Ernesto Geisel teve melhor sorte. O ministro Sylvio Frota (Exército) rebelou-se contra sua autoridade. Demitiu-o sem hesitações. O gesto rendeu-lhe a fama de patrono da abertura política.

Fernando Henrique Cardoso também deparou-se com um momento pânico. Permitiu e até estimulou os movimentos fartos do amigo e ministro Sérgio Mota, o Serjão. As expansões resultaram na menção ao nome do ministro, associado a uma tal "cota federal" nas fitas que documentam a compra de votos para a aprovação da emenda da reeleição. Podendo afastar Serjão, ainda que temporariamente, FHC preferiu mantê-lo no posto e sufocar uma CPI. Seu governo jamais foi o mesmo.

Lula faceou seu primeiro momento pânico quando Roberto Jefferson arrancou o mensalão do armário. O morubixaba do PT esbarrou no óbvio e seguiu em frente. Veio o petrolão. Lula deu bom dia ao óbvio e elegeu Dilma. O PT consolidou-se como máquina coletora de dinheiro. Veio a Lava Jato. Deu em delações, xilindró, impeachment, Michel Temer, deslegitimação da política e Jair Bolsonaro.

"Dói no coração da gente, porque o que nós temos de mais firme é o combate à corrupção", afirmou aquele Bolsonaro de dezembro. Agora, o capitão percorre a conjuntura como inimigo cada vez menos oculto da cruzada anticorrupção que ajudou a elegê-lo presidente. Velho amigo do PM aposentado Queiroz, o presidente e seu primogênito vivem a síndrome do que está por vir. O pânico dá a Bolsonaro a aparência de um típico político brasileiro. Grosso modo falando.