sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Pensamento do Dia

 


Morrendo pela boca

O fim de ano tem seus perigos particulares. Tudo parece meio elétrico. As pessoas ficam impacientes, querem chegar logo, andam e dirigem de qualquer jeito. Outro dia, aqui no Rio, vi um mensageiro carregando uma bandeja de rabanadas ser atropelado por uma motocicleta ao atravessar a rua no meio dos carros. Nada de muito grave, mas as rabanadas foram literalmente para o espaço. Essa sofreguidão vem de longe: foi num Natal que o famoso rei inglês João (1167-1216), contemporâneo de Robin Hood, morreu de indigestão de lampreias. Já o nosso Luiz Gonçalves dos Santos (1767-1844), importante historiador do Brasil Imperial, mais conhecido como padre Perereca, morreu de indigestão de carambola.

O problema, no fundo, está em tudo que entra pela boca em qualquer época do ano. Agátocles (361-289 a.C.), governante de Siracusa, morreu engasgado com um palito. E Cláudio, imperador de Roma (10 a.C.-54 d.C.), ao constatar que sua mulher estava lhe servindo cogumelos envenenados, desesperou-se e introduziu uma pena na garganta para induzir vômito. Morreu também engasgado com ela.

Veneno ---cicuta--- foi o que ingeriu o filósofo ateniense Sócrates (470 a.C.-399 a.C.), preso por motivos políticos e condenado a "suicidar-se". Era tão amado pelos jovens que os juízes não ousaram executá-lo. Sócrates poderia ter fugido, mas preferiu cumprir a sentença por "respeito às leis de Atenas", e bebeu a cicuta de um gole. Foi. Já o romancista britânico Graham Greene (1904-91), católico cheio de culpa e angústias, tentou se matar bebendo colírio. Como fracassou, preferiu viver. Sorte nossa.

E, falando em final feliz, Chita (1930-91), o chimpanzé capturado em bebê na África e levado para Hollywood, já era louco por banana em seu habitat. Mas foi na MGM, vendo seu colega Johnny Weissmuller, o Tarzan, comendo uma, que descobriu que ela era ainda mais gostosa sem casca.

Um banco laranja

Quando era discreto o charme da burguesia, as casas bancárias eram discretas também. Seus donos se compraziam no anonimato. No máximo, permitiam que gravassem, em letras de bronze, pequenas, o nome do estabelecimento na fachada lateral do edifício, sem espalhafato. Bastava um sobrenome, um topônimo, nada mais. O comércio do dinheiro se fazia em silêncio. Banqueiros fugiam dos holofotes e dos logotipos vistosos. Não queriam nada com a fama. A fortuna os satisfazia.

Agora, a paisagem fiduciária mudou. Olhando para os comerciais de banqueiros na TV, a gente até se espanta. Há peças verdadeiramente espetaculares – espetacular, aqui, no sentido que o filósofo Guy Debord emprestou à palavra (emprestou sem juros): “O espetáculo é o capital em tamanho grau de acumulação que se torna imagem”. Os efeitos especiais de vídeo valem mais do que mil letras de câmbio. A pecúnia perdeu a inibição. O vil metal virou marca desejante, e o que ele deseja é você.


As empresas que mercadejam bufunfa ofertam paixão para saciar a demanda do cliente. Desejam emprestar sentido à subjetividade do freguês (neste caso, “emprestar” com juros). Pretendem carimbar um logotipo nos sonhos pessoais que você acalenta, nos seus projetos. Querem ser sócias das modestas cobiças dos milhões de seres que portam cartões de crédito no bolso ou no celular. Bancos, agora, têm sex appeal.

Nestes dias em que espoucam as fluorescências festivas de final de ano, uma dessas organizações privadas, com agências instaladas em cidades e cidadezinhas, vem divulgando filmes promocionais para nos dizer que seu coração é “feito de futuro”. A campanha é bem-feita. O slogan, realmente espetacular (com royalties imateriais para Guy Debord). Um achado publicitário, uma fórmula convidativa para celebrar o réveillon.

Todo mundo tem, bem lá no fundo da alma endividada, a aspiração de ter lugar no futuro. Todo mundo almeja habitar o futuro. E, apresentada dessa forma tentadora, a ideia de um banco “feito de futuro” vem investida de força mágica, anímica, principalmente quando nos faz crer que ser “feito de futuro” é uma ambição que não cobra de ninguém o preço de jogar fora o passado. Futuro e passado se dão as mãos e se fortalecem, segundo o mantra do comercial, que, com isso, consegue fisgar a imaginação de quem quer perder nem o passado, nem o futuro, nem o presente.

Para melhor propagar sua receita de fusão temporal, o anunciante financeiro contratou a atriz Fernanda Montenegro, cuja magnitude paira acima do tempo. Com uma história pessoal mais rica do que todo o capital financeiro de todo o século 20, acrescido aí o primeiro quinto do século 21, a grande dama das artes brasileiras declara que nasceu e renasceu muitas vezes, na pele das personagens que encarnou. Ela convence e arrebata. Como suas personagens fazem parte da memória afetiva de tanta gente, o espectador, sedento de esperança, ávido por uma fábula que dê conta de renovar suas energias depreciadas, aceita se emocionar.

O comercial foi gravado num teatro espaçoso e sóbrio. O lugar está vazio. Não está propriamente às escuras; muitos pontos de luz em tons quentes, pontilhando as frisas, criam um ambiente de aconchego. Na fala cadenciada, a biografia da atriz vai se entrelaçando com a história do banco que a contratou. Ela declama frases fortes: “Eu me transformei muitas vezes para ser eu mesma”. O duplo sentido logo se estabelece. Será que fala de si? Ou será que fala da banca?

“Me fiz pedra”, ela diz, mas logo trata de qualificar: “Em movimento”. A ênfase que ela aporta a este “em movimento” elucida tudo. Ela se refere a uma pedra que rola, que não se acomoda. O gesto das mãos, com os indicadores girando um em torno do outro, reforçam a mensagem já impregnada ao imaginário contemporâneo: rocha (rock) e mudança (and roll).

A partir daí, a ambiguidade dá lugar a propaganda desinibida. A rocha tem menos que ver com a grande dama do que com a avantajada empresa bancária. Itaú, como se sabe, significa “pedra preta” em tupi-guarani. E essa rocha pretende “atravessar o tempo” – mudando a cor. A pedra preta não quer mais ser preta. A pedra preta quer ser laranja.

A palavra “laranja”, porém, traz um constrangimento, por assim dizer, discreto. Quando associado a operações contábeis, o termo designa uma fraude: o “laranja” é alguém que empresta o nome (a troco de uma ninharia) para um negócio que beneficiará um espertalhão, cujo nome não vai aparecer. Se é assim, por que um banco faz tanta publicidade para ser visto como laranja? Muito simples: para ser dono de uma cor quente, positiva, e, com ela, simplificar sua comunicação. Você vai ver essa frequência cromática e vai pensar naquela agência bancária.

Laranja, por que não? Há cores piores. Há concorrentes que são vermelhos, e não há correntista que proteste quando deposita seus caraminguás no vermelho. Ninguém liga que a conta fique no vermelho. Então, viva o laranja. Se você fizer as contas, verá que vai sair barato.

O futuro

Certa feita, Astrud Gilberto, João Donato e eu vínhamos de um estúdio de gravação, em Nova Iorque, quando passando por uma rua vimos uma cigana num sobrado e resolvemos consultá-la. Donato foi o primeiro a sentar-se frente a ela que, tomando-lhe a mão, disse: "Vou ler o seu passado." E Donato, com aquele ar perdido e olhar esgazeado, retrucou: "Não, gipsy, o passado eu já conheço. Fale do futuro." Desconcertada, a cigana voltou-se para nós e confidenciou: "Ele é maluco..." Claro. Só a loucura poderia ser tão lúcida. De uma tacada, Donato descartara o passado. Quantos, para exorcizá-lo, necessitam recorrer à psicanálise ou mesmo às autobiografias...

Vinícius de Moraes, pouco tempo antes de morrer, estava num bar - o Barbas - sendo entrevistado por uma jovem e inconsequente jornalista que, enquanto "dava um tapa num baseado", perguntou-lhe: "Poeta, você está com medo da morte?" No que Vinícius, indiferente ao constrangimento geral que se fez à sua volta, respondeu, serenamente: "Não, filhinha, estou é com saudade da vida..."

Conceitos como passado, saudade, levam a intermináveis reflexões. Por exemplo, o que o poeta teria querido dizer com "saudade da vida"? Acredito que não se referisse a “toda a vida", mas sim à vida como um todo. Concordo que tudo que já aconteceu, na vida, serviu como aprendizado, acrescentou, valeu. Mas, nem sempre, tudo foi gratificante. Nesse caso, para mim, ter saudade de alguma coisa ou de alguém é, exatamente, de como essa coisa ou essa pessoa ficou na nossa memória. E, nesse sentido, mais uma vez, a palavra saudade representa uma contribuição enriquecedora de nosso idioma. Porque, no meu entender, saudade pode até ser triste, mas nunca melancólica como sua contrapartida internacional, a nostalgia. Esta, ainda que provoque emoções, sempre me deixa um gosto de algo incompleto, inacabado ou que não se encaixa, como já o fez em outros tempos. Feito aquelas músicas, filmes ou amores antigos que, por mais que os tenhamos apreciado, sempre se ressentem ante uma revisão.

Assim é que tenho saudades de Vinícius e da época áurea da Bossa Nova. Mas é a nostalgia que me bate quando lembro do Brasil nos anos 60, o que poderia ter sido e não foi. E afinal, por melhores recordações que tenha de minha adolescência e juventude, nunca aceitaria nenhum acordo que me fizesse voltar àquela época a não ser que pudesse carregar comigo todo o cabedal de experiência acumulado até hoje. Posso até sentir saudade do que já fui, mas não me arrependo de não ser mais.

É comum, nos colégios, que os professores solicitem pesquisas de seus alunos, o que leva a garotada a sair por aí, de gravador em punho, entrevistando, sobretudo, artistas e intelectuais, sobre os mais diversos assuntos. Recentemente, um desses grupos invadiu meu ateliê para pesquisar-me - como era de esperar - sobre Bossa Nova, Música Popular Brasileira e tal. Foi quando uma menina, de enormes olhos castanhos, quis saber: "Carlos, como era no teu tempo?" Apanhado assim de surpresa, na hora respondi qualquer coisa, como: "Antes, preciso saber o que é o meu tempo." Não adiantava nem querer bancar o moderninho, porque o máximo que iria conseguir daqueles garotos era que me vissem como um "coroa legal". Seja lá o que tenha eu declarado, não pude dar àqueles enormes olhos castanhos uma resposta que eu sequer tinha para mim mesmo. Para começar, não só o meu tempo como o próprio conceito de tempo em si também pede reflexão.

Mais tarde, meditando sobre o assunto, veio-me à cabeça o filósofo Henri Bergson que, além de ter afirmado que o tempo é relativo, achava também que tempo é duração. Lembrei-me ainda - e mais uma vez - do poeta Vinícius de Moraes que parece concordar com isso, quando preconiza que o amor "...não seja imortal, posto que é chama mas que seja infinito enquanto dure". Marcel Proust (que foi aluno de Bergson) achava que o futuro nada mais é do que o passado projetado para diante. Como devo, então, pensar ou calcular meu tempo? Como tempo mecânico, contável, em horas, minutos, segundos? Ou o tempo como ele é percebido pelos meus sentidos? Em tempo contável, meu passado contém uma mala cheia. Devo, por isso, pensar que o meu tempo é o passado? Não sei. Em termos mais dinâmicos, seria melhor que fosse o presente, com seu dia a dia renovador. Mas o presente dura pouco, é muito rápido, vertiginoso. Quando a gente olha, já é passado. E o passado já passou. O que resta, afinal? Como perspectiva, só mesmo o futuro.

Então é isso. Já tenho a resposta para quando reencontrar a menina dos olhos castanhos: meu tempo é o futuro. Até lá, pois.
Carlos Lyra

Humor macabro

Os anúncios da imobiliária Harey Zahav para lotes de “pré-venda” em Gaza e os planos para “preparar as bases para um regresso” ao enclave pretendiam ser “uma piada” para os seus seguidores, mas inadvertidamente causaram um escândalo internacional

A imobiliária israelense, que trabalha principalmente em projetos na Cisjordânia, causou uma tempestade internacional quando publicou um anúncio em suas páginas de mídia social dizendo que está "preparando as bases para um retorno a Gush Katifa".


Gaza-Belém-Jerusalém, dezembro

“Perdi a minha casa. A casa da minha família. A casa da minha irmã. A casa do meu irmão. Tudo aquilo a que chamo casa. Estamos num estado horrífico."


Na noite de Natal eu estava na Praça da Basílica da Natividade (Belém, Cisjordânia Ocupada) com o telefone na mão quando chegou um áudio do meu amigo de muitos anos em Gaza, a quem chamei W. na primeira crônica para o PÚBLICO depois de 7 de outubro.

Durante semanas, enquanto eu ainda estava em Portugal, partilhei nas redes sociais mensagens trocadas com W., para que as pessoas tivessem um acesso direto às palavras (e por vezes imagens) dele. W. não estudou jornalismo, vem das ciências, mas é um observador nato, cabeça e coração. Trabalhou comigo em Gaza como tradutor e guia para muitas reportagens neste jornal. Vi as três filhas dele crescer, passei a ficar com a família quando estava em Gaza.

As filhas (e a mãe delas) já moravam noutros países a 7 de Outubro. W. estava na sua casa da Cidade de Gaza, com as sequelas físicas de ter sido preso e torturado pelo Hamas, como contei nessa primeira crónica. Incluindo ter dificuldade para andar. Mas os bombardeios de Israel forçaram-no a deixar a sua casa e ir para sul, como mais de um milhão de pessoas. Passou muito tempo acampado no exterior de um hospital em Deir Al-Balah, a meio da Faixa, com a família da irmã, que ele foi ajudar a tirar dos escombros, depois de um bombardeio. Entre as imagens que me mandou, vi a irmã, tão parecida com ele, cheia de escoriações, e uma das netas dela, sobrinha-neta de W., uma menina linda em estado de choque, também com feridas na cara, e a mão ligada. Ela quase perdeu a mão. Foi operada naquelas condições terríveis, tiraram tecido de outra parte do corpo.adora esta sobrinha-neta e também me mandou alguns dos desenhos que ambos faziam, acampados ali, com tão pouca comida, água, higiene. E depois veio o frio, a chuva, tendas de plástico, sem roupa de Inverno. E mais fome, cada vez mais fome. Desidratação. Doenças. W. decidiu ir a outra zona, Nusseirat, tentar arranjar comida, mas com o avanço da invasão terrestre, além das bombas, não conseguiu voltar para junto da família.

Cheguei a Jerusalém Oriental na noite de 10 para 11 de dezembro e desde então não tive notícias de W. Tentou ligar uma vez, depois não respondeu, desencontramo-nos. Eu não sabia onde ele estava. Se estava.

Nas primeiras semanas da guerra, por vezes a primeira mensagem dele era: “Am still alive” (“Estou vivo”) Como também as mensagens de R., jornalista profissional com quem trabalhei em 2017, a última vez que fiz reportagem em Gaza. Quem siga os palestinos nas redes reconhecerá estas palavras. Os milhões de seguidores, por exemplo, de Bisan, 25 anos, habituaram-se a começar o dia assim. Ela, eles, todas estas pessoas que são a nossa linha de vida com Gaza.

Ou a nossa linha da vida, mesmo.

Então, ao fim de 15 dias sem saber nada de W., aquele áudio caiu ali na noite de Natal, exatamente às 20h03, e pela primeira vez desde 7 de outubro trocamos mensagens estando ambos na Palestina.

Vou transcrever aqui as palavras dele que foram aparecendo no ecrã, mensagem a mensagem:

“Ainda estou funcional. A guerra está no seu auge. Perdi a minha casa. A casa da minha família também. A casa da minha irmã. A casa do meu irmão. Tudo aquilo a que chamo casa. Perdi contacto com aquele meu irmão que não tinha qualquer possibilidade de deixar Gaza. O IDF [Forças de Israel] está deliberadamente a forçar dois milhões e meio à fome e à sede. Estamos num estado horrífico. Figuras como zombies. Ainda estou em Nusseirat. O IDF exigiu que partíssemos daqui, mas o deadline de 72 horas acabou esta noite. Não há transportes, querida amiga. Tentei tudo o que podia para partir ontem e hoje. Vamos ver o que acontece amanhã. Espero conseguir chegar a Deir Al Balah amanhã.”

Quando lhe digo que estou em Belém, e toda a Belém está com Gaza, sem celebrar o Natal, pela primeira vez na sua história, ele responde: “Take care, dear friend.” E promete não perder a esperança. “Never. Inshallah.”

Eram 21h30. Já eu estava junto da incubadora com um Jesus queimado pelas bombas em Gaza que uma artista palestiniana instalou diante da missa de Natal. Não tenho mais notícias de W. até ao momento em que escrevo esta crónica, já em Jerusalém Oriental (Palestina Ocupada), dos lugares mais belos e tristes do mundo. E antes de a terminar, como se adivinhasse, escreve-me R., o outro amigo de Gaza, que há muito não respondia.

Transcrevo as mensagens dele:

“Bombardeio em Maghazi [junto a Deir Al Balah], não muito longe de mim, decidi sair daqui, mas não acho um lugar onde ficarmos. Parece que eu e os meus filhos vamos dormir na rua, não há um lugar em Gaza. Muita gente começou a fugir, estou a tentar, mas não sei para onde ir.”

Quantas vezes já os palestinos disseram isto a alguém, ou teriam dito, se houvesse WhatsApp, a meio de mais um bombardeio, mais um deslocamento, mais um êxodo, desde muito antes de R., W. ou eu termos nascido. E todos já temos cabelos brancos.

A minha última resposta para cada um está só com um tracinho.