segunda-feira, 18 de maio de 2015

A conta é sua, eleitor

Nada é tão ruim que não possa piorar. É o caso do sistema político brasileiro. O pouco que funciona, os parlamentares, com o PMDB à frente, estão querendo mudar. A reforma em tramitação no Congresso é concebida para afastar o eleitor da urna, facilitar a vida dos políticos e concentrar poder - o oposto do que as passeatas de 2013 pediam.

Não por acaso, os anos ímpares têm se notabilizado por manifestações contra quase tudo. Um dos alvos prioritários dos protestos são os políticos em geral - e alguns em particular. Por quê? Em anos ímpares não há eleições. O único jeito de o eleitor se manifestar é indo às ruas ou janelas.

Pois o Congresso está prestes a transformar os anos pares em anos ímpares da política também. O PMDB quer cassar o direito do eleitor de votar a cada dois anos e expressar seu descontentamento da maneira mais democrática que se conhece. Pela proposta que será apreciada nesta semana, só haveria uma eleição a cada cinco anos, para todos os cargos.

Quem perder que se contente em bater panelas ao longo de meia década, porque não haverá nenhuma outra maneira eficiente de demonstrar seu descontentamento. Não haverá mais eleições de prefeito e vereador alternadas com as de presidente e governador para liberar parte da pressão social acumulada a cada dois anos.

Enquanto a sociedade reclama maior participação nas decisões que vão impactar sua vida, os congressistas querem cortar a pouca que existe em 60%. Se haveria dez eleições ao longo dos próximos 20 anos, agora serão apenas quatro. Se a regra entrar em vigor já, a partir de 2016, em lugar de votar a cada dois anos, como têm feito desde o fim da ditadura, o eleitor só poderá votar em 2021, 2026, 2031 e 2036.

Se você é antipetista, imagine o que seria aguentar mais cinco anos de governo Dilma e dois anos a mais de mandato para o prefeito paulistano Fernando Haddad. Se você é petista, projete passar mais cinco anos sem poder nem sequer sonhar em tirar o PSDB do governo paulista. É o que o Congresso está pondo no fogo: uma panela de pressão do tamanho do Brasil, em meio a uma crise econômica e à perspectiva de racionamento de água. Além dos fabricantes de panelas, só os políticos têm a ganhar.

Depois da Operação Lava Jato, o financiamento de campanhas eleitorais passou a ser um problema até para quem o considerava uma solução para suas finanças pessoais. Marqueteiros estão estimando um corte de pelo menos 40% dos preços de produção da propaganda eletrônica - simplesmente porque quem paga a fatura está na cadeia ou vai fazer de tudo para não parar lá.

Propondo mandatos mais longos e menos eleições, os políticos estão tentando resolver um problema exclusivamente deles: diminuir o risco de ser preso ao buscar dinheiro para se eleger. É como se o empregador dissesse para o empregado que, para resolver o problema de caixa da empresa, passará a pagar o salário só de três em três meses.

Pelos padrões internacionais, as eleições brasileiras nem são das mais exorbitantes. Mas se o problema é financiá-las, que tal diminuir os custos eleitorais, em vez de cancelar a eleição?

Uma das partes mais caras das campanhas majoritárias são os programas de TV. São mais de 40 dias de bombardeio diário. Para cada spot de 30 segundos veiculado, há outro que foi gravado, mas nunca chegou a ir ao ar, porque não agradou quando foi mostrado em pesquisas sigilosas com eleitores. No final, são horas e horas de programação, boa parte jogada literalmente no lixo.

Por que não encurtar o horário eleitoral para três semanas, já que o eleitor define seu voto cada vez mais perto da eleição? Por que não acabar com os programas de meia hora - cuja audiência diminui a cada ano - e só veicular spots de 30 segundos ao longo da programação?

A resposta é a de sempre: se o eleitor pode arcar com a conta, por que os políticos haveriam de pagá-la?

No mato sem cachorro

Não dá claramente para identificar a lona servindo de cobertura. Muito menos é visível a olho nu qualquer elemento concreto que indique a construção do muro. Não dá, portanto, para determinar se o plano contempla a construção de gigantesco circo, ou de hospício de proporções jamais vistas.

Na verdade, o que fica visível é o nada. Ou melhor, o tudo. A ausência de um plano faz com que a desordem instalada torne qualquer coisa seja possível, ou, pior ainda, aceitável. É dessa maneira que tudo parece se resumir a uma sequencia de sacrifícios sem recompensa, ou (para alguns somente) recompensadas sem qualquer sacrifício. É o Caos.

Caos não traz benefícios. Apenas uma luta eterna pela sobrevivência imediata, simplesmente baseada na desordem, onde impera a entropia. Falta, enfim, razões, ideias e objetivos que formem algo que possa se assemelhar a uma nação. Ou pelo menos a seu projeto, mesmo que em construção. Sem isto, fica tudo sem direção, sem sonho, a deriva, enfim.

De um lado, pedem-se sacrifícios, ajustes, apertos nos respectivos cintos. Inexistem, entretanto, razoes para acreditar que, após todo o sacrifício, existira uma vida melhor. Pior ainda, não existem lideres capazes de explicar como seria caso realmente exista, esta vida melhor após o ajuste. Talvez por isso seja tão difícil conseguir apoio a medidas que, em outras circunstancias, seriam consideradas normais, de bom senso, recomendáveis, e até urgentes.

Todo este estado de coisas leva naturalmente a insatisfação generalizada. Não dá mesmo para imaginar que os responsáveis pelo atual estado de coisas estejam qualificados para a dura tarefa de corrigir erros, propor e propor soluções, e liderar a marcha em direção a dias melhores. Faltam competência, inteligência, vontade, e honestidade. Inexiste credibilidade.

É ai que, enquanto a vaca tosse muito e vai lentamente adentrando o lamaçal, a porca torce o rabo. Repetida e inutilmente. Ausência de ideias e de projeto não parece privilegia exclusivo daqueles que ocupam o poder.
Em país de crimes sem castigo; de quadrilhas sem chefes; de desertos de ideias, era natural que também existisse oposição que não opõe. Da mesma maneira que inexistem duvidas de que tudo precisa mudar, rareiam propostas, estratégias e lideres capazes de sugerir e liderar alternativas.

Ficamos, então, vagando perdidos neste deserto de ideias. No mato sem cachorro. Aferrados ao atraso. Forasteiros do que vemos e ouvimos. Velhos de nós mesmos.

O Brasil e os partidos


O País vive uma grave crise e, no entanto, as agremiações políticas vêm se comportando como se só os seus interesses propriamente partidários estivessem em jogo. As questões nacionais passam a segundo plano, servindo apenas de pretexto para os jogos cada vez mais brutos de poder. Governistas atuam como se oposição fossem, enquanto a oposição age como o PT de antanho, renegando até mesmo as suas próprias ideias. É como se o País tivesse de testar o abismo para logo recuar. Destaca-se nesse cenário o PMDB, que, mal ou bem, está contribuindo decisivamente para a aprovação das medidas provisórias do ajuste fiscal, absolutamente necessário como etapa preliminar do saneamento das contas públicas. 

O PT, a partir dos dois últimos anos do governo Lula e nos quatro do governo Dilma, levou o Brasil a uma situação econômica e ética insustentável. A tal “nova matriz econômica”, eivada de posições estatizantes e esquerdizantes, conduziu ao descontrole da inflação, ao produto interno bruto (PIB) negativo, às contas fiscais em desajuste extremo e, agora, ao desemprego. Nesse meio tempo, foi se apoderando cada vez mais da máquina estatal, pondo-a a serviço dos seus interesses partidários e eleitorais, como se só isso valesse. O País, enquanto bem maior, bem coletivo, não entrou nesse cálculo, sendo tão somente um meio de consecução dos objetivos exclusivamente partidários.

A conta dessa irresponsabilidade finalmente chegou e o partido, assim como seu governo, tem imensa dificuldade de reconhecer os seus próprios erros. Continua apostando no marketing e em discursos de esquerda cada vez mais radicais, como se aí se encontrasse a saída.

A esquizofrenia partidária, nesse contexto, só tende a aumentar. Sua expressão mais manifesta consiste na oposição que o PT faz a seu próprio governo, tendo chegado, inicialmente, a rejeitar demagogicamente as medidas do ajuste fiscal, condição mesma para que o País saia do atual atoleiro. Comporta-se como se o governo não fosse petista, como se essas medidas fossem coisa apenas do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, um “neoliberal”. Note-se que “neoliberal” significa, na atual conjuntura, a qualificação de uma política que tem como objetivo pôr as contas públicas em dia. Ser neoliberal significa tão somente ser responsável. A esquerda perdeu o discurso.

O PSDB, que deveria ser o partido líder da oposição, não faz melhor figura. Adotou a atitude do PT de antanho, vindo a criticar as medidas de ajuste fiscal como se fossem prejudiciais ao País. Ora, essas medidas seriam muito parecidas com as que Aécio Neves implementaria se tivesse sido eleito presidente da República em 2014. É bem verdade que estas seriam mais abrangentes e teriam também um forte componente de crescimento econômico. Em qualquer caso, um ajuste teria de ser feito.

Nesse sentido, os tucanos são contraditórios consigo mesmos, acabando por renegar o que defendiam na disputa eleitoral. Exercem uma oposição irresponsável, apostando também no fracasso. Acontece que o fracasso das atuais medidas econômicas, mais do que uma disputa partidária, seria extremamente daninho para o País. É como se os partidos brasileiros não tivessem a menor noção do significado de “oposição responsável”, voltada para o bem coletivo. Cada um olha apenas o seu próprio umbigo!

O PMDB, apesar de seus conflitos internos e da voracidade fisiológica de boa parte dos seus membros, está se saindo melhor. Graças às novas funções de articulação política assumidas pelo vice-presidente da República, Michel Temer, o partido está se colocando como aquele que melhor expressa os interesses nacionais. Sua atitude de defesa do ajuste fiscal, coerente com uma posição governista e reconhecendo implicitamente os erros que foram cometidos, sinaliza uma postura voltada para o bem coletivo, embora possa, evidentemente, usufruir os dividendos políticos em caso de êxito.

O vice-presidente tem clara consciência de que a não aprovação dessas medidas poderia vir a criar um quadro econômico e político extremamente maléfico para o Brasil. Reconhece os limites do jogo político, reconhece o que a Nação pode ou não suportar. E um downgrade das agências internacionais de avaliação de risco poderia ser insuportável!

O enquadramento do PT é um fato também novo nestes 12 anos de governos petistas. O partido sempre se comportou como se o governo fosse exclusivamente dele, deixando os partidos aliados em posição claramente subalterna. Agora, tentou fugir de suas responsabilidades e foi enquadrado. Procurou mesmo votar contra o ajuste fiscal, como se não fosse coisa de seu governo, jogando, como se diz, para a plateia. Foi obrigado a fechar questão pelo vice-presidente e pelo PMDB, que teriam ameaçado não levar as medidas provisórias do ajuste fiscal a votação.

Forçado a recuar, o PT terminou aprovando tudo o que professa não concordar. A desorientação é total. Na hora decisiva, teve medo das consequências de sua irresponsabilidade. Foi impelido a ser governo, apesar de si mesmo.

Acontece que o Brasil não pode ficar à mercê das vicissitudes dessas distintas posições partidárias. Se esta primeira etapa de aprovação do ajuste fiscal não for levada a cabo, e mais, se ela não for seguida de iniciativas de crescimento responsável, o nosso país é que será o maior prejudicado, o que significa dizer que o ônus recairá sobre o conjunto dos cidadãos.

O Brasil não pode ficar refém das disputas partidárias, como se estas fossem um mero jogo de substituição de posições. O governo age como se não tivesse sido oposição e a oposição atua como se já não tivesse sido governo. É como se contassem somente os interesses particulares de cada um. É como se nos pleitos eleitorais o bem coletivo e as propostas que poderiam a ele conduzir fossem um mero pretexto. Falta a escritura de um texto, de uma verdadeira narrativa, chamada Brasil.

As farsas e os furacões

Daqui a alguns anos, filhos e netos, criados e maduros e cada vez mais perguntadores, irão querer saber de nós como o Brasil conviveu por tanto tempo com os atuais presidentes da Câmara e do Senado, se os dois estavam sob investigação do Supremo. Como a vida continuava como se nada fosse com eles, enquanto todos os dias alguma notícia os envolvia em corrupção?
Você pode dizer que Eduardo Cunha e Renan Calheiros foram os homens mais poderosos do Brasil, sob a desconfiança da maioria dos brasileiros e inclusive dos próprios colegas, porque assim desejavam dentro e fora do Congresso.

Lembraremos que sempre foi assim. Que na mesma época em que Cunha e Calheiros mandavam, orientando as reações fortes do parlamento a qualquer gesto do governo, o senador Fernando Collor pedia a cassação do procurador-geral da República.

Collor, o caçador de marajás que renunciou à Presidência em 1992 para não ser cassado, e agora também envolvido na Lava-Jato, pretende calar o chefe do Ministério Público que o denunciou ao Supremo.


Cunha, Calheiros e Collor desfrutam de uma imunidade a que poucos podem almejar. São personagens a serviço não só do Congresso que os sustenta como comandantes, mas também de quem não pretende fazer nenhum esforço para que se afastem de onde estão. Para estes, é bom que lá estejam.
Cunha a Calheiros foram feitos do mesmo barro que deu forma a Collor. Todos são aberrações. Estariam bem na periferia da política, vivendo das migalhas do baixo clero do Congresso e de suas atitudes quase sempre indecorosas. Mas são protagonistas.

Collor tem muito a ensinar aos outros dois. O jornalista Mario Sérgio Conti, autor de Notícias do Planalto (Companhia das Letras, 1999), descreve em detalhes como o alagoano foi uma construção perfeita. Um certo jornalismo, tão zeloso de seus feitos, não pode renegar o crédito de ter ajudado a elaborar a figura de Collor como salvador.

Em abril de 1987, o governador de Alagoas foi apresentado em reportagem do então poderoso Jornal do Brasil como o homem que poderia moralizar o país. O livro de Conti relata (na página 46 da primeira reedição) que o JB exaltava: “Como impetuoso lutador faixa-preta de karatê que é, ele investe com golpes fulminantes e certeiros contra vários adversários ao mesmo tempo”.

Como, repita-se, o jornalismo é tão zeloso de suas façanhas, credite-se a literatura do texto acima aos jornalistas Augusto Nunes e Ricardo Setti, que ofereceram o adjetivado personagem ao Brasil como “Furacão Collor”. Pronto, tínhamos um jovem vigoroso e justiceiro para reconstruir a democracia.
O jornalismo que procurava ficar longe de tanta ventania já sabia, de Cacequi a Marau, de Canoas a Apucarana e de Macatuba a Tapejara, que Collor era uma farsa.

O livro de Conti deveria ser estudado, desde o Ensino Médio, para que nossos filhos e netos compreendam como os Cunhas e os Calheiros são criados e sobrevivem a tudo e como Collor afronta até o xerife que o investiga.

Cunha e Calheiros são os furacões de hoje, dedicados a corromper as relações já precárias entre Congresso e governo. Se não tivessem utilidade para os fomentadores desse embate político destrutivo, já teriam sido mandados embora pela parceria, como aconteceu com Fernando Collor em 1992.

É preciso vigiar


Quando cessa a vigilância e os esforços dos bons, os maus predominam
Pearl S. Buck

Que diabo de história é essa?

Estamos assistindo, país afora, aquilo que autores e agentes da doutrinação denominam "releitura da história na perspectiva dos excluídos". Segundo afirmam, sua original e acurada lupa vem corrigir o estrabismo dos vitoriosos, que teriam imposto a versão que melhor lhes convinha. É preciso, dizem, reescrever tudo porque a história foi mal contada.

Fui buscar meus livros. Eu precisava ver se deles constava que os portugueses haviam comprado a terra dos índios, ou que os bandeirantes se faziam acompanhar de assistentes sociais e antropólogos em suas incursões pelo interior. Nada. Também não encontrei qualquer obra relatando que os negros tivessem vindo para o Brasil a bordo de transatlânticos, atraídos pelos investimentos na lavoura açucareira. Tampouco li que as capitanias hereditárias fizeram deslanchar a reforma agrária, que Tiradentes se matou de remorso, ou que D. João VI foi um audacioso guerreiro português.

Em livro algum vi ser exaltado o fervor democrático e a sensibilidade social da elite cafeicultora paulista. A única coisa que localizei foi uma breve referência ao fato de que a tentativa de escravizar índios não deu certo por não serem eles “afeitos ao trabalho sistemático” (e isso, de fato, era preconceituoso: ninguém, sem receber hora extra, moureja tanto, de sol a sol, quantos os índios).

Mas a tal releitura vem impondo seus conceitos através da persistente ação de muitos professores ocupados com fazer crer que o conflito entre oprimidos e opressores, incluídos e excluídos seja o único e suficiente motor da história. Você sabe bem a quem serve essa alarmante simplificação.

Poucas coisas têm a complexidade dos fatos históricos. Ensina João Camilo, em consonância com Aristóteles, que a História tem causa eficiente (a vontade livre); causas materiais naturais (demográficas, econômicas, geográficas); causas materiais culturais (políticas, educacionais e religiosas); causas formais (doutrinas e ideologias); causas instrumentais (estruturas políticas); e causa final (grandes valores, sentido do bem, etc.).

Sendo assim, como pode prosperar uma simplificação que resume tudo à luta entre classes? São duas as razões. A primeira é político-ideológica: ela serve bem para o discurso da esquerda porque suscita o sentimento de revolta, fermento sem o qual sua massa de manobra não cresce. E a segunda é intelectual: a simplificação satisfaz os que têm dificuldade para entender fenômenos mais complexos.

Arranca-se o véu da mentira e se revela ao mundo que o paleolítico inferior dos indígenas era muito superior à cultura européia do século XVI. E de carona resolve-se o clássico problema: a quem culpar quando não havia FHC, neoliberalismo nem elite branca de olhos azuis?

Estamos quebrados. No civil e no religioso


O afastamento da presidente Dilma Rousseff da frente de relacionamento com sua base política no Congresso e a entrada no jogo do vice Michel Temer foram ações que deram ao governo lampejos de calmaria. Dilma no comando das relações políticas sempre se revelou um desastre, pelo que faz ou não, pelo que fala ou não, pelo que escolhe ou não escolhe. A política de coalizão, sustentada durante o último período eleitoral para reforçar a vitória do PT não conseguiu se impor como realidade, especialmente no plano federal, porque o leme estava em mãos erradas. Foi preciso que a embarcação emperrasse na areia para que quem podia mudar a rota acordasse.

O PT, como partido de vocação hegemônica, não facilitou como deveria essa construção, a da coalizão, e deixou seus parceiros ao vento, como meros espectadores. Esse descompasso gerou o engessamento da máquina pública, a dependência moral a que tudo se submete pelos resultados da extensa operação Lava Jato, ainda não conhecidos integralmente.

Acentuou-se ainda o dano que é a falta de um projeto Brasil em torno do qual se una a sociedade brasileira, as instituições e o empresariado para fazerem o país navegar em mar seguro. Essa carência é do governo e das oposições, que só tem como bandeira a tese do impeachment da presidente. A oposição é o samba de uma nota só.

O único projeto nacional que está no ar é o combate à inflação, que não é mais uma ameaça, é uma realidade. Séria e importante, mas equivocadamente tocada, já que a cada medida, mais se enrijece o consumo, majorando as tarifas públicas, restringindo o crédito e o fomento à produção, mas deixando aberta a porta dos bancos, sempre mais ricos porque a esses nada afeta, deles nada se exige e a eles tudo se protege. O sistema financeiro brasileiro, público e privado, nada acima da maré. Nunca foi chamado a contribuir e talvez essa seja a grande injustiça social de todos os governos. Os bancos esfolam a sociedade, esfolam a economia pública, crescem e nunca comparecem para ajudar. São do tipo dos que, à chegada da conta, vão ao banheiro e saem antes para nem dar carona a ninguém da mesa.

Tratados sempre como periódicos, os programas dos partidos têm que ter a coragem de incluir nas suas agendas a discussão sistemática de um Brasil que seja mais possível, mais durável. Assiste-se à nervosa movimentação de setores do sindicalismo gritando pela manutenção ou inclusão de privilégios na legislação laboral, que são estúpidos compromissos. O seguro desemprego, por exemplo, da forma como se acha concebido, é um desastre contra a economia pública, contra a produção e contra as próprias relações de trabalho. A remuneração e a aposentadoria de alguns setores do serviço público, do Executivo, Legislativo e do Judiciário, têm que ser urgentemente revista porque em muitos casos ela é imoral e insustentável. Dinheiro público ou privado não se inventa. Tem que ser gerado e gerido com competência, com responsabilidade, com grandeza. Não é para ser roubado, pela corrupção e pela manutenção de privilégios. Nem para ser corroído pela inércia da falta de governos ou seus sistemáticos equívocos.

Um trem para Bangladânia



O Brasil queria ligar suas duas maiores cidades com um trem-bala. Uma obra de bilhões de dólares para ser inaugurada até a Copa do Mundo. Um empresário italiano acusado de fraude e um político brasileiro se apresentaram como solução, encenando uma peça de mistérios até hoje indecifrados.

Um dos homens apontou o dedo para a ferrovia como se indicasse a estrada para o futuro. A ligação entre Milão e Turim ainda estava em obras quando Moreno Gori — italiano parcialmente careca, de queixo retangular e boca retilínea — garantia que sua empresa, a Itaplan, tinha experiência de mais de 25 anos no setor de transporte ferroviário, especialmente de alta velocidade. A ferrovia diante dele seria apenas uma parte daquele extenso currículo empresarial.

Com o braço estendido, o diretor da Italplan explica ao homem a seu lado que seria possível construir uma ferrovia como aquela no Brasil, ligando São Paulo e Rio de Janeiro. José Francisco das Neves é conhecido como Juquinha. Em todas as fotos, com todos os políticos e autoridades, cercado por todos os papagaios de pirata da vida pública brasileira, Juquinha surge como o mais baixinho de todos. Ele é o presidente da estatal Valec, empresa subordinada ao Ministérios dos Transportes encarregada de “coordenar, controlar, fiscalizar e administrar” a construção de ferrovias no Brasil, entre elas a que seria a joia do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: o trem de alta velocidade entre Rio de Janeiro e São Paulo.

Gori e Juquinha haviam jantado juntos em Milão na noite anterior, 26 de outubro de 2004, e agora admiravam os dormentes da ferrovia Milão-Turim — que seria inaugurada pelo premier Silvio Berlusconi cinco anos depois. No Brasil, décadas de sonhos e projetos inacabados chegariam ao fim pelas mãos daqueles dois homens e graças à experiente Italplan. O país finalmente teria seu trem-bala.

O vexame húngaro

O trem de alta velocidade é um sonho antigo dos governos brasileiros. Sobre estradas de terra e asfalto, os 500 quilômetros entre as duas maiores cidades do país são perigosos e engarrafados. De avião, o voo de 40 minutos é caro. Por um breve período, no entanto, o sonho se materializou. Folhetos distribuídos aos passageiros que partiram às 17 horas do dia 11 de março de 1974 da Estação da Luz, em São Paulo, garantiam que os vagões da composição húngara da empresa Ganz-Mávag chegariam à Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em apenas quatro horas e meia. Alta velocidade sobre trilhos, para os padrões da época.

Aqueles trens haviam sido negociados pelo governo brasileiro em troca de uma de suas moedas correntes desde o Império: café. A linha Rio-São Paulo recebeu seis composições, embarcadas da Europa depois de serem fabricadas na Hungria. A tecnologia foi celebrada na imprensa — desde o desembarque dos vagões no porto do Rio de Janeiro, em 1973, até as viagens inaugurais no ano seguinte, aproveitando a velha estrada de ferro com trechos inaugurados por Dom Pedro 2º. Anúncios publicitários convidavam os cidadãos a deixar de lado os momentos de tensão ao volante em troca de “minutos de relax” a bordo dos Ganz-Mávag. Os carros eram, de fato, seguros e confortáveis, mas se mostraram uma bomba mecânica em poucas viagens. O sistema de tração era fraco para as subidas íngremes, sobretudo entre Japeri e Barra do Piraí, uma serra inclemente aos trens projetados para deslizar nas planícies magiares. As rodas patinavam, os motores esquentavam, e a composição precisava parar no meio do caminho. Apesar de ser fabricado na Hungria, o trem-bala tinha motor alemão, controles suíços e freios italianos — problemas multinacionais na hora de repor peças em um mundo ainda não globalizado. Quatro anos após a inauguração, deixou de circular. Em 1978, os trens foram deslocados para linhas menos exigentes e, anos depois, viraram sucata.

O governo decidiu buscar um substituto. Ainda em 1978, o então ministro Dyrceu Nogueira anunciou uma viagem ao Japão para conhecer o primeiro trem-bala do mundo. O veículo japonês havia sido inaugurado em 1964, mesmo ano em que os militares assumiam o poder no Brasil. Nogueira era comandante do 1º Batalhão Ferroviário e tinha predileção pelo tema. A visita, que selaria um pacto feito pelo presidente Ernesto Geisel em viagem ao Oriente dois anos antes, foi duramente atacada em um discurso do deputado Pacheco Chaves (MDB): ele citava a penúria dos cofres públicos em contraste à megalomania do projeto. “O presidente Geisel não deve permitir. Isso apenas redundaria em novas e graves dificuldades para o futuro governo, cuja herança já é assustadora!”, gritou Chaves da tribuna da Câmara dos Deputados na sessão do dia 23 de agosto.

Chaves foi ignorado, e o trem-bala ganhou impulso. O projeto foi levado à imprensa dezenas de vezes, apresentado como a porta de entrada do Brasil na modernidade. Reportagens de página inteira mostravam a capacidade de carga dos vagões, a velocidade dos motores, o conforto e a sofisticação das cabines. Anúncios de agências de viagem nos pés-de-página vendiam pacotes turísticos para brasileiros que quisessem conhecer o Japão e andar no trem oriental.

O esforço do ministro Dyrceu Nogueira foi em vão. Nos anos seguintes, japoneses, espanhois e franceses tentariam negociar com o Brasil a instalação da linha rápida, oferecendo tecnologia e crédito, mas as condições financeiras do país eram assustadoras aos estrangeiros.

Morte prematura de presidente, inflação descontrolada, dívida externa impagável, impeachment e secura financeira seriam problemas mais prementes ao Brasil da segunda metade do século 20 do que ligar suas duas principais cidades por trilhos. “Bangladânia, meio Bangladesh meio Albânia, é a Terra Não Prometida para a qual alguns constituintes estão querendo arrastar 130 milhões de brasileiros”, escreveu Mário Henrique Simonsen, banqueiro e ex-ministro de governos militares, no artigo O trem-bala para Bangladânia, publicado em 1987 no jornal O Globo. Simonsen criticava a sanha dos políticos em querer resolver contingências do capitalismo na base do canetaço, o que poderia levar o país para uma terra sombria, a Bangladânia, e batizou o artigo fazendo alegoria a mais uma tentativa do governo em construir o trem — projeto abandonado no mesmo ano.

Poucos anos depois, em 1990, no entanto, uma das oportunidades mais concretas para o projeto aportou na Baía de Guanabara a bordo do Le Pharaon, um iate de 60 metros capaz de acomodar 12 convidados e 11 tripulantes. Na ponte de comando estava o bilionário saudita Ghaith Pharaon, educado no Ocidente com dinheiro do reino, acionista de um banco de investimentos e sócio da família Bush em uma empresa de geração de energia.