sábado, 11 de julho de 2020

No Brasil do 'amigo'


Memórias da milícia

Se a longa história da palavra tivesse a duração de uma partida de futebol, só aos 43 minutos do segundo tempo "milícia" ganharia o sentido que inunda o noticiário policial e se infiltra no político.

Ao desembarcar no português do século 14, tinha a acepção que herdara do latim "militia": campanha de guerra, serviço militar. Logo surgiria uma distinção entre miliciano e militar, uma rusga no seio da família do patriarca latino "miles" (soldado).

A distinção era semântica e de classe. Formada por cidadãos informalmente armados, não por profissionais, às vezes nem dinheiro para comprar garruchas a milícia tinha. Ficava bem abaixo dos militares na pirâmide social.

Consta que o sentido de força auxiliar de segurança surgiu no século 17 no francês "milice": "tropa de cidadãos recrutados nas comunidades para reforçar o exército regular". Recrutados por quem?

Pelo Estado, claro. As milícias tiveram na Revolução Francesa e nas guerras de independência do Novo Mundo um viés libertário, mas o Estado sempre deu um jeito de se apropriar de seu ardor.


Preservada em formol, aquela rebeldia original sustenta o direito às armas consagrado na Segunda Emenda à Constituição americana --relíquia do tempo do mosquetão na era do AR-15.

Findos os tumultos de outrora, a história tendeu ao estabelecimento de Estados nacionais garantidores de ordem interna. É verdade que às vezes se dá o oposto, mas desde então, na maioria das ocasiões, o cidadão ocidental médio tem feito escolhas políticas que acredita capazes de lhe garantir paz para tocar a vida sem precisar matar uma mosca.

Assim, domesticadas no século 19 como guardas nacionais e forças auxiliares, as milícias tiveram em diversos países uma carreira oficial, ainda que subalterna. No caso brasileiro, o papel de polícia constava entre suas funções --na manutenção da "ordem pública" e na captura de escravos fugidos, por exemplo.

Quando, em 1918, o sociólogo Max Weber definiu o Estado como o detentor do monopólio da violência, as milícias já vinham sendo descartadas como elementos de política de segurança em todo o mundo.</p>

Transmutaram-se em burocráticas forças policiais, do lado civil, ou foram extintas, do lado militar. Se a Segunda Emenda preserva o espírito miliciano setecentista, seu colega brasileiro do século 19 mora no título do clássico "Memórias de um Sargento de Milícias" (1854), de Manuel Antônio de Almeida.

Órfã do Estado, a milícia voltou no século 20 a velhas zonas de voluntarismo e ilegalidade. Às vezes em sentido figurado, passou a designar grupos de militantes de causas variadas.

Essa é a história geral. A milícia brasileira do século 21 é diferente, específica. Diz o dicionário "Houaiss": "grupo armado de pessoas, geralmente com formação militar, paramilitar ou policial, que atua à margem da lei em algumas comunidades carentes, pretensamente para combater o crime".

O dicionário informa ainda que a acepção surgiu em torno de 2007 (há registro dela dois anos antes em reportagem de "O Globo") e que se trata de um uso carioca (hoje nacionalizado).

Como a diferença faz fronteira com a semelhança, as milícias de hoje ecoam as de antigamente na função de polícia, na opressão aos descendentes daqueles mesmos escravos e no apoio discreto --ou nem tanto-- recebido de um Estado degradado que acha boa ideia abrir franquias daquilo que, como ensinou Weber, é sua própria razão de ser.
Sérgio Rodrigues

E olha o 'amigo' do rei livre


Ladrão de galinha ir para a cadeia e ladrão amigo do rei para prisão domiciliar (leia-se mansão) é sinônimo de impunidade. Infelizmente juízes se utilizam de brechas nas leis para favorecer algunsEduardo Bolsonaro, Dec 18, 2017 

Máscaras, tribos e karma

Num mundo altamente polarizado, tudo pode ser transformado num símbolo político: até mesmo o mais básico objeto de proteção pessoal. Na América disfuncional de Trump e não só, as máscaras foram transformadas em declarações de identidade tribal: quem a usa é um liberal de esquerda, quem as dispensa, um corajoso conservador republicano.

Tapar o nariz e a boca nos locais públicos é a estratégia número um de prevenção e controlo perante uma pandemia, sobretudo quando muitos doentes são assintomáticos. Quem o diz são cientistas do mundo inteiro, que o explicam com factos que até uma criança de 6 anos consegue entender. A propagação do vírus é travada de forma considerável, uma vez que as gotículas contaminadas não são projetadas em direção aos outros. Uma posição que é aconselhada pela OMS e que é puro senso comum. Fazê-lo é, acima de tudo, um ato de civilidade, de educação e de solidariedade, mais do que de proteção individual.

Mas o que são simples factos que até a minha filha de 6 anos é capaz de perceber, Donald Trump é inapto para alcançar. Ele conseguiu transformar em arma de arremesso político o único objeto que pode travar a progressão estrondosa da Covid na América, pondo em causa a vida de milhares de cidadãos que, com este simples gesto, poderiam evitar ser contaminados.

Na festa do 4 de Julho, amontoaram-se em Washington milhares de republicanos orgulhosos com as suas bandeirinhas, máscaras não eram obrigatórias. No seu comício em Tulsa, a mesma coisa. Ao Wall Street Journal, Trump disse que algumas pessoas usavam máscara apenas para o afrontar, como se tudo, incluindo a saúde, girasse em redor do Presidente-Sol. Muitos recusam-nas veementemente por princípio e até as proíbem nos seus estabelecimentos. “Não vivemos num país comunista! Isto é a América”, disse perante as câmaras a dona de um bar no Texas.

Se o mau exemplo vem de cima, o povo vai atrás. Felizmente que, por cá, Ferro Rodrigues se retratou e já anda “mascarado”. Desde abril que o Centro para o Controlo de Doenças norte-americano as recomenda, mas Trump anunciou logo que não pretendia fazê-lo – deixando-o à consideração de cada um. Aos “mariquinhas”, portanto. E faz questão de ser sempre visto sem ela. Aos jornalistas diz que já usou uma e que isso o fez parecer o Lone Ranger. A situação é tão criminosa que até mesmo alguns republicanos se vão demarcando: Mike Pence, Mitt Romney, Mitch McConnell passaram a usá-las.

Se Trump e outros não entendem os argumentos da Ciência, civilidade e responsabilidade, houve já quem tentasse colocar a coisa da única forma que ele consegue processar: a do dinheiro. Uma análise da Goldman Sachs explicou que se os americanos fossem obrigados a usar máscaras em público, seria possível reduzir o número de novos casos diários para níveis que evitariam novos confinamentos, evitando que 5% do PIB dos EUA, ou quase um bilião de dólares, se evapore. Talvez assim colocada a questão, ela seja vista como um ato de patriotismo e orgulho nacionalista. Talvez, porque a estupidez não tem limites.

No Brasil, a mesma distopia louca, mas com um volte-face cinematográfico. Bolsonaro vetou uma parte da lei sobre a obrigatoriedade do uso de máscaras aprovada pelo Congresso que determinava o uso obrigatório em locais fechados, como estabelecimentos comerciais e industriais, igrejas e escolas. E é frequentemente visto em público sem ela.

Agora, Bolsonaro confirmou ter Covid-19. Por enquanto apenas com sintomas ligeiros. Boris Johnson, que no início também desvalorizou o perigo, já recebeu a sua lição e esteve internado. Não sou de desejar o mal alheio, mas aprecio quando se prova do próprio veneno. Chamem-lhe justiça divina, universal ou karma, mas seria muito merecido ver a Covid-19 bater a estes dois com força também.

'De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público?'

Julio Cortázar encarna uma tradição de imaginação literária e ativismo político extraordinários. Tenho em mente aquela advertência que Pablo Neruda fez há alguns anos: “Quem não lê Cortázar está condenado”. Cortázar acreditava que devemos estar conscientes da linguagem que usamos ao descrever o mundo, pois está repleta de significados inconscientes, histórias sociais, um legado de luta e submissão. É possível que a linguagem que seja mais clara para nós acabe se revelando a mais opaca e até enganosa quando começamos a nos aprofundar na história de seu uso.

Em uma aula de literatura que deu em 1980 na Universidade da Califórnia, em Berkeley, universidade onde sou professora, Cortázar disse a seus alunos: “A linguagem está aí e é uma grande maravilha e é o que faz de nós seres humanos, mas cuidado! Antes de utilizá-la é preciso ter em conta a possibilidade de que ela nos engane, ou seja, de que estejamos convencidos de que estamos pensando por conta própria e, na realidade, a linguagem está um pouco pensando por nós, usando estereótipos e fórmulas que vêm do fundo do tempo e podem estar completamente podres.”

E, no entanto, Cortázar nunca virou as costas à linguagem, nem à política, nem à esperança. Devemos questionar criticamente a maneira como reproduzimos em nossa linguagem as formas de poder às quais nos opomos e também devemos nos esforçar para usar a linguagem de um modo novo que abra uma possibilidade de esperança para o mundo. Utopia não é uma palavra fácil de usar, mas Cortázar não a rejeitou: Cortázar proclamou, como sabem, que Cuba era uma utopia alcançável. E com isso deu esperança à possibilidade de materializar uma igualdade radical de caráter político neste mundo. Ele não sabia se isso iria acontecer, nem embarcou em previsões, mas estava disposto, no entanto, a proclamar, a mobilizar o ato de falar como uma forma de combater o ceticismo e o niilismo de seu tempo. De fato, como é sabido, como membro do Tribunal Russell II, uniu forças com outros para condenar publicamente os crimes cometidos pelos regimes ditatoriais da América Latina. Ele não era juiz e o Tribunal Russell II não era um tribunal de justiça, mas quando os tribunais não cumprem seu trabalho ou quando a fé na lei vacila, existe ainda a possibilidade de fazer julgamentos públicos contundentes; particularmente quando as pessoas concordam em revisar em público as evidências.
Meninas durante os protestos  na praça Zócalo, na Cidade do México
Como escritor, Cortázar conquistou o direito de falar em público e escolheu fazê-lo em nome dos subordinados, dos censurados, dos criminalizados por fazer parte da resistência contra as ditaduras, mas também dos torturados e dos desaparecidos, daqueles cuja morte continua desconhecida e sem o reconhecimento dos governos responsáveis por seu desaparecimento. O Tribunal Russell era uma aliança transnacional composta por pessoas que se arrogaram o direito e o poder de julgar ali onde os tribunais fracassaram ou onde o sistema jurídico demonstrou inclusive ser cúmplice dos crimes.

Hoje eu gostaria de falar da necessidade de reconhecimento público dessas perdas que continuam desconhecidas e sem chorar. E, para fazê-lo, começarei com uma pergunta: em que circunstâncias é possível lamentar uma vida perdida? De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público? Quais são essas vidas que, se perdidas, não serão consideradas em absoluto uma perda? É possível que algumas de nossas vidas sejam consideradas choráveis e outras não? Faço essas perguntas difíceis e perturbadoras porque eu, como vocês, me oponho à morte violenta; à morte por meio da violência humana; à morte resultante de ações humanas, institucionais ou políticas; à morte provocada por uma negligência sistêmica por parte dos estados ou por modos de governança internacionais.

Se concordarmos que toda pessoa deveria ser livre para aspirar a uma vida vivível e despojada de violência, então estamos aceitando que toda vida deveria ser, idealmente, livre para exercer esse direito e que todos aqueles que são privados de sua vida por meio da violência são vítimas de uma injustiça radical.

No entanto, se reconhecermos apenas a certas vidas o direito de aspirar a uma vida vivível; se só choramos quando são essas as vidas que desaparecem por obra da violência, então devemos nos perguntar por que choramos essas vidas e outras não. Parte do que nossa dor diz ―se a dor falasse―, parte do que essa dor implica, é que as vidas que foram perdidas deveriam ter tido a oportunidade de viver, de aspirar a uma vida que não fosse de sofrimento contínuo e deslocamento, mas uma vida vivível, uma vida que permitisse que uma pessoa amasse a vida que lhe foi dada viver.

Assim, se as diferenças de classe, raça ou gênero se imiscuem no critério com que julgamos quais vidas têm o direito de serem vividas, torna-se evidente que a desigualdade social desempenha um papel muito importante em nosso modo de abordar a questão de quais vidas merecem ser choradas. Pois se uma vida é considerada carente de valor, se uma vida pode ser destruída ou desaparecer sem deixar rastro ou consequências aparentes, isso significa que essa vida não foi plenamente concebida como viva e, portanto, não foi plenamente concebida como chorável.

Somos contra a perda de determinadas vidas por meio da violência, porque é uma injustiça, mas é muito importante opor-se à perda de vidas violentamente destruídas por não serem consideradas dignas de ser choradas. Afirmamos que essas vidas eram valiosas, que deveriam ter tido a oportunidade de viver e que a perda dessas vidas é uma perda que choramos abertamente. A dor naturaliza a perda, é um reconhecimento do valor da vida que foi perdida, mas reconhece também que essa vida era de fato uma vida, que estava viva; que sua perda é uma perda, a perda de uma vida futura, da futuridade que define uma vida vivível.

O ato do luto se conecta com o ato da justiça precisamente aqui, porque não apenas estamos dizendo que essa era uma vida que merecia ser vivida e que ninguém deveria tê-la destruído, como também que tal destruição é injusta. Por isso choramos e, com isso ao mesmo tempo nos opomos à injustiça. A mobilização de um luto público se alia a uma oposição militante diante da injustiça. E assim como nos opomos à violência através da nossa dor e da nossa raiva, estamos praticando a não-violência quando lamentamos e militamos contra a continuação da violência e da destruição.

As populações se dividem com frequência, com muita frequência, entre aqueles cujas vidas são dignas de serem protegidas a qualquer custo e aqueles cujas vidas são consideradas prescindíveis. Dependendo do gênero, da raça e da posição econômica que ostentamos na sociedade, podemos sentir se somos mais ou menos choráveis aos olhos dos demais.

Pensemos nas vítimas de feminicídio na América Latina, especialmente em Honduras, Guatemala, Brasil, Argentina, El Salvador, mas também aqui, no México, que incluem toda pessoa brutalizada ou assassinada pelo fato de ser feminizada, e isso inclui um grande número mulheres trans e de membros da comunidade de travestis. Essas mortes são frequentemente divulgadas ou publicadas como notícias sensacionalistas nos jornais; são seguidas por uma manifestação momentânea de comoção pública e, pouco tempo depois, acontecem novamente. Quando são divulgadas há uma reação horrorizada, não há dúvida, mas a reação nem sempre é acompanhada por uma análise focada em uma mobilização contra essas mortes tão generalizadas. Às vezes se diz que os homens que cometem esses crimes sofrem algum tipo de patologia, ou são considerados uma tragédia, ou a história é abordada como a enésima e periódica incidência de algo aberrante. Pensemos, no entanto, na descrição das feministas, que estão tentando teorizar a situação com o objetivo de conhecer os termos com os quais ela deve ser enquadrada e entendida. Montserrat Sagot, por exemplo, da Costa Rica, sustenta que “o feminicídio expressa de forma dramática a relação desigual entre o feminino e o masculino e mostra uma manifestação extrema de domínio, terror, vulnerabilidade social, de extermínio e inclusive de impunidade”. Em sua opinião, não é apropriado explicar esses atos assassinos em termos de características individuais, patologias ou inclusive de agressividade masculina, mas devem ser entendidos como a reprodução de uma estrutura social de dominação masculina e, nesse sentido, como a forma mais extrema de terrorismo sexista. Na opinião de Sagot, o assassinato é a forma mais extrema de dominação, e outras, como a discriminação, o assédio e a violência física, devem ser concebidas em um continuum com o feminicídio. Esse raciocínio nos leva a um paradoxo, uma vez que se o objetivo é o extermínio, então, no caso de ser alcançado, seus autores já não ostentariam o domínio, pois quem domina precisa de alguém que se submeta, e que essa submissão devolva ao dominador seu próprio reflexo. Se a vida da pessoa ou da classe subordinada é interrompida, o dominador se torna a norma e a relação imposta de desigualdade dá lugar ao genocídio. Ninguém domina os mortos, exceto se apaga completamente seu rastro.

A situação do feminicídio não implica apenas o assassinato ativo, mas inclui também a manutenção de um clima de terror, no qual qualquer mulher, inclusive as mulheres trans, pode ser assassinada. Dediquemos, portanto, um momento para lembrar o quanto é importante para as alianças formadas em torno do luto ―alianças destinadas a exercer uma oposição política à violência― conseguir fechar o fosso que separa o feminismo do ativismo transgênero. Podemos dizer que as mulheres são assassinadas não por causa de qualquer coisa que tenham feito, mas pelo que os outros percebem que são. Como mulheres, são consideradas propriedade do homem, é o homem que ostenta o poder sobre suas vidas e suas mortes. Não há nenhuma razão natural que justifique essa estrutura fatal e injusta de dominação e terror: faz parte de se transformar em gênero nos termos da norma dominante. Tornar-se homem, nessa perspectiva, consiste em exercer o poder sobre a vida e a morte das mulheres; matar é prerrogativa do homem a quem foi atribuído um determinado tipo de masculinidade. Portanto, espera-se de todos os que são designados no nascimento o gênero masculino que assumam uma trajetória masculina, que seu desenvolvimento e vocação sejam masculinos. Portanto, as pessoas trans que querem ser mulheres, que buscam ser reconhecidas como mulheres trans, rompem esse pacto implícito que une os homens, que permite e afirma sua violenta propriedade sobre as mulheres. As mulheres trans são um objetivo em parte porque são femininas, ou estão feminizadas, e são punidas não apenas por rejeitar o caminho da masculinidade, mas por abraçar abertamente sua própria feminilidade.

As estatísticas, como sabemos, são aterradoras. Acontece em todos os lugares, mas nos últimos anos mais de 2.500 pessoas trans foram assassinadas em todo o mundo. O Brasil e o México também são os países com os maiores índices de violência e assassinato de pessoas transgênero. Talvez seja porque nesses países existem grupos de defesa dos direitos humanos que fazem a contagem das vítimas, mas também pode ser porque os mesmos países latino-americanos que avançaram em direção à igualdade de direitos, em direção à maior diversidade e maiores liberdades legais para as pessoas LGBTQ são o alvo da violência reacionária. Esses movimentos sociais respondem a formas de desigualdade e violência, mas também são alvo do ódio daqueles que temem seus avanços. Então, hoje, pensando na violência contra a mulher, contra as mulheres trans, contra os homens trans, poderíamos dizer que são resultado da misoginia e da transfobia e, é claro, isso é verdade, mas devemos compreender também as novas formas de violência como expressão de antifeminismo, como oposição política aos direitos LGBTQ, como reação contra aqueles que defendem o direito das pessoas trans de viver livremente seu gênero e contar com o amparo da lei. Portanto, parte da violência que vemos e conhecemos é uma reação aos progressos que fizemos, e isso significa que devemos continuar avançando e aceitar que esta é uma luta contínua, uma luta na qual os princípios fundamentais da democracia, da liberdade, da igualdade e da justiça estão do nosso lado.

A violência, como sabem, não é um ato isolado e tampouco é apenas uma manifestação das instituições ou dos sistemas em que vivemos. É também uma atmosfera, uma toxicidade que invade o ar. Estamos aqui porque estamos vivos, porque continuamos vivendo, mas as mulheres que continuam vivas persistem em uma atmosfera de dano potencial, de uma morte repentina e violenta. A população de mulheres ainda vivas vive, até certo ponto, aterrorizada com a prevalência dos assassinatos contra elas. Algumas aceitam a subordinação para evitar esse funesto destino, mas essa subordinação serve apenas para lembrá-las de que são, em princípio, uma classe assassinável. “Submeta-se ou morra” se torna o imperativo imposto às mulheres que vivem nessas situações de terror. E é esse poder de aterrorizar que, é claro, recebe o respaldo, o apoio, o reforço da polícia que se nega a proteger, ou a processar, ou que inflige ela mesma violência às mulheres que se atrevem a denunciar legalmente a violência que sofrem ou testemunham, ou que se unem em grupos para protestar ou se juntam a alianças transregionais ou transnacionais para enfrentar a violência contra as mulheres e as pessoas trans.

Sabemos que assassinar é um ato violento, é claro, mas como podemos definir essa violência que diz respeito à reprodução do terror institucionalizado? A violência nem sempre adota a forma de um golpe, ou poderia ser que o golpe seja apenas um instante na reprodução estrutural e social da violência. Devemos impedir o golpe, mas devemos impedir também a situação estrutural que torna possível esse golpe e que lhe proporciona uma justificativa tanto antes quanto depois do fato. Algumas instituições, formais e informais, inclusive o governo e a polícia, os próprios cartéis, estão implicadas na reprodução social da violência. A violência é ao mesmo tempo ato e instituição, mas também é, como mencionei, uma atmosfera tóxica de terror. Cada uma serve de suporte à outra, estão de fato encadeadas, conectadas uma à outra em uma dialética que potencializa o terror.

É por isso que temos uma tarefa teórica tão grande à nossa frente: como entendemos a especificidade do terror sexual? Que relação tem com a dominação e o extermínio? Existe uma teoria geral da sexualidade e da violência que possa explicar este fenômeno? Estas perguntas nos ajudam a compreender como poderia ser realizada uma intervenção em escala global com a qual exigir uma reconceitualização desses assassinatos como manifestações de um poder social que é exercido repetidamente em um ritmo letal. Só então saberemos como refutar os relatos que culpam as mulheres por suas próprias mortes violentas, ou que apresentam os homens como personagens patológicos, ou que fornecem uma imagem compassiva de sua ira: “um crime passional”.

Por mais terrível e individual que seja qualquer uma dessas perdas, elas se enquadram em uma estrutura social que não considera que as vidas das mulheres, incluídas as das mulheres trans, sejam dignas de serem choradas. As categorias que omitem o exercício do poder social nestes casos representam um obstáculo à oposição política eficaz contra tais condições. Evidentemente, muitas questões continuam abertas sobre os usos do discurso dos direitos humanos ou o recurso a regimes legais que frequentemente reproduzem as desigualdades, e também sobre a necessidade de entender as possibilidades de resistência que as mulheres continuam exercendo em circunstâncias tão aterradoras. O movimento Ni Una Menos, que como sabem levou pelo menos dois milhões de mulheres às ruas, é um ótimo exemplo. “Não perderemos nem uma mais.” Sua voz é a do coletivo daquelas que ainda vivem, daquelas que existem e persistem; transformaram a categoria de mulher em um coletivo e não perderão nem uma mais entre suas fileiras, entre seu gênero. Nos Estados Unidos, continuamos acumulando histórias individuais porque somos comprometidamente individualistas. O #MeToo é, está bem claro, uma impressionante série de histórias que apontam para a estrutura generalizada de discriminação, assédio e agressão. Também na América Latina as histórias individuais importam, sem dúvida, e esse é um dos motivos pelos quais estamos interessados nas memórias, nas biografias, nos testemunhos que refletem o mundo em que habitualmente vivemos. E, no entanto, o Ni Una Menos é uma maneira de afirmar a voz do coletivo, uma solidariedade entre as vivas, cuja proclamação é “vamos continuar vivendo e não perderemos nem uma mais das nossas”. É um ato de expressão do “nós” que agrupa todas as nossas vozes cada vez que se reúne. O coletivo protege o indivíduo de um destino violento, o coletivo exige um mundo em que essa luta contra a morte violenta seja realizada ―ou assim deveria ser― por todos os setores da sociedade. E também afirma que as mulheres viverão, que continuarão vivendo, que reivindicam com o próprio ato de viver seu direito de viver, de desfrutar, de ser um corpo que se conecta apaixonadamente com outros corpos no mundo. O Ni Una Menos é uma declaração viva por parte das vivas, unidas para que não aconteça nem uma só morte violenta mais.

Certamente existe uma diferença entre o luto público e a luta pela justiça. Nem todas as nossas perdas são políticas e nem todas as nossas lutas pela justiça dependem do direito e da possibilidade de chorá-las. E, no entanto, o luto público pode se tornar um ato político. Pensemos nas Avós da Plaza de Mayo, nas Mulheres de Negro, nas Famílias de Ayotzinapa. Quem exige esse direito ao luto não desaparecerá da imprensa ou das praças. Estão reivindicando publicamente seu direito de chorar, estão reivindicando seu direito de chorar publicamente. E, no entanto, chorar sem evidência da morte não é de todo possível; não é chorar sem conhecer a causa da morte. Como diz a Antígona de Sófocles, temos de poder enterrar o corpo para aceitar e chorar a perda. Temos de saber onde e como uma pessoa morre para emergir do escândalo da injustiça e abraçar a prática reparadora do luto. Aqueles que perderam quem amam, aqueles que dizem “tenho o direito de chorar, e ainda não choro porque preciso saber onde e como meus entes queridos morreram”, estão vinculando as demandas por justiça com a própria capacidade de ter acesso ao luto. Não haverá luto se não houver justiça e assunção de responsabilidades, e ser privado do direito ao luto é em si mesmo uma injustiça. O luto e a reivindicação de justiça andam de mãos dadas e precisam um da outra; reúnem a dor e a raiva em um esforço para construir um novo consenso e uma nova solidariedade contra a violência.

Judith Butler, filósofa norte-americana e professora da Universidade de Berkeley (Califórnia). Texto acima é do livro "Sin Miedo – Formas de Resistencia a la Violencia de Hoy", lançado em julho na Espanha, e ainda inédito no Brasil