segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Pátria armada

O quadro escrito a giz em frente ao restaurante anunciava: “1 ano de churrasco grátis para quem matar o João Doria Jr.”. Embora pareça coisa de bang-bang de quinta categoria, a oferta criminosa era real, feita pela Casa de La Parrilla, na Vila Mariana, bairro nobre da cidade de São Paulo. No mesmo dia, o presidente Jair Bolsonaro, esbanjando alegria após a semana de vitórias no Congresso, rebatia na tecla de armar a população: “A arma evita que um governante de plantão queira ser ditador”.

Como manda a lei, o dono do restaurante foi preso e autuado em flagrante. Já Bolsonaro, mesmo reincidente, continua a incitar o uso de armas contra desafetos e nada acontece. Ao contrário: lidera uma turba que cada vez se sente mais à vontade para aniquilar o inimigo.

Bolsonaro tem um amor especial por armas e jamais escondeu isso. O que mudou de 2018 para cá foram os argumentos para defender os tiros.

Na campanha e nos primeiros tempos de governo, o presidente era o mocinho. Tinha o cuidado tático de vincular o porte e a posse à defesa pessoal e até ao tiro recreativo. O alegado “direito à arma” estava atrelado ao direito do cidadão de proteger a sua família e a ele próprio. Os debates se davam no limite entre a função exclusiva do Estado de prover a segurança do cidadão, definida na Constituição, e a legítima defesa.

Na fatídica reunião ministerial de abril, na qual se escancararam o ódio e o desprezo de Bolsonaro e sua equipe pelo país e suas instituições, o presidente, entre um palavrão e outro, deixou claros os motivos de insistir em armar os brasileiros. “O povo armado jamais será escravizado”.


A partir dali, o papo de segurança pessoal e autodefesa não mais frequentou a boca do presidente. Sem qualquer escrúpulo, Bolsonaro passou a sustentar o uso de armas contra o que ele, na sua visão torta, define como “ditatorial”. Na semana passada, acrescentou um desafio: “Eu não tenho medo do povo armado, muito pelo contrário, me sinto muito bem, estar ao lado do povo armado do nosso Brasil”, jogando a aura de covardia sobre adversários de revólveres, pistolas, fuzis e metralhadoras.

Como arrotar impropérios é prática cotidiana do presidente, as declarações da última quinta-feira passaram batidas, embora revelem, com todas as letras, suas macabras intenções.

Além de bajular as Forças Armadas, dos recrutas ao generalato, e as polícias militares, que quer ver sob seu mando, fora da alçada dos governadores, Bolsonaro investe em acelerar a liberação de todo tipo de armamento e munições para seus adoradores, garantindo proteção extra. E, por óbvio, legalizar os fuzis de companheiros milicianos.

Mesmo com alguns freios impostos pelo Congresso e pelo STF às tentativas do governo de armar o país, as novas armas de fogo registradas em 2020 chegaram a 180 mil, 91% a mais do que as 94 mil de 2019, número que já era recorde. Na outra ponta, os homicídios voltaram a subir após dois anos de queda, batendo na marca de um assassinato a cada 10 minutos.

O crescimento de mortes por tiros pode até não ser efeito direto de mais armas em circulação, mas não pairam dúvidas quanto aos estímulos oficiais à violência nos números apurados.

E pode piorar. Para além do excludente de ilicitude, que prevê livrar policiais que matam por “medo, surpresa ou violenta emoção”, proposta rejeitada pela Câmara que Bolsonaro promete reavivar, o presidente parece querer incluir mais uma excrescência: perdão aos assassinos por sentimentos contrariados.

Nessa hipótese, o rol de crimes perdoáveis passaria a incluir os que matam por se sentir “escravizados” ou prejudicados por um “governador ditador” como Doria, cujo “delito” foi exigir, por zelo sanitário, o fechamento de bares e restaurantes, motivando a recompensa para eliminá-lo. Como tudo tem outro lado, as regras valeriam também para liberar Adélio Bispo, que, para sorte do então candidato Bolsonaro, tinha uma faca e não um revólver.

Tem-se como certo que o sucesso de um governante é ditado pela economia. Bolsonaro sabe que dificilmente terá algum êxito nessa seara em seu biênio final. Sua crença é outra: desde já quer estar pronto para ir a campo. Vislumbra ter todos os fardados ao seu lado - as três Forças, policiais militares e uma milícia de fiéis armados até aos dentes. Se precisar agir em 2022, o fará enquanto os escrutinadores contam os votos impressos.
Mary Zaidan

Golpe de Estado

Golpe de Estado é o ato de violência praticado por governante ou seu opositor contra governo eleito de conformidade com as normas constitucionais, para manter ou tomar o poder. Ler a respeito o livro Técnica do Golpe de Estado, de Curzio Malaparte (1898-1957), sobre o assalto ao poder na Rússia, pelos bolchevistas, em 1917.

O verbete golpe de estado no Dicionário de Política de Bobbio, Matteucci e Pasquino (Ed. UnB, Brasília, DF, 1994) contém análise assinada por Carlo Barbi, do qual transcrevo o seguinte trecho: “Tomando como objeto de pesquisa os anos recentes, achamo-nos frente a uma verdadeira proliferação de golpes, embora com características bem diferentes. Na verdade, no início dos anos 70, mais da metade dos países do mundo tinha governos saídos de golpes de Estado e o golpe de Estado, por conseguinte, tornou-se mais habitual como método de sucessão governamental do que as eleições e a sucessão monárquica. Mas os atores do golpe de Estado mudaram. Na maioria dos casos, quem toma o poder político por golpe de Estado são os titulares de um dos setores-chave da burocracia estatal: os chefes militares” (vol. 1, pág. 545).

Em 1930 não houve golpe de Estado, mas revolução articulada pela Aliança Liberal, liderada por Getúlio Vargas. O objetivo era depor o presidente Washington Luís e impedir a posse de Júlio Prestes, presidente do Estado de São Paulo no período 1927-1930, eleito presidente da República pelo Partido Republicano Paulista (PRP) nas eleições de 1.º de outubro de 1930.

Vargas assumiu o governo provisório, em 10 de novembro, com o objetivo de permanecer. Protelou enquanto lhe foi possível a convocação da Assembleia Constituinte, medida tomada por decreto em abril de 1933. Promulgada a Constituição em 16 de julho de 1934, elegeu-se presidente pelo Congresso Nacional, para encerrar o mandato em 3 de maio de 1938.



Em 10 de novembro de 1937 deu o golpe que o pôs na chefia do Estado Novo. Permaneceu até 29 de outubro de 1945, quando foi deposto pelos mesmos militares que o apoiaram na implantação da ditadura. A Carta de 1937, redigida por Francisco Campos, justificava o golpe como resposta às “legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários”. E atribuía a responsabilidade “ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista”.

As gerações de hoje pouco sabem sobre o Estado Novo. Alguma coisa, porém, devem conhecer a respeito do regime militar instalado em 31 de março de 1964. O preâmbulo do ato institucional baixado em 9 de abril pelo Comando Supremo da Revolução, integrado pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, advertia estar o País diante de revolução vitoriosa, que “se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. A Revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte (...). Essa é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte”.

Durante 20 anos o País viveu sob regime de exceção. Para presidir a República era requisito ser general de Exército. As feridas abertas, de ambos os lados, estão mal cicatrizadas. A volta à democracia, com a eleição de Tancredo Neves em 1985 e a promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988 não nos garantem contra eventual golpe de Estado. A ameaça do fechamento do Supremo Tribunal Federal por um cabo e dois soldados, o clima de belicosidade com governadores, o negacionismo imbecil, a infame guerra à vacina, a hostilidade contra o Butantan, a militarização do governo, a proposta de criação do generalato nas Polícias Militares, a aversão à liberdade de imprensa, o estimulo à idolatria, o ataque ao voto eletrônico, a declaração “quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as Forças Armadas” são reveladores de que alguém está à procura de pretexto para a ruptura da ordem institucional.

A mobilização nacional em defesa do Estado de Direito Democrático é necessária e urgente. Os partidos estão debilitados. As oposições, divididas. É difícil identificar alguém, entre os possíveis candidatos, capaz de galvanizar a opinião pública. A pandemia afeta a economia, provoca o fechamento de empresas, agrava o desemprego e a miséria.

Revela a História que cenário como esse poderá propiciar o aparecimento de demagogo com pretensões a salvador. Assim aconteceu na Alemanha após a 1.ª Grande Guerra, dando ensejo à tomada do poder por Adolf Hitler, e na Itália, por Benito Mussolini. A derrota do Exército russo em 1917 diante dos alemães abriu as portas à ditadura do Partido Comunista. Lenin tomou o poder à força de discursos, como mostra John Reed no livro Dez Dias que Abalaram o Mundo.

A democracia é planta frágil entre os subdesenvolvidos. A indisposição à disputa democrática e a dificuldade para se reeleger poderão espicaçar a ambição sem limites de Jair Bolsonaro. Avisto no horizonte sinais de fumaça.

Pensamento do Dia

 


Brasil: já estivemos no inferno

Talvez essa nova geração não conheça, mas já estivemos no inferno. Muitas vezes. E só para lembrar dos tempos de agora podemos falar da ditadura militar. Dias duros, de mortes, torturas e desaparições. Também passamos por um longo período de “distensão”, saindo do regime dos milicos para novamente passar às mãos da boa e velha elite civil. Não foi fácil cruzar o umbral da ditadura. As lutas foram grandiosas e massivas: batalha pela anistia, batalha pelas diretas. Quantas lágrimas de frustração e ódio vivemos depois dos gigantescos comícios e atos que mobilizaram multidões, e que se esfumaçaram numa decisão de cúpula, para uma eleição indireta? Depois de tantos anos de dor, a tal democracia vinha tutelada, pelas mãos de um congresso infame. E nos tocou Tancredo Neves como presidente, um velhinho simpático, mas de passado claro sobre quem e o que defendia. Mas, o diabo ainda queria mais, e o Tancredo morreu, ou foi morrido. E quem assumiu a presidência? Nada menos do que o príncipe do Maranhão, José Sarney, e nós tivemos de aguentar seus marimbondos de fogo por cinco anos inteiros.

Com Sarney nós passamos pelo Plano Cruzado, de mudança de moeda, num contexto de inflação gigante. Ele congelou o preço das coisas e aumentou os salários em 15%. A euforia era grande entre a população, mas logo depois veio a paulada, e o Plano Cruzado II reajustou a gasolina em 60%, a luz em 120% e as demais mercadorias em mais de 100%. A inflação disparou outra vez, chegando a 1973% no final do mandato. É, dá pra crer? 1973%. Quatro dígitos. Ainda no meio desse turbilhão Sarney chamou a tão sonhada Constituinte, que acabou sendo mais um balde de água fria, pois ela não foi exclusiva como queria a maioria. Nova derrota para o movimento social. Ainda assim a Carta que brotou do congresso acabou sendo bastante progressista, em comparação com o inferno da ditadura militar. E foi essa aparente “vitória” que preparou o país para seu momento mais esperado: a eleição direta para presidente.

Era o ano de 1989. Havia mobilização em todo o país. A Central Única dos Trabalhadores estava no auge, organizando os trabalhadores, e o Partido dos Trabalhadores parecia amalgamar todos os desejos das gentes. Lula era o candidato e tudo indicava que o sol vermelho iria iluminar a nação. Quem viveu aqueles dias, lembra. A profusão de militantes, o avanço das bandeiras, a petezada nas ruas, fazendo bazar, distribuindo panfletos. Uma esperança se agigantava. Então, da distante Alagoas, das profundezas da casa grande e do engenho, assoma um jovenzinho que iria aparecer como o novo herói nacional: um caçador de marajás. Fernando Collor de Mello. Os marajás, é claro, eram os inimigos de sempre da elite selvagem, os funcionários públicos.

Foi criada uma campanha nacional de denúncias contra os trabalhadores que eram acusados de salários altíssimos, vivendo como marajás. Globo, Veja e IstoÉ cavoucavam histórias de trabalhadores públicos milionários e forjavam o ódio da população contra os “privilegiados”. E havia? Sim, havia, como há até hoje. Alguns poucos, muito poucos. Mas, a já conhecida manipulação midiática agiu com todas as fichas. Não iria deixar um barbudo comunista (?) tomar o poder. Collor, empunhando a espada da justiça, virou o candidato da classe dominante e a primeira eleição direta, depois de mais de duas décadas de ditadura e um governo de transição, foi vencida pelo valente governador alagoano, que iria varrer do país a corrupção. Sim, essa história da carochinha existe faz tempo. Não é uma pauta nova.


Naqueles dias nós como nação atravessamos mais um umbral do inferno. Com Collor na presidência veio o famoso ajuste neoliberal. O Brasil seria como o Chile, o México e outros tantos países da América Latina que estavam se livrando do “peso” de tudo o que era público. A privatização salvaria o país. E, de novo, a máquina de ideologia midiática agiu com força. E, assim, como hoje, havia o cercadinho em Brasília onde os admiradores do novo presidente jovial e atlético iam vê-lo correr, todas as manhãs. Era o seu ritual. Saía de manhã, sempre com uma camiseta com dizeres motivacionais, e fazia sua corrida. Atrás dele corria a imprensa babosa, e no trajeto, as pessoas gritavam e sonhavam com uma foto com o herdeiro da coroa. Quando a corrida acabava, ele abria a boca para os microfones e vociferava contra o serviço público, contra os trabalhadores, contra as empresas públicas e atacava o Congresso Nacional. Sim, esse roteiro já vivemos.

Mas, no campo da economia, o atleta logo disse a que veio. Lançou o Plano Collor, congelando os preços outra vez. E enquanto a mídia festejava suas corridas, ele confiscou a poupança da população. Sim. A poupança. Toda a gente que tinha dinheiro guardado na poupança ficou sem ele. Não podia sacar. Não confiscou investimentos na bolsa ou em outras operações que envolviam mais dinheiro. Não. Roubou a grana dos pobres. E não satisfeito, ainda confiscou valores que estavam nas contas-correntes. Então imaginem o que foi o desespero das pessoas, no geral classe média baixa, tendo perdido todos os seus recursos. Foi um choque. Naqueles dias o Paulo Guedes era uma mulher: a ministra Zélia Cardoso de Mello. Ela justificava o confisco como necessário para equilibrar as contas. Vamos salvar o país, e que seja o povo mais pobre a pagar a conta. Óbvio. Nunca antes a população tinha pago um preço tão alto e o caçador de marajás mostrava que os marajás eram os únicos que não seriam caçados. Aqueles foram tempos tenebrosos. Gente se matou, famílias inteiras foram à bancarrota, negócios se esfumaçaram.

No terceiro ano de governo de Collor, a própria elite dominante, cansada das ditas “loucuras” do presidente, decidiu que tinha de derrubá-lo. Assim, aproveitando o desespero da população que já se levantava em rebeldia, passou a apoiar as manifestações dos “caras pintadas”, movimento da juventude que pintava o rosto de verde e amarelo nos protestos contra Collor. Sim, nós da esquerda já usamos as cores da nossa bandeira para protestos massivos e foi bonito. Até a rede Globo entrou na luta, mostrando as grandes manifestações e incentivando a participação. Por fim, Collor foi denunciado ao Congresso por ter usado dinheiro público para fazer um jardim na casa da mãe e o congresso, acossado pelas ruas, decidiu pelo impeachment. Sim, não foi por 200 mil mortes, mas por conta de um jardim e de uma Elba.

A partir daí o que se seguiu foi uma sequência de presidentes bem comportados e alinhados com os desejos da classe dominante. Fazendo tudo pelos mais ricos e tirando tudo o que podiam dos mais pobres. Passamos também por governos petistas que, apesar de terem atuado com mais eficácia na redução de danos para os mais empobrecidos, nunca avançaram numa pauta de mudanças estruturais. Pois é, temos vivido o inferno, nós, os trabalhadores, parece que desde sempre.

Assim o que estamos passando agora, com o novo dirigente da nação, não é novidade. A história se repete, como farsa, em decibéis mais elevados. De novo as bravatas, de novo os inimigos internos, de novo o que vai nos salvar da corrupção, de novo o que (aparentemente) briga com os deputados, de novo o presidente atleta que faz flexões, corre, anda a cavalo e resfolega. De novo, a imprensa baba-ovo correndo atrás. De novo o cercadinho. De novo, um povo apático, porque tinha esperanças.

E bueno, o certo é que a história não é um terminal de ponto final. Ela caminha sempre para frente. Nós já conhecemos bem as instâncias do inferno, nós já nos enfrentamos com o diabo centenas de vezes e ainda que a custo alto, temos vencido. O belzebu dos nossos dias já é conhecido e as veredas da resistência se perfilam. Não há mal que sempre dure. Uma greve aqui, outra ali, uma pequena manifestação acolá, a coisa vai crescendo porque é a vida material que define o rumo. A vida encontra o caminho para viver. A maioria escolhe não aceitar um governo que traz a morte. Isso a história da humanidade nos mostra, está tudo aí, nos livros. Todos os tiranos caem, os maus governos se acabam e a luta dos povos não tem fim.

Portanto, não há que desesperar. Há que fazer o que sempre fizemos. Resistir, organizar e lutar, como diz o poeta mineiro: “a canção sabemos de cor. Só nos resta aprender”.

Aguarda aí, diabo da vez. Estamos em caminhada.

E continua a Lei da Morte


A linha sucessória está prevista em lei, tem gente responsável por tocar para frente. Não vejo problema nenhum se ele ficar, ou se ele sair. O país não vai parar por causa disso. Passa por aquele trauma e vai em frente
General Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo

Crime e castigo

A má conduta de Bolsonaro é amplamente documentada. Não é exagero considerar que várias de suas ações podem constituir crime de responsabilidade.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) abriu investigação preliminar para verificar se há indícios de que o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, cometeram “práticas delitivas” na atuação do governo federal no combate à pandemia de covid-19. No mesmo dia, um grupo de senadores entregou um pedido de abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) também para investigar a atuação do governo. A comissão já é chamada de CPI da Covid.

Como se sabe, Bolsonaro passou os últimos meses dedicando-se a construir uma blindagem tanto na PGR como no Congresso, razão pela qual não são pequenas as chances de que ambas as iniciativas deem em nada.

No primeiro caso, o procurador-geral da República, Augusto Aras, indicado para o cargo por Bolsonaro, informou que a abertura da investigação é apenas praxe, isto é, não significa, por ora, que haja indícios de que Bolsonaro e Pazuello cometeram algum dos crimes apontados no pedido, feito por deputados do PCdoB.


Os parlamentares acusam o presidente e o ministro da Saúde de prevaricação e de colocar em perigo a vida e a saúde dos brasileiros. O foco é o drama dos moradores do Amazonas e do Pará, onde dezenas de doentes de covid-19 morreram asfixiados por falta de oxigênio nos hospitais, sem que isso despertasse especial mobilização do governo federal. “O descompromisso de Bolsonaro e Pazuello com o enfrentamento à Covid-19 deixou gestores locais à deriva, tendo que administrar por conta própria fluxos e demandas que, via de regra, dependem de uma lógica conjunta – a mesma que orienta o Sistema Único de Saúde (SUS), que opera de forma tripartite, envolvendo União, Estados e municípios”, informa a ação.

No segundo caso, a instalação da CPI da Covid depende da autorização do novo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, eleito há alguns dias com o apoio entusiasmado de Bolsonaro. “Com o recrudescimento da covid-19 em dezembro de 2020 e janeiro de 2021, as omissões e ações erráticas do governo federal não podem mais passar incólumes ao devido controle do Poder Legislativo”, diz o requerimento da CPI.

Ainda que nenhuma das duas iniciativas prospere, há um crescente movimento para obrigar Bolsonaro e seu ministro da Saúde, o intendente Pazuello, a responder por seus atos, mais cedo ou mais tarde – mais cedo será melhor para o País, já que mais de mil brasileiros morrem por dia de covid-19. Parte desses óbitos poderia ser evitada se houvesse uma firme liderança do Ministério da Saúde na coordenação dos esforços contra a pandemia – o que dificilmente ocorrerá enquanto Pazuello estiver no Ministério, e Bolsonaro, na Presidência.

A má conduta de Bolsonaro é amplamente documentada. Não é exagero considerar que várias de suas ações podem constituir crimes de responsabilidade. O descalabro da saúde em meio à pandemia deveria bastar para que o presidente fosse pelo menos chamado a se explicar.

Se isso vai acontecer ou não, vai depender das condições políticas. Bolsonaro parece confortável com o arranjo que costurou na PGR e no Congresso. Mas, ao não demitir o ministro da Saúde, que já está sob investigação em inquérito no Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro deixa claro que seu subordinado não agiu senão em razão de orientação superior – afinal, como o próprio intendente declarou outro dia, “um manda e o outro obedece”.

Convém lembrar que Pazuello é o terceiro ministro da Saúde de Bolsonaro – os outros dois perderam o emprego por discordarem da insistência do presidente com o chamado “tratamento precoce”, isto é, o emprego de medicamentos sem eficácia comprovada. O próprio fabricante de um deles, a ivermectina, informou que não há base científica para receitar o remédio contra a covid-19 e, pior, ressaltou que há “preocupante falta de dados de segurança”. Ou seja, Bolsonaro é garoto-propaganda de um elixir que pode causar mal, sem a menor possibilidade de causar bem.

Mas Bolsonaro é irremediável. Segundo ele, seu elixir não faz mal nenhum e não se arrepende de receitá-lo. “Pelo menos eu não matei ninguém”, disse o presidente, exercendo sua especialidade: livrar-se de responsabilidade. Mas o País começa a reagir.

Roteiro para tempos difíceis

Um bolsonarista escreveu no Instagram que me ver chorar na TV não tinha preço. Usava o termo chorar em sentido figurado. Certamente expressei tristeza com a vitória de Arthur Lira, coroada com uma festa para 300 pessoas, sem máscaras, numa mansão do Lago.

Mas se, como no poema, o bolsonarista nunca conheceu quem tivesse levado porrada, muito prazer, me apresento.

Situações difíceis não devem nos intimidar, embora seja assustador pensar na continuidade de um governo que mata as pessoas com seu obscurantismo e destrói vorazmente os recursos naturais de um dos mais belos países do mundo.

Muita gente acha que Bolsonaro tornou-se mais forte em 22, porque controla o Congresso. Temer controlava, mas jamais foi uma alternativa eleitoral viável.

As coisas não passam por aí. Pelo contrário, as relações de toma lá dá cá, as diárias afirmações de que é dando que se recebe, apenas reforçam a aura de decadência que envolve a política no Brasil.

A ideia de uma frente não se esvai porque alguns setores saltaram do barco. O que a fortalece, de fato, não são as letrinhas que designam partidos, nem necessariamente o número de deputados e senadores que a compõem.


O importante para uma oposição é compreender essa nova relação de forças no Congresso e olhar mais para fora, buscar o apoio da sociedade, batendo em alguns pontos essenciais. Um deles é denunciar o estelionato eleitoral de Bolsonaro, separando-o das pessoas que acreditaram em seu discurso.

Os outros estão claros na própria conjuntura: apoio emergencial para milhões de necessitados, defesa da ciência na condução da política contra a pandemia e luta para que todos se vacinem de forma eficaz e segura.

Esse encontro com a sociedade poderá ser mais amplo ainda na medida em que a vacinação avance. Muitos discutem as eleições de 22, quem será candidato, quem vai vencer.

É um tema inescapável. No entanto, daqui até lá, há muita luta, muitas peripécias. Os nomes devem surgir desse processo. Não creio em candidaturas que ficam abrigadas da tempestade e aparecem apenas no momento eleitoral.

Bolsonaro, Witzel e outras figuras se elegeram num momento de decadência da política. Nas próximas eleições, possivelmente viveremos um clima em que não só a política, mas também as novidades radicais decaíram. Daí a importância do que sobrou de resistência, de como se mostrará no processo, sua habilidade para unir, coragem para encarar o governo de frente.

Grande parte dos analistas descarta o impeachment quando um governo passa a dominar o Congresso. É razoável. Mas não se pode ver o Congresso como um bloco impermeável à pressão popular.

É preciso trabalhar com todos os cenários, sabendo que são tempos quase tão difíceis como no período da ditadura. É verdade que agora existe liberdade de imprensa, mas, no entanto, desapareceu um clima mais fraterno entre os opositores.

E isso não apenas porque a história moderna do Brasil colocou em campos opostos os que lutaram pelas eleições diretas.

O debate político não é mais mediado exclusivamente pela imprensa profissional. Ele vive noutras plataformas, deformado por fake news e num clima de agressividade verbal sem precedentes.

Um agradável lugar-comum que sempre vale a pena repetir: a história não coloca problemas que as pessoas não possam resolver.

É urgente evitar mortes e, simultaneamente, desenvolver as lutas que possam fortalecer uma vontade de tirar o Brasil dessa condição de pária sanitário e ambiental, dominado pelo obscurantismo.

Perdemos o Congresso, é verdade. Mas algum o dia o tivemos? Por enquanto, a parte que nos toca é uma modesta minoria. Vamos com ela, com o que sobrar, pois resistir ainda é melhor do que tudo.

'70% dos últimos surtos epidêmicos começaram com o desmatamento'

A médica espanhola María Neira, diretora de Saúde Pública e Meio Ambiente da Organização Mundial da Saúde (OMS), afirma que a pandemia do coronavírus é mais uma prova da perigosa relação entre os vírus e as pressões do ser humano sobre o meio ambiente. Do seu escritório em Genebra, na Suíça, Neira explica como os vírus do ebola, sars e HIV, entre outros, saltaram de animais para seres humanos depois da destruição de florestas tropicais. Neira (Astúrias, 59 anos) insiste na necessidade de que Governos e indivíduos compreendam que a mudança climática é um problema de saúde pública, não uma questão de ecologia ou ativismo. A cientista, mestra em saúde pública e nutrição, propõe uma revolução saudável, positiva e verde, que tenha como pilar fundamental a rápida transição na direção de energias limpas. Segundo ela, países que decidirem trocar o petróleo e o carvão pela energia solar e eólica acelerarão seu crescimento e reduzirão a pobreza e a desigualdade.

No prólogo do livro Viral, de Juan Fueyo, você adverte sobre a perigosa relação entre os vírus e as pressões do ser humano sobre o meio ambiente, sobretudo o desmatamento. No que consiste essa relação? Como ela funciona?

As práticas de desmatamento intenso, feitas sempre em nome da economia de curto prazo, têm efeitos devastadores para o futuro da humanidade. Ao derrubar a floresta para substituí-la por agricultura intensiva e poluente, os animais que vivem nesses lugares nos quais o homem não havia entrado sofrem profundas transformações. Aparecem espécies com as que não estávamos em contato e que podem nos transmitir doenças. Passar de uma floresta tropical para um cultivo, com adubos e pesticidas que nunca tinham entrado nesse ecossistema, altera o tipo de vetores capazes de transmitir os vírus. O desmatamento é uma forma de derrubar essa barreira ambiental entre espécies que nos protege de forma natural.

Pode contar um caso específico?

Um exemplo claro deste fenômeno é o vírus do ebola, que saltou dos morcegos frugívoros das florestas da África ocidental para os humanos e desatou o contágio. O grave é que aconteceu o mesmo com a aids e a sars. Cerca de 70% dos últimos surtos epidêmicos que sofremos tem sua origem no desmatamento e nessa ruptura violenta com os ecossistemas e suas espécies.

O que se pode fazer para prevenir isto?

Temos que entender que é necessário estar em equilíbrio com o meio ambiente, que é o que nos dá todos os recursos para sobreviver. É preciso aproveitá-los, mas não podemos destruir e poluir tudo o que tocamos, como está acontecendo neste momento. O oceano, por exemplo, está nos dando de comer. Milhões de pessoas se alimentam com as reservas de pesca, mas estamos enchendo o mar com milhões de toneladas de plástico. Estamos indo contra nós mesmos. É importante que as pessoas entendam que a mudança climática não é uma questão de ecologia ou ativismo, mas de saúde pública.

Hieronymus Bosch


Quer dizer que o aquecimento global não só derrete as geleiras, ou deixa os ursos polares em perigo, como também produz muitas mortes de seres humanos?

Claro. Erramos na narrativa a respeito da mudança climática nestes últimos anos. Acho que se falou muito de como o nível do mar está subindo ou como a camada de ozônio é afetada, mas faltou explicarmos como tudo isso no fundo tem um impacto tremendo sobre a nossa saúde. Às vezes, de forma arrogante, dizemos que é preciso salvar o planeta. Mas não. Temos que salvar a nós mesmos. O planeta nós o estamos destruindo, mas ele vai encontrar uma maneira de sobreviver; os humanos, não.

Em uma recente conferência, você dizia que na luta contra o meio ambiente os seres humanos sempre perdem. Por quê?

Se destruirmos a fonte da qual vivemos, os prejudicados seremos nós mesmos. Vemos com cada vez mais frequência como o ser humano é muito vulnerável frente aos fenômenos meteorológicos que a mudança climática está desatando, como tsunamis ou furacões. Há alguns dias houve uma nevasca muito dura na Espanha e nos paralisou imediatamente. No final, quem sairá perdendo seremos nós.

Quais são as medidas mais urgentes que a OMS recomenda para evitar a deterioração do meio ambiente e da saúde pública?

Uma muito importante é o conhecimento. Temos que ganhar mais adeptos para a causa. O objetivo é que muita gente entenda a relação entre mudança climática e saúde; que entenda, por exemplo, que seus pulmões, seu sistema cardiovascular e seu cérebro estão em risco por causa da poluição. Segundo, temos que fazer a transição para energias limpas e renováveis o mais rapidamente possível. Os combustíveis fósseis estão nos matando. Há sete milhões de mortes prematuras causadas pela poluição atmosférica que poderiam ser reduzidas deixando de gerar eletricidade com carvão e petróleo. Acelerar essa transição para as energias limpas vai gerar uma economia que nos ajudará a sair desta crise que o coronavírus desatou.

Como é a relação entre energias limpas e desenvolvimento econômico?

Um dólar investido em energias renováveis vai gerar quatro vezes mais trabalho que um dólar investido em energias fósseis. Acredito que, se os países mais pobres começarem a investir em energia solar e eólica, eles podem acelerar seu crescimento. Esta pode ser uma estratégia contra a desigualdade que se agravou com a pandemia. Outra recomendação importante é o planejamento das cidades pensando na saúde do ser humano. É preciso tirar os carros dos centros urbanos, ter um sistema de transporte público sustentável e limpo, e sobretudo não ter cidades superpopulosas como as de agora, que são inabitáveis.

Como a densidade populacional das cidades afeta a transmissão dos vírus?

Em 20 anos, 70% da população estará vivendo em centros urbanos. Será preciso tornar essa situação saudável e equitativa. Podemos ter cidades que nos ofereçam muitos benefícios, mas que não atentem contra nossa saúde. Hoje as capitais de vários países têm muita densidade populacional. Isso contribui para uma transmissão mais rápida e eficiente de qualquer vírus ou bactéria. O mau planejamento das cidades também nos leva a ter uma vida sedentária, que a poluição termine em nossos pulmões e inclusive que haja um problema grave de saúde mental porque não se facilita a interação social.

O que fazer então?

É preciso criar cidades com zero emissão de carbono, cidades verdes e com economia circular. O CO2 que for produzido tem que ser eliminado. Essas cidades já são possíveis, a tecnologia permite isso, e a economia vai nesse sentido. Acredito que esta mudança seja irreversível.

No prólogo do livro de Fueyo, você propõe uma “revolução saudável, positiva, verde e economicamente sustentável”. Em que consiste?

Em que as decisões estratégicas que definem para onde um país deve avançar têm que pôr a saúde e o meio ambiente em primeiro lugar. É preciso investir em energias limpas. Essa decisão combate, ao mesmo tempo, a mudança climática e as doenças que esta gera. Além disso, é preciso reduzir o desmatamento e adotar práticas agrícolas mais sustentáveis.