quarta-feira, 15 de maio de 2019

Gente fora do mapa

by Don McCullin Palestinian mother and children fleeing Christian gunmen. Karantina, Beirut, Lebanon. Jan. 18, 1976.
 Líbano, 1976 (Don McCullin)

As trombetas de Paulo Guedes e de Rodrigo Maia

Demissão de general? Bobagem. Se o presidente Jair Bolsonaro mandasse embora qualquer militar empregado no governo haveria choro e ranger de dentes, sim, mas nada muito além disso. Os demais não pediriam demissão. Tudo pela estabilidade do país!

A quebra do sigilo bancário e fiscal de Flávio Bolsonaro e de mais 88 ex-funcionários do seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio? Flávio que se arranje, com a ajuda discreta do pai. O que vier a acontecer com ele é jogo jogado.

Tsunami de verdade, capaz de demolir e de afogar tudo que encontre pelo caminho, é o que anunciou, ontem, em Brasília o ministro Paulo Guedes, da Economia, e reforçou em Nova Iorque o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).



O deputado disse para uma plateia de empresários americanos e brasileiros que as amarras impostas pelo teto de gastos em combinação com a falta de crescimento econômico, pode levar o Brasil em breve a um "colapso social".

Maia mostrou-se preocupado com o possível retorno do país ao mapa da fome. “Voltamos a fazer a campanha contra a fome no final do ano passado e ninguém deu bola para isso”, observou. “Além do ambiente mais radical, temos agora uma sociedade mais sofrida”.

Defendeu a revisão do teto de gastos após a aprovação da reforma da Previdência que, segundo ele, será insuficiente para ressuscitar a economia brasileira. E a aprovação de um projeto de crédito de R$ 240 bilhões para o pagamento de despesas correntes.

Guedes foi mais apocalíptico do que Maia. “Estamos à beira de um abismo fiscal. Vamos nos endividar para pagar Bolsa Família, BPC, Plano Safra e as aposentadorias do regime geral, INSS. Estamos nos endividando para pagar despesas correntes”, disse a parlamentares.

E previu: “Se o Congresso não aprovar o projeto de crédito suplementar, será necessário travar os pagamentos do governo”. Sem o crédito, os pagamentos de subsídios param em junho, de benefícios assistenciais em agosto e, do Bolsa Família, em setembro.

Queixou-se de que, como ministro da Economia, manda muito pouco. Afirmou que é Bolsonaro quem decide onde são feitos cortes orçamentários. É ele quem indica as prioridades do governo. “O poder está em quem sanciona as leis”, ensinou.

Está claro que Guedes encontrou uma situação pior do que imaginara. O que vendeu como receita para resolver o nó das contas públicas tinha mais a ver com mágica. Para completar, Bolsonaro, o dono da caneta, não sabe o que faz, o que diz e para onde vai.

Um governo medíocre, sem projeto a não ser o de sobreviver, sem apoio no Congresso, em guerra permanente com os partidos, refém de um presidente que se diz eleito por milagre, e ameaçado de ter de suspender seus pagamentos por falta de dinheiro.
Quer tsunami maior do que o que se avizinha?

Democracia sob ataque

A crise da escola é a crise da democracia. Os governos de direita não querem que as pessoas pensem, e a educação tem um papel central na luta contra as narrativas tóxicas e o surgimento de ideologias ligadas à supremacia branca
Henry Giroux, pesquisador da Universidade McMaster de Ontário 

Sob Bolsonaro, MEC conseguiu acordar o asfalto

O Ministério da Educação precisa de uma dessas forças de paz das Nações Unidas. Logo num setor tão estratégico, que deveria merecer atenção prioritária, instalou-se uma briga que teve origem nos Estados Unidos. A infantaria de Olavo de Carvalho desperdiçou os primeiros meses do governo de Jair Bolsonaro trocando tiros com a cavalaria dos militares. Poder-se-ia supor que guerreiam por concepções antagônicas de políticas educacionais. Infelizmente, não é esse o caso. O conflito envolve ideologia. Apenas ideologia. Nada além de ideologia.


O governo mal começou e já teve dois ministros da Educação. Ambos professores, com mestrado e doutorado em ciências Olavetes. O primeiro, Ricardo Vélez, deixou duas marcas: o caos administrativo e o plano de impor às escolas a filmagem diária de crianças hasteando a bandeira e entoando o hino nacional, depois de recitar o slogan de campanha do capitão. O segundo, Abraham Weintraub, conservou a balbúrdia gerencial e transformou um corte orçamentário numa cruzada ideológica que uniu a esquerda e a direita universitária numa mesma trincheira.

Juntos, Vélez e Weintraub produziram a única realização social perceptível do governo Bolsonaro nos seus quatro meses e meio de existência: de tanto cutucar a paciência alheia, o MEC conseguiu despertar o asfalto. Nesta quarta-feira, alunos, professores e funcionários de universidades e escolas realizam um protesto que tem ambições nacionais. O movimento ocorre num instante em que Bolsonaro prioriza a distribuição de portes de armas e o Posto Ipiranga Paulo Guedes informa ao Congresso que a economia está "no fundo do poço".

Num gesto de raro oportunismo, centrão e oposição juntaram-se para arrastar o ministro Weintraub até o plenário da Câmara. Nesta quarta, enquanto as vítimas dos cortes de R$ 7,4 bilhões já anunciados pelo MEC estiverem protestando, o dono da tesoura passará pelo constrangimento de explicar aos deputados a falta de critérios e o excesso de ideologia.

Com sorte, o governo do capitão levará apenas um chacoalhão. Com azar, a administração Bolsonaro talvez assista ao nascimento de uma oposição extraparlamentar semelhante àquela que moeu Dilma Rousseff, triturou o petismo e criou a onda de insatisfação que transformou um deputado do baixíssimo clero num presidente da República capaz de cometer a burrice de terceirizar o Ministério da Educação a Olavo de Carvalho, um polemista que toca fogo no circo tuitando desde a Virgínia.

Brasil e o dragão da maldade


Bolsonaro, o bom, e as forças ocultas

Não vai haver mudança na tabela do Imposto de Renda. Não vai haver controle do preço de diesel. Não vai haver redução de taxas de juros em bancos públicos. Não vai haver divisão de receita ordinária do governo federal com governadores e prefeitos. Etc.

Esse monte de "nãos" são promessas, anúncios e devaneios de Jair Bolsonaro furados pelos tiros do mínimo senso comum da economia. Haverá mais. O presidente quer agora evitar o corte na educação. É possível. Mas vai tirar dinheiro de onde? Dos submarinos da Marinha? Não se sabe, nem o assunto foi levado ao Ministério da Economia.

O presidente não sabe o que diz, mas talvez saiba o que faz. Como em uma rede social, "compartilha" aflições e promete bondades, o que não resolve problema algum, mas "posts" podem fazer espuma política. No limite, Bolsonaro pode dizer que forças ocultas atrapalharam seu governo, terceirizando a responsabilidade.

O presidente já até ensaiou a jogada, dizendo que "no fundo não gostaria de fazer a reforma da Previdência". Os militantes virtuais do bolsonarismo, por sua vez, acusam gente do governo de estelionato eleitoral, pois impediriam Bolsonaro de cumprir seu verdadeiro programa. Por ora, militares são o alvo. Amanhã, pode ser um economista.

O desvario é também mais um sintoma da tensão política causada pela disputa terminal por recursos públicos. No presente ritmo e sem "reformas", antes do final do governo Bolsonaro não haverá um tostão para gasto em obras ou, então, partes do governo vão parar de vez.

A greve da educação prevista para esta quarta-feira (15), as queixas de caminhoneiros, prefeitos, ruralistas ou de empresários do Minha Casa Minha Vida, as pontes que caem, o remédio que falta para transplantados, tudo é mais ou menos efeito da pindaíba final.

Sim, reajustar a tabela do Imposto de Renda e diminuir a carga de impostos são objetivo do ministro da Economia, Paulo Guedes. Assim também é a ideia de redividir a receita federal com estados e municípios, aos poucos e quando houver dinheiro. Porém, em uma perspectiva realista, tais projetos devem ficar para o programa de uma campanha da reeleição.

Nesta terça-feira, Guedes disse a obviedade necessária em audiência no Congresso: o reajuste da tabela do IR tira do governo dinheiro que não existe.

É possível que saiam remendos, até para fazer um agrado ao presidente? Talvez. Mas corrigir os valores da tabela pela inflação de um ano apareceria como um troco nos contracheques e provocaria talho considerável de despesa pública.

Sim, deve haver algum dinheiro extra para estados e municípios, mas a partir do ano que vem, a depender de certas condições, recursos que, no máximo, pagam contas atrasadas.

Parte do dinheiro do megaleilão do petróleo previsto para fins de outubro, uns R$ 20 bilhões da arrecadação estimada de uns R$ 100 bilhões, deve ficar com governos locais (um terço de tudo vai para a Petrobras). A partir do ano que vem, talvez o governo federal abra mão de parte de royalties e outros rendimentos da exploração do petróleo.

Receitas extraordinárias, como as de concessões e de privatizações, pois, podem tapar uns rombos críticos, tais como esses que ameaçam as universidades federais. São uma boia que evita o afogamento em 2020. Mas, mesmo com reforma da Previdência e a volta de algum crescimento (mais de 2%), a dureza não vai diminuir grande coisa até o fim deste governo.
Vinicius Torres Freire

Cabeça-bomba

São bombas nucleares que garantem a paz. Se nós já tivéssemos os submarinos nucleares já finalizados, que têm uma economia muito maior dentro d'água; se nós tivéssemos um efetivo maior, talvez fossemos levados mais a sério pelo (Nicolás) Maduro, ou temidos pela China ou pela Rússia
Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ), presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados

Chute nos aliados

Os aliados de Jair Bolsonaro na campanha eleitoral deviam ter desconfiado quando, assim que foi empossado, ele jogou no mar seu amigo, seguidor e devoto Magno Malta. Todos se lembram da importância de Magno Malta, então senador pelo Espírito Santo, na vida do candidato. Quando Bolsonaro levou a facada em Juiz de Fora, foi Magno Malta quem se debruçou sobre ele no leito do hospital, quase o asfixiando, e fez uma reza braba —digo, oração— pela sua recuperação. O país inteiro assistiu. Magno Malta olhou para o teto em busca de Deus e, com seus poderes de pastor evangélico e cantor de pagode gospel, só faltou ordenar a Bolsonaro: “Levanta-te e anda! Levanta-te e anda!”.

Seja como for, deu certo. Bolsonaro levantou-se, andou e, um ou dois dias depois da posse, chutou Magno Malta de volta para o limbo de onde ele nunca devera ter saído —sem mandato, por não ter sido reeleito senador por seu estado, e sem o ministério que esperava ganhar por sua devoção. Dura perda para quem, um dia, sonhara até ser o vice de Bolsonaro.

Para Bolsonaro, aliado de campanha é uma coisa e, no governo, outra. E isso vale para todos os escalões. Sergio Moro e Paulo Guedes, por exemplo, eram decisivos para elegê-lo, daí os epítetos de superministro para o primeiro e de Posto Ipiranga para o segundo. Na prática, Bolsonaro tem se dedicado, com sucesso, a sabotar um e outro, com declarações que atrapalham que realizem seus projetos. Bolsonaro não vê a hora em que eles, tristinhos, peçam demissão.

Bolsonaro parece trabalhar contra si próprio, ao deixar que o Congresso derrube seus decretos, o Judiciário lhe faça cara feia e os militares se magoem com os insultos que recebem. Mas só parece. O que ele quer é que todos saiam da sua frente para que, dizendo-se incompreendido, possa governar com os filhos e “com o povo”, através das redes sociais.

Resta ver se combinou com o povo.

Ruy Castro

O presente envenenado de Bolsonaro aos menores de idade no Brasil

Não acredito que exista hoje, em um país democrático, um líder político com uma paixão tão mórbida e desenfreada pelas armas como o presidente brasileiro, o capitão reformado Jair Bolsonaro. Desde que chegou ao poder, há pouco mais de quatro meses, nenhuma outra categoria de pessoas foi mais favorecida por seus decretos do que aquelas que se sentem atraídas pelas armas.

Em seu último decreto, provavelmente inconstitucional, não só concedeu a possibilidade de possuir e portar armas a 19 milhões de brasileiros, de 20 categorias diferentes, como também abriu as comportas para dar essa possibilidade a milhões de "menores de 18 anos ", para que possam ser treinados no uso de armas letais em clubes de tiro. Um presente envenenado que não sabemos que consequências pode acarretar em uma sociedade como a brasileira, cujos adolescentes vivem no fogo cruzado de uma violência que os alcança até nos bancos escolares.

Entre as 20 categorias às quais Bolsonaro concedeu o direito de possuir e usar armas aparecemos, por sinal, até mesmo nós, jornalistas. Um curioso paradoxo, já que a nossa única arma é a da palavra escrita ou oral para contar à sociedade o que o poder tenta esconder, para denunciar os abusos dos poderosos aos fracos, para desmascarar as fake news em que os políticos costumam se esconder. Nunca vi um repórter, nem de guerra, fazer seu trabalho com uma arma no bolso. Eles são mortos desarmados.

No entanto, o presente que Bolsonaro ofereceu aos menores é uma das aberrações da sua paixão desenfreada por criar, enquanto difame a cultura e o pensamento, um mundo em que as armas sejam a bandeira e a insígnia da idiossincrasia de um país que nem se lembra de quando foi seu último conflito armado com o mundo exterior.

O decreto permite que menores de 18 anos possam ir a clubes de tiro para treinar o uso de armas letais. Menores até que idade? Até 16 anos, 14, 12, 10 anos? Ou até mesmo aquela garotinha de cinco anos a quem, durante sua campanha eleitoral, o então candidato à presidência Bolsonaro tentou, tomando-a nos braços, ensinar o gesto de disparar um revólver? Na foto, que percorreu o mundo, o futuro presidente ri feliz, enquanto a menina parece perplexa com o que estão fazendo com suas mãos.

Ao lado da foto icônica de ensinar à pequena o gesto de disparar uma arma com os dedos de suas mãos, existe no repertório gráfico do então candidato outras fotos emblemáticas, como a do hospital de São Paulo onde, vítima de um atentado que poderia ter sido fatal, tinha acabado de ser operado com sucesso. Nem naquele momento, em que celebrava o milagre de ter a vida salva, foi capaz de se despojar daquela mímica da violência, e voltou a imitar de seu leito de enfermo, desta vez com as duas mãos, o gesto de disparar um rifle (contra quem?), em vez de ter enviado à nação um abraço de paz e harmonia.

Agora, os menores de idade podem trocar as academias de ginástica, centros esportivos ou institutos de idiomas pelos clubes onde treinarão para matar. O decreto exige que o menor tenha a permissão de um dos pais. Certamente será a de seus pais, pois duvido que as mães que os engendraram com amor e dor, estejam de acordo que as mãos de seus pequenos cheirem à pólvora tão cedo.

Bolsonaro, não sei se por medo ou paixão, admitiu que não consegue dormir nem no palácio presidencial sem uma arma ao lado de sua cama. Não sei se, como tantos outros pais, ele e sua mulher praticavam algum ritual para que os filhos pequenos dormissem sem pesadelos. Minha filha, antes de dormir, gostava que lêssemos alguma fábula com um final feliz. Não posso imaginar ajudar uma criança a ter sonhos de paz acariciando-a com a coronha fria de um revólver.

Não sei que ideias Bolsonaro cultivava quando abriu as portas para que crianças possam tão cedo aprender a usar armas de morte. O Brasil não é um desses países em guerra, onde até crianças são treinadas para lutar contra os inimigos. Estamos em um país, claro, onde a violência institucional e do narcotráfico transborda, e os jovens são as mais numerosas vítimas dessa violência.

Os mortos por balas perdidas, sobretudo no inferno das periferias pobres e violentas das grandes cidades, são as crianças quando brincam na rua, saem da escola ou se refugiam nos braços dos adultos. Algumas são atingidas por aquelas balas ainda no ventre das mães. Armar crianças, introduzi-las nos ritos da morte antes mesmo de terem desfrutado da alegria de viver, em vez de protegê-las como nosso melhor futuro de paz, soa como blasfêmia e derrota de um Estado incapaz de proteger os inocentes.

É verdade que o Brasil é um dos países com as maiores taxas de violência no continente e talvez no mundo. Querer, no entanto, preparar para a guerra até mesmo suas crianças, na flor das ilusões, é aceitar que o Brasil é um país perdido para a paz, no qual até as crianças devem se preparar para um futuro sombrio de violência, como uma fatalidade.

A não ser que Bolsonaro considere os rituais de armas e violência como a alma do novo Brasil sonhado por ele. Esquece-se de que se trata de um povo cuja bandeira não inclui, como em muitos outros no mundo, a cor vermelha do sangue e da violência, e sim as cores luminosas da beleza da natureza e do amor que o marca como buscador da paz e não da guerra.

Pensamento do Dia


Sobre o 'marxismo cultural'

A Rádio Guaíba me perguntou sobre esse “marxismo cultural” que, como um canibal, devora consciências. Ele, diz a vulgata bolsonarista, distorce realidades tão claras como o evangelismo cristão ou um conservadorismo radical, igualmente sectário.

Um ataque de pusilanimidade me fez driblar a entrevista. Mas não consigo fazer o mesmo com minha consciência.

O problema das Ciências Sociais é estudar coisas que todos experimentam. Quem não tem opinião sobre sexualidade, religião, política, pobreza e corrupção? Mas quantos buscam compreender tais assuntos com distanciamento?

As Ciências Sociais contrariam o senso comum e investigam temas e assuntos proibidos. Um exemplo forte é a sexualidade infantil estudada por Freud, um outro é a transição do lucro como paixão escusa a investimento produtivo num universo de múltiplos interesses que, leiam Albert Hirschman, bloqueia despotismos.

Por outro lado, quem não pensa em transformar a vida dos pobres e oprimidos, sobretudo num Brasil onde eles fazem parte da vida de cada um de nós? Seja como ricaço ou miserável; cidadão comum ou celebridade com o direito a escapar da terrível igualdade republicana? Quem não se preocupa com o mínimo de bens e serviços obrigatório para todos os brasileiros?


O coração ideológico da consciência política da minha geração, formada no final dos anos 50, foi o marxismo. Um marxismo lido em traduções de edições russas censuradas. Lembro que essa geração da Guerra Fria — condescendentemente chamada de “geração Coca-Cola” — não falava apenas de “direita” e “esquerda”. Ela ia além, classificando as pessoas como “conscientizadas” e “alienadas”. Os pais eram alienados, as mães — católicas e preocupadas com os pobres — pré-conscientizadas. Fui contaminado por Karl Marx e pelo pouco falado Friedrich Engels quando entrei na faculdade. Quem, aos 20 anos, não tem o direito de se deslumbrar com o Manifesto Comunista e vibrar com o fim da opressão encontrando, de quebra, a chave-mestra da História da Humanidade?

Foi o protomarxismo mais evolucionista do que funcionalista (o Marx do 18 Brumário e o da Questão Judaica) que me levou a perceber o Brasil que gravitava em minha volta. Brasil com o qual, como aprendiz de antropólogo do Museu Nacional, entrei em contato quando vi o seu lado mais fundo e dramático — suas sociedades indígenas que, mesmo com a tal “proteção oficial”, estavam sendo dizimadas enquanto os sertanejos reclamavam de injustiça.

Foi, pois, o altruísmo contido no “comunismo” que me levou a essa identificação com um Brasil a ser transformado. Não abandonei esse comunismo até hoje entrelaçado ao meu amor pelo Brasil.

O que abandonei foi a infantilidade dos radicalismos. Do “esquerdismo” nas suas versões radicais e patologicamente malandras e populistas. Um posicionamento cujo pendor acusatório e condescendente, ressentido e repleto de má-fé (aos nossos, tudo; aos inimigos, o berro, a negação, a mentira e a calúnia!) reproduz o autoritarismo fascistoide do regime militar. A prova do pudim foi (como ocorre em todo lugar) a chegada ao poder, pois nada é mais revelador do que o poder.

O esquerdismo irresponsável produziu o contexto polarizado que vivemos. Pode-se controlar excessos, mas enjaular o “marxismo cultural”, cujo espírito marca toda uma época, seria como tentar colocar de volta a noite na Caixa de Pandora. Do mesmo modo, não há como carimbar o liberalismo como um paraíso de rentistas ladravazes. Basta pensar na filantropia e no mercado como um equalizador de interesses pulverizados — esses produtores de meritocracia coletivista. Por outro lado, o comunismo recria o individualismo capitalista quando se reconhece o talento dos seus líderes. Senão ninguém falava em Stalin, Lenin, Mao e Fidel.

O que não pode ocorrer é a tentativa de eliminação suicida da esquerda pela direita. Deveríamos ter aprendido que a democracia tanto como um regime político e, acima de tudo, como um estilo de vida, precisa dos dois lados que nela concordam em discordar. Direitas e esquerdas perfeitas — que deixam saudade! — só ocorrem nas ditaduras que, lamentavelmente, conhecemos bem demais.

Retirada tática

A vitória de Temístocles em Salamina (480 a.C) preservou o mundo grego ameaçado pela Pérsia. O triunfo do macedônio Filipe 2º em Queroneia (338 a.C) unificou as cidades gregas e assentou as bases para a difusão cultural do helenismo. A invasão normanda foi concluída por William, o Conquistador, na batalha de Hastings (1066), fonte mítica da moderna Britannia. Segundo uma interpretação exagerada, a civilização ocidental deve sua existência a esse trio de batalhas icônicas.

Os generais do alto escalão do governo Bolsonaro certamente as estudaram —e, com elas, aprenderam o valor militar da retirada tática. É hora de aplicar a manobra à política.

O pacto dos generais com o capitão reformado nasceu de um equívoco fatal: os primeiros não entenderam a natureza do segundo. Bolsonaro jamais deixou de ser o fanfarrão estéril, turbulento e indisciplinável, afastado da corporação em 1988. A novidade é que, na curva final rumo ao Planalto, acercou-se de correntes populistas de extrema direita fundamentalmente hostis às mediações institucionais da democracia.

Os generais pretendiam participar de um governo “normal”, enquadrado na moldura do Estado de Direito. De fato, participam de um governo cujo núcleo almeja subverter o Estado de Direito.


Na rua ao lado, uma faixa da vovó Jurema promete trazer seu amor de volta. A “filosofia política” do Bruxo da Virgínia vale tanto quanto os búzios da vovó —e sua pregação era, até há pouco, um mero golpe de charlatanismo, com implicações exclusivas para seus seguidores ignorantes. Desde a ascensão de Bolsonaro, converteu-se em programa de governo. Os generais começam a entender que o conflito não é com o espalhafatoso bobo da corte, mas com o presidente e seu clã familiar. Falta-lhes, ainda, entender que a conciliação é impossível.

O bolsonaro-olavismo deplorou o “impeachment parlamentar” de Dilma Rousseff. Naquela hora, eles clamavam por uma “intervenção militar” definida não como golpe de Estado clássico mas como uma “marcha sobre Brasília” do povo e dos militares. Hoje, sonham transformar o governo Bolsonaro no ato inaugural de um Estado-movimento: um poder estatal não submetido ao limite das leis e consagrado à luta política permanente.

Nessa ordem tresloucada de ideias, a barragem de artilharia virtual sobre o STF, a imprensa e os generais destina-se a preparar a “marcha sobre Brasília” —isto é, a ruptura do Estado de Direito.

Os populismos certamente são capazes de matar as democracias por dentro (Turquia, Hungria, Venezuela). No Brasil, porém, mais provável é que a “revolução” bolsonaro-olavista provoque a implosão do próprio governo Bolsonaro.

Se os generais não querem aparecer como cúmplices do desastre, resta-lhes apelar à retirada tática. Salamina foi uma simulação de retirada, que atraiu os barcos persas ao estreito da armadilha. Em Queroneia, uma breve ofensiva seguida por retirada da ala direita das forças macedônias abriu a cunha fatal entre as falanges gregas. Hastings tem algo de Queroneia, mas é difícil saber se a decisiva retirada temporária das forças normandas foi uma manobra planejada ou o resultado de um insucesso na ofensiva inicial. De qualquer modo, para os generais brasileiros, a solução não requer excessiva inventividade.

O governo Bolsonaro sustenta-se sobre o tripé formado pela equipe econômica, o superministério de Moro e a chamada “ala militar”. A remoção do terceiro pilar, pela entrega coletiva dos cargos, destruiria a estabilidade do edifício. A queda encerraria o levante dos extremistas, que confundem os ecos de seus tuítes com a voz do povo. Depois dela, ainda sobraria Mourão –e, portanto, a chance de construção de uma vereda política para o futuro.

Generais, mirem-se em Temístocles, o ateniense, Filipe 2º, o macedônio, e William, o normando. Retirem-se, antes que seja tarde.

Por que os indígenas são a chave para proteger a biodiversidade planetária

O último relatório da ONU que alerta sobre a velocidade com que as espécies estão se extinguindo (uma de cada oito está ameaçada) assinala que essa destruição da natureza é mais lenta nas terras onde vivem os povos indígenas do que no resto do planeta. Mas também destaca a crescente ameaça que ronda essas comunidades na forma de expansão da agricultura, urbanização, mineração, novas infraestruturas... O Brasil, que abriga a maior parte da Amazônia e o ecossistema mais rico do mundo, é um dos países onde essa ameaça é mais evidente. Além dos fatores mencionados, aqui se soma o presidente. Jair Bolsonaro é partidário de explorar comercialmente a Amazônia e assimilar os indígenas.

Os indígenas brasileiros são cerca de 800.000 (0,6% da população), estão divididos em 225 grupos e vivem em 14% do território. Pode parecer pouca população em muita terra, mas cumprem funções-chave para preservar a natureza. A especialista Nurit Bensusan, da ONG Instituto Socioambiental (ISA), detalha essas funções: “Por um lado, conservam a integridade das terras em que vivem e tentam, e frequentemente conseguem, evitar que entrem madeireiros, garimpeiros, grileiros... e, como sabemos que a maior ameaça às espécies é a deterioração de seu meio ambiente, o papel que desempenham é crucial”. Basta olhar um mapa para ver que as áreas onde vivem os indígenas sofrem menos desmatamento que as demais. No ano passado, o desmatamento atingiu 7.900 quilômetros quadrados, a maior área desde 2008.


Mas, acrescenta a especialista, o papel dos indígenas tem uma segunda dimensão: “Por conhecerem tão intimamente as florestas, eles têm uma percepção muito antecipada, antes de todos, das mudanças ambientais. Sabem como lidar com isso. Por exemplo, param de caçar em uma área durante um tempo… e assim aliviam o impacto antes que quaisquer outros”. Os indígenas são parte essencial dos alertas rápidos e da prevenção. Muitos vivem nas mesmas terras há 10.000 anos, mas desde a conquista até os anos 1970 as populações indígenas foram dizimadas na América e muitas etnias se extinguiram. A Fundação Nacional do Índio (Funai) lembra que isso era considerado uma “contingência histórica, algo inevitável”. Uma abordagem que mudou nas últimas décadas, quando os povos indígenas começaram a ser oficialmente protegidos. Mas o problema se agravou porque agora, no Brasil, a ameaça vem do topo do poder político.

Bolsonaro, um militar da reserva de extrema direita que na campanha eleitoral combateu a defesa do meio ambiente, segue nessa linha desde que assumiu o poder, em 1º de janeiro. Desistiu de abandonar o Acordo de Paris contra a mudança climática (porque foi advertido de que isso afetaria as exportações para a Europa), mas tomou uma série de decisões de reorganização ministerial e nomeações, entre outras, que causam profunda preocupação no mundo ambientalista brasileiro. E também no estrangeiro. Nada menos que 600 cientistas europeus pediram na semana passada que a União Europeia aproveite as negociações comerciais com o Brasil para pressionar o presidente e reforçar a luta contra o desmatamento.

Para o Greenpeace, estes quatro meses de Governo Bolsonaro significaram “o desmantelamento não só da legislação, como também das estruturas (administrativas) que garantem a preservação do meio ambiente e dos povos indígenas, com mudanças nos orçamentos, desautorização de operações de combate do desmatamento...”, explica Tica Minami, diretora de campanhas do Greenpeace no Brasil. Um dos primeiros decretos do presidente retirou da Funai a competência para demarcar as terras indígenas, transferindo-a para o Ministério da Agricultura, que sempre esteve na órbita da indústria agropecuária, mas agora é comandado por uma representante desse setor. A ministra Tereza Cristina Dias era a líder da bancada parlamentar do agronegócio.

“Este Governo não identificou, declarou nem homologou uma única terra indígena”, denunciam o ISA e o Conselho Indigenista Missionário, vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em um comunicado. O dirigente indígena Dinamam Tuxá afirma nesse comunicado, divulgado segunda-feira, que “assim foram quatro meses de um Governo genocida que tem quatro anos pela frente”. Ele ressalta que, em caso de disputa, se o Governo não atua para “mediar ou garantir os direitos, quem leva a pior parte é o povo indígena”.

Os povos indígenas têm um capítulo próprio na Constituição de 1988, que reconhece seu direito sobre as terras que habitam. Eles já estavam lá antes da chegada dos colonizadores e da fundação do Estado do Brasil. E, na atual legislatura, têm uma representante no Congresso federal, a advogada Joênia Wapichana.

Há algumas semanas, o chefe do Executivo recebeu um pequeno grupo de representantes dos indígenas no Palácio do Planalto, às vésperas da marcha anual dessas comunidades, para reivindicar seus direitos, além de saúde e educação. Bolsonaro afirmou a seus interlocutores que eles vivem em terras riquíssimas e que a exploração delas renderia uma fortuna.

O que acontece no Brasil é fundamental porque tem efeitos no resto do mundo, já que o país tem a maior floresta tropical e o ecossistema mais rico do planeta. Mas o país também é líder em assassinatos de ativistas ambientalistas. Com as políticas de Bolsonaro, “o Brasil deixa de cumprir seu papel na luta global contra a mudança climática”, sentencia Minami.