terça-feira, 13 de abril de 2021

O paradoxo de Bolsonaro

Atribui-se a Eubulides de Mileto o paradoxo do monte (“sorítes”). Um grão de areia obviamente não constitui um monte. Se eu adicionar um segundo grão ao primeiro, ainda não tenho um monte. Nem com um terceiro. Mas, se eu continuar com esse processo, em algum momento eu chegarei lá. De quantos grãos eu preciso para fazer um monte?

O diálogo entre Jair Bolsonaro e o senador Jorge Kajuru pode sem grandes pinotes interpretativos ser enquadrado como mais um crime de responsabilidade, ou até dois, se valorizarmos a linguagem chula.

Pelas contas da Folha, em janeiro já havia 23 situações que poderiam ser classificadas como crimes de responsabilidade do presidente. Nos últimos três meses, Bolsonaro adicionou novos itens à lista. Quantos delitos mais ele precisa cometer para que tenhamos um monte de ilícitos e o Congresso decida pará-lo?

Filósofos, matemáticos e linguistas estão há 2.500 anos propondo soluções engenhosas para paradoxos como os de Eubulides, que fazem recurso à indeterminação ou à vagueza dos termos. Numa delas, a filósofa Diana Raffman traz a noção de histerese e sustenta que os limites em que os termos serão usados são elásticos e se relacionam com a história dos objetos.

Assim, se um objeto já era reconhecido por todos como um “monte de areia”, poderá continuar a ser chamado de monte mesmo que perca uma quantidade de grãos que, fosse outro o objeto, levaria a um rebaixamento de monte para pilha.

Vincular a categoria à história, porém, pode ser diabólico quando lidamos com questões institucionais. É mais ou menos o que estamos presenciando. Quanto mais crimes de responsabilidade Bolsonaro comete, mais nos acostumamos com a situação e mais difícil fica estabelecer que ele já excedeu o limite que exige uma ação. Em suma, quanto mais ele viola a lei, menor a possibilidade de que venha a ser punido —o que nos leva a uma outra família de paradoxos.

Pensamento do Dia

 


A imaginação de Bolsonaro não tem limites

Ninguém me contou, eu mesmo vi Jair Bolsonaro declarar na televisão que tinha informação segura de que a eleição americana tinha sido fraudada. Como o vi, meses antes, dizer que, em 2018, tinha sido roubado, pois havia vencido a eleição para presidente no primeiro turno. Nos dois casos, como sempre faz, nunca apresentou prova alguma.

A imaginação do homem não tem limites. Se a realidade o incomoda, ele encontra sempre um jeito de passar por cima dela, contando uma história lá da cabeça dele. A gente até acha graça do que considera desinformação. Mas, de repente, paramos pra pensar e descobrimos uma certa coerência nisso tudo, uma teia que ele tece aos poucos com seus parceiros. Como os galos da manhã de João Cabral, eles nos anunciam um outro dia que nasce radiante. Um dia de radiante horror.


Sua eleição deu-se por infeliz coincidência entre um candidato que representava políticos de quem ninguém queria mais saber e outro que ninguém conhecia, mas se parecia com aquele simpático conversa mole de botequim, sempre dizendo besteiras que nos fazem rir amorosamente. Com ele eleito, descobrimos que era tudo uma peça que a democracia nos pregava. Alguém aí tem hoje alguma dúvida de que, quando ele perder a eleição de 2022, vai declarar que houve fraude e armar um fuzuê para não deixar o poder? O homem só pensa nisso.

Na política e na vida, a mentira é arma poderosa, sobretudo na mão de um candidato que tem poder porque está no poder. O ministro do governo no STF afirmou que esvaziar os templos por causa da Covid é impedir a liberdade religiosa, o ir e vir garantido pela Constituição. Ele propõe, em contrapartida, uma restrição no número de fiéis em cada espaço de oração. E os que, nesse caso, ficam fora desse espaço nos templos não estão sendo impedidos de ir e vir, de exercer sua liberdade religiosa? Esse é um excelente modo de admitir o óbvio inconveniente (a pandemia), propondo uma falsa solução que excita os interessados contra quem age com correção.

Quero ver nossos finos conservadores enfrentando o demônio armado. Já, já ele acaba de formar sua milícia com as armas que está fazendo entrar no país legalmente, a preço de banana. Como já pode ter empolgado os PMs iludidos pela ausência de repressão no levante do Ceará. Ou os negacionistas sinceros, pelas mentiras inventadas pela turma da Bia Kicis sobre a morte do pobre soldado doente da Bahia. E, sobretudo, pelo empenho junto às Forças Armadas, que parece não estar dando resultado, mas que ninguém sabe dizer direito a quantas anda.

Depois da longa ditadura e de tantos anos de uma democracia que julgávamos sólida, o novo regime começou a pifar a partir de erros graves cometidos por Dilma Rousseff. Como não sabemos debater sem eliminar o adversário, os erros foram agravados pelo impeachment dela, uma violência absurda e desnecessária. Um gesto de impotência disfarçada na aparente onipotência de uma oposição que não sabia o que fazer. Nem o que estava fazendo, o que ficava claro na sucessão de tolices ditas antes do voto, para justificar o que ninguém tinha certeza.

Hoje, vivemos nesse inferno de poderes que disputam a culpa da morte de quase 400 mil brasileiros, em vez de tentar impedir que eles morram. Um inferno em que, num plano fechado, um vereador mata seu enteado de 4 anos como se estivesse numa pelada de futebol e uma deputada manda seus 500 filhos acabarem com seu marido. Como diz o assassino do menino Henry, o importante “é virar a pagina”. Mas, no curso desse lodo geral, avançamos sem saber o que nos espera na página seguinte.

Da perplexidade ao desprezo

Houve um tempo em que os brasileiros se chocavam com o linguajar chulo do presidente Jair Bolsonaro, tão impróprio para o exercício da chefia de governo. Os áulicos de Bolsonaro se esforçam para qualificar esse comportamento como “autêntico”, pois, segundo eles, o presidente “fala o que pensa”. E isso, na visão desses sabujos, seria positivo, pois o aproximaria do “povo”, em suposto contraste com o distanciamento das elites políticas.

Hoje, contudo, ninguém fica mais perplexo com as grosserias de Bolsonaro. E o povo, conforme atestam as pesquisas de opinião, quer cada vez mais distância do presidente, pois a conduta indecorosa de Bolsonaro constrange os brasileiros decentes. Cansados das obscenidades de Bolsonaro, esses cidadãos – a maioria da população – certamente lhe reservam agora o mais olímpico desprezo.



Fossem outros os tempos, a agressão de Bolsonaro ao ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), questionando-lhe a moralidade e acusando-o de fazer “politicalha” ao ordenar que o Senado instaurasse a CPI da Pandemia, teria causado furor – afinal, nenhum presidente é obrigado a gostar dos ministros do Supremo, mas deve respeitá-los. Decerto, Bolsonaro pretendia provocar uma reação popular tão virulenta quanto a sua, de modo a criar um clima de briga de rua, tão ao gosto do bolsonarismo. Mas a ruidosa incivilidade do presidente gerou uma resposta ponderada do ministro Barroso, que se limitou a dizer que apenas aplicou a Constituição, que consultou todos os colegas de Supremo e que continuará a desempenhar seu papel “com seriedade, educação e serenidade”. E nada mais.

Naturalmente destemperado, como admitem até mesmo seus devotados seguidores, como se isso fosse uma qualidade, Bolsonaro se torna ainda mais virulento quando se considera acuado. O Brasil foi apresentado a essa característica do presidente na famigerada reunião ministerial de abril de 2020, quando Bolsonaro, já ciente da encrenca política derivada da pandemia, usou extenso repertório de termos chulos para se referir a outros Poderes, a governadores e a prefeitos.

Na época, os brasileiros ficaram pasmos com a capacidade de Bolsonaro de envergonhar o País que lhe foi dado governar. Além de ofender, nos termos mais rasteiros, aqueles que considera seus inimigos, Bolsonaro se esmera em acusá-los das maiores barbaridades sempre sem apresentar provas. Lança suas suspeitas no ar, e as milícias virtuais bolsonaristas, movidas a fraudes, transformam essas patranhas em verdades inquestionáveis. Não demorou para que o padrão de desfaçatez ficasse bem estabelecido e, agora, já não surpreende mais ninguém – mesmo quando Bolsonaro chama seus compatriotas de “maricas” por se preocuparem com a pandemia.

Hoje já se sabe que Bolsonaro é simplesmente incapaz de reconhecer os erros que comete e os limites do poder de que foi investido. Sempre que alguém aponta seus equívocos ou o adverte sobre seu comportamento autoritário, Bolsonaro reage com truculência. Sua hostilidade à CPI da Pandemia mostra seu inconformismo com os freios e contrapesos próprios do regime democrático.

Nenhum presidente digno do cargo pressionaria um dos autores do requerimento da CPI não só a ampliar o escopo das investigações, como a trabalhar pelo impeachment de ministros do Supremo, como fez Bolsonaro, tudo com o evidente objetivo de causar tumulto e interferir no Judiciário e no Legislativo. De quebra, falou em “sair na porrada” com o líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP).

Em vez de se preocupar em reunir dados e informações que demonstrem a suposta correção de suas ações durante a pandemia, para atender às demandas da CPI, Bolsonaro parte para a chantagem – atitude típica de quem não tem argumentos.

O presidente se tornou previsível: se Bolsonaro jamais aceitou a hierarquia e as normas dos quartéis em que serviu quando foi um mau militar, é perda de tempo esperar que ele refreie sua natureza e, de uma hora para outra, passe a aceitar os limites institucionais. Sendo assim, que os demais Poderes não se deixem intimidar pelos arreganhos autoritários de quem jamais teve nem bons modos nem apreço pela democracia.

Muy macho!


Se você não participar (da CPI), a canalhada do Randolfe Rodrigues vai participar. E vai começar a encher o saco. Daí vou ter que sair na porrada com um bosta desses
Jair Bolsonaro

Não há governabilidade a ser atrapalhada porque não há governo

Tão conhecido como o hábito de usar uma CPI para achacar o inquilino do Palácio do Planato e ampliar o seu escopo de tal forma a que ela não chegue a lugar nenhum, é dizer em público que uma comissão parlamentar de inquérito pode “atrapalhar a governabilidade”. Em geral, trata-se somente de argumento de quem faz coro ao governo que se encontra acuado, para aumentar ainda mais o preço do seu próprio apoio.



No caso da CPI da Covid, a governabilidade está sendo colocada sobre uma mesa onde, acredita-se, resta dinheiro a ser ganho. O único dinheiro, na verdade, já está indevidamente comprometido na farsa do Orçamento que, como bem definiu o senador Randolfe Rodrigues, deixou de ser pedalada para se tornar prova de ciclismo. Não há dinheiro, portanto.

Quanto à governabilidade em si, é palavra sacada sempre que não há governo. Como ação estruturada e coordenada, não há mais governo Bolsonaro. A sociopatia do presidente contaminou de tal forma o enfrentamento da pandemia que não há mais como deter de modo eficiente a propagação do vírus e empreender um programa de vacinação que evite dezenas de milhares de mortes a mais que poderiam ser poupadas, tivéssemos alguém com faculdades mentais inteiramente preservadas na presidência da República. Em relação à economia, o que se tem é um outrora superministro que não consegue fazer frente aos apetites da base de apoio fisiológico que sustenta Jair Bolsonaro. Na área ambiental, que deveria ser o nosso cartão de visitas internacional, inclusive a fim de garantir simpatias para agilizar a obtenção de vacinas num mercado onde a produção ainda está longe de dar conta das necessidades urgentes, temos um doido passando boiadas e defendendo madeireiras ilegais. No que se refere à educação, não é simplesmente prioridade, afora quando serve para fazer proselitismo ideológico. Milhões de crianças e jovens não têm condição de assistir a aulas remotas, por falta de equipamento e conexão, mas o governo é incapaz de comandar um esforço nacional para tentar equacionar minimamente esse problema gravíssimo, junto a governadores e prefeitos. As ilhas de excelência existentes na administração federal estão cada vez menores, consumidas pela erosão do descalabro geral.

A CPI da Covid não afetará, portanto, governabilidade nenhuma. Deveria ser encarada como a oportunidade para tirar logo do cargo um presidente da República de mente doentia e inepto. Mesmo os que acham que ainda têm a ganhar com Bolsonaro só têm a perder. Desse grupo, além dos fisiológicos, fazem parte Lula e o PT, que preferem ter o atual inquilino do Planalto como adversário em 2022. Em algum momento, contudo, o rombo fiscal e o custo em vidas serão cobrados de todos eles, superando qualquer benefício em vil metal ou votos.

Made in Brazil

 


Governo de desunião nacional

Unir forças para domar crises é um apelo reincidente de governantes. Em tese, crê-se que a soma de esforços e sacrifícios de todos resultará em ganhos para a coletividade. Por aqui, há tempos esse pressuposto é balela. União nacional tem sido capa de proteção para políticos em desespero, não rara utilizada para detonar inimigos, tratorar incômodos. No governo do presidente Jair Bolsonaro, no qual só a discórdia prospera, pregar união é mais do que um acinte. É sem-vergonhice, desfaçatez, safadeza.

O papo-furado de unir forças dominou as recentes entrevistas do ministro das Comunicações, Fábio Faria, na tentativa de dar um restart no chefe quanto à péssima gestão da pandemia. Na saída do jantar com empresários simpáticos ao presidente, Faria insistiu na tecla, como se lá dentro Bolsonaro não tivesse acabado de desancar o governador paulista com palavrões, xingando de vagabundo quem, via Butantan, fornece 80% das vacinas que o Ministério da Saúde distribui.

As vacinas cuja eficácia Bolsonaro desdenhou, deixou de comprar em meados do ano passado, e disse que não compraria se fosse a chinesa do Doria, foram eleitas como o ponto de união. A ideia era - e ainda é - grudar uma máscara em Bolsonaro e colocá-lo como garoto propaganda da imunização. A partir daí, conclamar a união do país em torno do presidente para erradicar a peste e a crise.

Mas como na cartilha bolsonarista unir não é agregar e sim dominar, a estratégia, assim como o presidente, é desmascarada diariamente.

Clama-se pela união, mas o que se quer é desqualificar críticos, promover o esquecimento dos absurdos administrativos, como o investimento bilionário em cloroquina e o abandono até o vencimento de kits de testes, do descaso com mortos e doentes, das falas negacionistas. Quer-se união para passar a borracha na “gripezinha”, no "país de maricas”, na incompetência e na desumanidade do presidente, incapaz de se comover com os mais de 350 mil mortos, com profissionais de saúde exaustos, hospitais em agonia, falta de medicamentos.

A tal da união de forças também foi o argumento do presidente do senado Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para retardar a abertura da CPI da pandemia. Um raciocínio peculiar, para não dizer para lá de torto, que pressupõe abrir mão de fiscalizar a atuação do governo federal na pandemia em nome de combater a pandemia.

Parece ironia barata, troça de mau gosto com os brasileiros. E é.

Dois meses depois de ser requerida, a CPI deve ser instalada contra a vontade de Pacheco, cumprindo determinação liminar do ministro Luís Roberto Barroso a ser apreciada pelo plenário do STF na quarta-feira, 14.

A reação de Bolsonaro à decisão de Barroso escancarou o temor que tem de ser investigado. Com o seu habitual destempero, mais uma vez expôs a verdadeira campanha à qual se dedica com afinco: a de destruir as instituições, apostar na desunião nacional, provocar o caos.

Esbravejou aos quatro cantos. Sugeriu a abertura de impeachment contra ministros da Corte, acusou o magistrado de “falta de coragem moral” por não ter a mesma atitude quanto à CPI conhecida como Lava-Toga, como se o STF pudesse agir sem ser provocado para tal.

Sua ira ganha em desproporção diante do apoio dado a um recurso semelhante para que fosse instalada a CPI do “apagão aéreo”contra o PT de Lula, em 2007, cuja ação no STF teve assinatura do então deputado Onyx Lorenzoni, amigo fiel e hoje ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência. À época, o também deputado Bolsonaro elogiou a vitória obtida no Supremo. Não considerou como interferência de Poder, muito menos “politicalha”, termo usado pelo presidente para agredir Barroso.

O governo Bolsonaro não é o primeiro a se utilizar do apelo à união nacional para tentar se safar. José Sarney o fez depois dos reveses dos seus fiscais contra uma inflação incontrolável. Collor de Mello e Dilma Rousseff tentaram de forma patética convocar o país para se unir a eles e acabaram apeados do Planalto. E o pacto nacional de Michel Temer naufragou nos diálogos gravados por Joesley Batista na garagem da residência oficial da vice-presidência.

Mas é o único presidente que se diverte em plantar e alimentar a cizânia contradizendo seus interlocutores oficiais. Enquanto o seu quarto ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, tenta angariar apoio na comunidade médica, defende o uso de máscaras e até o distanciamento social, odiado pelo chefe, Bolsonaro aumenta o tom contra governadores e prefeitos que mantêm restrições de circulação. Passeia sem máscara e prefere apoiar pastores evangélicos a preservar vidas.

Age como se fosse possível agradar à tropa cega de fiéis, que venera seu negacionismo, e, ao mesmo tempo, livrar-se da alcunha de genocida.

Muitos países com líderes de verdade conseguiram arregimentar esforços para debelar crises gravíssimas, superar reveses de guerras, fomentar condições para que seus cidadãos invertessem espirais de fome, desemprego e desesperança. No Brasil, isso só será possível sem Bolsonaro. Passa da hora de reunir forças contra ele.

Mary Zaidan

Nosso Nero de cada dia

A única certeza é que tocar mais fogo no circo é do interesse de Jair Bolsonaro. Já não basta apenas confundir o indistinto público com uma CPI da Covid que de tão abrangente não levaria a lugar nenhum, É preciso também queimar a lona que ainda nos protege das intempéries: a da democracia. 

Duelo com o Corona

Ficou entubado alguns dias. Estado crítico extremo. Certamente mais um abatido pelo coronavírus. Naquele dia, o número de mortos atingira mais de cem. Um pico que aterrorizava. Faziam os preparativos para levá-lo para a cova. Faltava ser enrolado com o lençol.


Via tudo. Os olhos bem abertos. Gritava, mas ninguém ouvia sua voz. O último grito abalou os nervos, tremeu a cama, assustou o médico e a enfermeira. Mexeu com a pestana. Estava vivo. O médico mandou que ele voltasse para a Unidade de Terapia Intensiva.

Mais alguns dias, a melhora era sentida, visivelmente. Até que recebeu alta. Saiu numa cadeira de rodas, uma coroa de flores na cabeça. Palmas nos corredores pelo pessoal de frente no combate ao coronavírus. Estava ávido para receber um beijo da mulher, abraço dos filhos e amigos lá fora. Era o primeiro vencedor no hospital da doença tão terrível.

Se um venceu, outros terão o mesmo final, pensou o médico plantonista. Até que descobrissem a vacina para o desfecho da guerra vencida. Do lado de fora, a mulher não conteve a emoção de vê-lo recuperado. Ali mesmo desmaiou, teve uma dor no coração e morreu.

Era a revanche da indesejada, que nunca se dá por vencida. Infelizmente.

Apesar dos pesares, lá naquele lugar onde a esperança não morre ainda se crê nessa manhã em que o sol voltará a brilhar.
Cyro de Mattos

Os ensinamentos dos indígenas no enfrentamento da pandemia

Estive no curso superior do imponente rio Solimões, onde o Brasil faz fronteira com a Colômbia e o Peru. Visitei várias comunidades indígenas. Queria ver como as aldeias estão se saindo durante a pandemia de coronavírus.

Uma coisa me chamou atenção: aldeias nas quais a cultura indígena está intacta e viva enfrentaram a pandemia melhor que outras. As pessoas se uniram para manter o vírus longe, não teve brigas nem sabotagem. Um bom exemplo disso é a aldeia de Nova Jutaí, que fica no rio Igarapé de Belém, na Terra Indígena Évare I. De Belém do Solimões (AM), a cidade maior mais próxima, leva duas horas de barco para chegar até ali.

Nova Jutaí tem quase 100 moradores. Alguns deles estavam doentes, incluindo o residente mais velho, um homem de 71 anos. Mas ninguém morreu, e o vírus não se espalhou na aldeia. Por quê? Porque todos aqui ouviram os conselhos dos caciques, pajés e agentes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai): usem máscara, mantenham distância, nada de reuniões, e só peguem o barco para fazer algo na cidade em casos muito urgentes.

O povo de Nova Jutaí é tikuna e fala apenas sua língua indígena. Eles vivem da pesca, da caça e do cultivo de banana, mandioca, açaí e cupuaçu. Também fabricam vassouras e cestos de materiais naturais. Várias famílias recebem Bolsa Família.


Existe uma grande coesão social na aldeia. Isso também tem a ver com o fato de haver uma pequena igreja católica no local, mas nenhum templo evangélico. Os monges capuchinhos, que de vez em quando vêm de Belém do Solimões para celebrar os serviços religiosos, incentivam o povo tikuna a preservar sua cultura. Dizem que sua língua, suas vestes tradicionais, sua comida, seus remédios, suas festas, sua música e suas danças são boas e devem ser motivo de orgulho. As missas são celebradas no idioma tikuna, e a igreja é decorada com folhas de palmeira e flores da selva.

Em muitas aldeias onde há evangélicos a cultura indígena é demonizada. Os evangélicos semeiam a discórdia e colocam as comunidades umas contra as outras. Eles as enfraquecem. De repente, muitos índios evangélicos rejeitam as antigas tradições de seus povos.

Para Nova Jutaí, a pandemia de covid-19 já passou. Todas as pessoas com mais de 18 anos foram vacinadas. Os nativos brasileiros tiveram prioridade na campanha de vacinação, e a Sesai fez um trabalho muito bom e ágil na região do Alto Solimões.

Houve problemas, porém, em aldeias com forte influencia evangélica. Muitos indígenas evangélicos se negaram a ser vacinados porque ouviram dos pastores (e do presidente do Brasil) que a vacinação era perigosa. Foi isso que vi na aldeia Sapotal, no rio Solimões. Lá vivem os índios kokama, cuja cultura já está enfraquecida.

A coesão social em Sapotal é frágil, ninguém mais fala kokama. Pelo menos três homens morreram de covid-19, após terem ido à cidade de Tabatinga (AM), onde foram infectados. Entre eles estava o vice-cacique e fundador da Igreja Evangélica de Sapotal. Eu conheci seu filho. Apesar do destino do pai, ele não quer ser vacinado pela Sesai.

Já em Nova Jutaí, as coisas voltaram ao normal. As pessoas trabalham e também retornam ao convívio social.

Imagino o que teria acontecido se as condições em Nova Jutaí fossem iguais às do resto do Brasil: se a aldeia tivesse um cacique que dissesse às pessoas que não precisam levar o coronavírus a sério, que não precisam usar máscaras, que podem continuar a se reunir e que não precisam ser vacinadas.

Teria havido mortes em Nova Jutaí, e a aldeia ainda estaria lutando contra o vírus. A vida econômica continuaria paralisada, e as pessoas, inseguras. Felizmente, o cacique de Nova Jutaí é um homem mais inteligente que o presidente da República.

Outra coisa me chamou atenção durante a viagem: em todas as aldeias que visitei, as pessoas falavam de um chá feito de jambu, limão, alho e mel que supostamente alivia a tosse e as dificuldades respiratórias de pacientes com covid-19.

Essa história eu ouvi não apenas uma, mas uma dezena de vezes. Ela me foi contada por vários pajés, assim como por pessoas que ficaram gravemente adoecidas. E foi também confirmada pelo coordenador do Polo Base da Sesai em Belém do Solimões, que afirma que o chá de jambu já ajudou muitos doentes. Parece que agora o instituto de pesquisas da Fiocruz quer analisar a erva mais de perto.

Não seria uma bela ironia do destino se descobríssemos que o jambu ajuda no combate à covid-19? Não a hidroxicloroquina recomendada pelo presidente Jair Bolsonaro, mas uma erva amazônica. Bolsonaro disse certa vez: "Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós". Acho que seria melhor para o Brasil se Bolsonaro virasse cada vez mais um ser humano como os índios.
Philipp Lichterbeck

O que se passa em Moçambique?

O recente ataque de terroristas islâmicos à pequena cidade de Palma, na província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, durante o qual foram assassinados dezenas de civis, entre os quais alguns estrangeiros, chamou a atenção do mundo.

Vivo parte do ano na Ilha de Moçambique, a 400 quilômetros de Cabo Delgado. Muitas pessoas me perguntam o que está, afinal, acontecendo ali. Pergunta difícil. O mais assustador é tudo o que não se sabe sobre os atacantes, as suas motivações, ligações e o mfinanciamento. Cinco anos após os primeiros massacres, são mais as suposições do que as certezas.

Tudo leva a crer que o principal objetivo dos ataques seja impedir a construção de um gigantesco projeto de exploração de gás natural, o maior investimento direto na África, que tem como principal patrocinador a companhia francesa Total. Os terroristas, que afirmam combater em nome do Estado Islâmico, estão bem armados e equipados.


Moçambique é um país extenso, com a capital, Maputo, numa das pontas, junto à fronteira com a África do Sul. Desde a independência do país, em 1975, que as províncias do norte, maioritariamente muçulmanas, se queixam de abandono — e com razão.

Cabo Delgado, com o tamanho de Portugal, tem pouco mais de dois milhões de habitantes. A escassa densidade populacional e a quase completa ausência do Estado permitiram a instalação no território de todo tipo de interesses obscuros, desde rotas de tráfico de heroína — vinda do Afeganistão e com destino à África do Sul e Europa — até o garimpo ilegal de pedras preciosas.

A construção do empreendimento da Total ameaça estes interesses, na medida em que cria novos polos de desenvolvimento, forçando o Estado moçambicano a cumprir o papel que lhe compete, construindo estradas, escolas, hospitais, quartéis e delegacias.

Por outro lado, Moçambique passará a concorrer com outros grande produtores de gás natural, entre os quais o Qatar e a Arábia Saudita, por sinal dois dos países que mais têm se destacado na promoção e no apoio ao fundamentalismo islâmico.

O exército moçambicano conseguiu uma primeira vitória em Palma, e está ganhando terreno em Mocímboa da Praia. Não parece possível, contudo, que o governo de Filipe Nyuzi seja capaz de derrotar sozinho os grupos terroristas responsáveis pelos recentes ataques. Pelo contrário, o mais provável é que esses ataques se multipliquem, alastrando-se a todas as províncias do norte. O que está em causa, a médio prazo, é a própria integridade do país.

Esta crise poderia ser uma oportunidade para as autoridades moçambicanas unirem a nação, face a um inimigo tão facilmente odiável quanto é o Estado Islâmico. Vários países prometeram ajuda militar. Ainda mais importante, contudo, seria apoiar o desenvolvimento sustentável da região, e a melhoria das condições de vida das populações. A Arábia Saudita vem oferecendo cursos de “teologia islâmica” a jovens moçambicanos desesperados. Se os países ocidentais lhes derem a oportunidade de estudar medicina ou engenharia, Moçambique terá amanhã médicos e engenheiros. Caso contrário, pode ter apenas mais fundamentalistas islâmicos.