terça-feira, 21 de junho de 2022

Indignação

Em 2010, um diplomata francês de 92 anos, Stéphane Hessel, então o único redator ainda vivo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, publicou um pequeno livro com o título Indignai-vos. Com mais de dois milhões de exemplares logo vendidos em seu país e edições em muitos outros, esse texto inspirou movimentos como o dos “indignados” na Espanha, em 2011, que encheu as praças desse país gritando aos partidos, deputados e senadores, “vocês não nos representam”, o que levou a uma nova conformação do seu espectro político.

Mas há bastante tempo ouvimos e repetimos, no Brasil, que não basta nos indignarmos diante do que consideramos inaceitável – que é o que hoje, aqui, não nos falta. E que é preciso passar da indignação à ação, se quisermos que as coisas mudem de fato.

No entanto, passar à ação exige muito mais de nós. Exige que deixemos de lado uns tantos prazeres da vida. Exige se dispor a mudar a rotina de vida, abdicar da tranquilidade – os que conseguiram ter esse privilégio – e assumir uma prática de militância por uma causa. Exige que nos unamos a outros “indignados”, para superar as limitações das ações isoladas e aumentar nossa força. Exige aceitar as exigências das ações coletivas e dispor-se a enfrentar as consequências da ação – que em certos casos podem muito duras.

Ora, atender a tais exigências não é assim tão fácil. E acabamos nos deixando dominar por outro comportamento, até para que consigamos sobreviver emocionalmente, o de “naturalizar” o inaceitável. “Acostumamo-nos” com ele, ou seja, com “a vida como ela é”, e tocamos o barco para a frente. E passamos a conviver com o que provocou nossa indignação, até que ela se esmaeça e desapareça, enquanto não surge outra razão para nos indignarmos.

E foi assim que parece termos caído numa armadilha, no Brasil. Mesmo diante de situações em que o insuportável se tornou extremamente pesado, não estamos sendo capazes de nos sentarmos juntos – pelo menos quem não está obrigado a lutar pela pura sobrevivência física – para definir alguns objetivos, medidas e ações em que concentrar nossa força cívica conjunta, ainda que prosseguindo nossas lutas especificas.


Nem agora, diante do desafio imediato de impedir que se crie o tumulto que está sendo preparado para que as eleições nem se realizem, combinado com ataques de todos os tipos ao Tribunal Superior Eleitoral, em sua missão de garantir eleições livres e transparentes. Com isso, podem se frustrar as esperanças de tantos que as viram como saída para nos livrarmos de um presidente que o país não merecia, com todos que constituíram, à sua volta, um verdadeiro bando de oportunistas e malfeitores.

Não estaríamos precisando, nós também, de um apelo como o de Stephan Hessel, conclamando-nos a nos indignarmos – talvez com ainda mais força – mas principalmente a não deixarmos que a naturalização do intolerável esmaeça nossa indignação? Os velhos combatentes da longa luta contra a ditadura de 1964, que ainda estejam entre nós, não poderiam se unir num grito uníssono que fizesse com que essa mensagem penetrasse fundo em nossos corações?

Uma das marcas da campanha eleitoral do atual presidente era o gesto que fazia com as mãos, imitando uma arma. Ao longo dos seus quase quatro anos de mandato transformou esse símbolo em armas e munições de verdade, importadas e contrabandeadas em grande quantidade e distribuídas aos que enganou com mentiras difundidas pelas redes sociais que penetraram nos lares dos desavisados.

Isto torna esse apelo ainda mais urgente, diante de algo pior que pode acontecer, e que está certamente sendo gestado nas mentes doentias do presidente da República e de seus asseclas, se não conseguirem impedir as eleições: diante de resultados que lhes serão desfavoráveis, não terão escrúpulos em provocar o caos. E empurrarão o país para uma tragédia que ele nunca viveu: a do enfrentamento violento entre irmãos. E como somente um dos lados estará armado, esse enfrentamento poderá se transformar em massacre dos que se opõem aos que estão hoje no poder e de todos que eles detestam – como os que já vêm ocorrendo em alguns lugares do Brasil.

Mais ainda, se esse pesadelo vier a ocorrer, teremos que nos preparar para o que coroaria esses planos malignos: uma intervenção militar para reestabelecer a paz social, e a realização do “projeto de nação” dos militares que pretendem ser seus tutores, que tem até a data final de 2035 bem definida, tornado público em ato prestigiado pelo general que hoje ocupa a vice-presidência da República. Para a satisfação da “Casa Grande” e dos que, de dentro e de fora do país, dominam nossa economia e atualmente nossa vida política, pensando somente em lucros. E nos deixando, para depois que tudo isso se realizar, a tarefa hercúlea de reconstrução do que tínhamos conquistado vagarosamente no interregno democrático que estamos ainda vivendo, desde que nos livramos da ditadura militar imposta em 1964.

Temos ainda tempo de escapar disso tudo, ou já é tarde demais? São as questões angustiantes que nos resta colocar. Para responde-las, talvez valha a pena recordar o que fizemos e deixamos de fazer durante o mandato de um Presidente que era o mais despreparado e o menos confiável dos candidatos em 2018, e que tinha sido recusado por 61% dos eleitores, considerados as abstenções, os votos brancos e nulos e os dados ao seu opositor. Um presidente que, quase imediatamente depois de empossado definiu claramente, em evento na Embaixada do Brasil em Washington, o principal objetivo de sua gestão: “Destruir”.

O presidente anterior – que assumira o poder por meio de um autêntico golpe parlamentar-mediático – já tinha iniciado o desmonte de direitos. Ao lhe dar seguimento e o aprofundar, ele logo começou a provocar nossa indignação, e os crimes de responsabilidade que cometia justificaram pedidos de impeachment. Mas deixamos esses pedidos dormirem na mesa da presidência da Câmara. A imagem da crescente pilha de papeis deixou pouco a pouco de nos comover, até os pedidos chegarem a mais de centena e meia, para serem guardados nos arquivos da Câmara.

Como se os autores de cada pedido tivessem considerado que tinham feito o que podiam fazer e que, uma vez protocolados os pedidos, poderiam voltar para suas lutas e afazeres, nem eles nem nós, que os apoiávamos, pensamos que talvez fosse necessário pressionar os deputados, embora sua maioria tivesse sido eleita na mesma onda eleitoral do presidente da República (podemos dizer, como os espanhóis, que não nos representam?). Essa maioria elegeu então, para impedir o impeachment, um dos mais fiéis aliados do presidente, com a tarefa de também apressar o desmonte legislativo do país, como o faz até hoje. E este, para garantir os votos de seus colegas venais, abre-lhes as portas do erário, com operações espúrias como a das “emendas parlamentares”, e até inventando um “orçamento secreto”.

Mas nos acostumamos com tudo isso (com “a política como ela é”) e, aceita a impossibilidade do impeachment, muitas organizações da sociedade civil lançaram juntas uma campanha com o grito “Fora” – que chegou num banner até o pico do Everest – visando o presidente da República. Mas ao se apoiaram em grandes manifestações de rua, seus resultados se viram limitados pela imobilidade decorrente da “naturalização” do que se passava, pelo medo do contagio da Covid-19 nas aglomerações, e pelas dificuldades criadas pelo desemprego.

Diante disso, surgiu outro caminho para afastar o presidente: processá-lo por crimes comuns. Importantes organizações da sociedade civil elencaram então esses crimes em representações ao Procurador Geral da República, encarregado constitucionalmente de defender os interesses da sociedade. E o Senado encaminhou também a ele um longo relatório indicando os crimes do Presidente, após seis meses de trabalho de uma CPI que desvelou, para todo o país, tanto a corrupção no enfrentamento da Covid-19 como a associação mórbida do presidente com a pandemia, com ações e omissões que provocaram muito mais mortes do que a doença sozinha causaria.

Mas o Procurador Geral, que deveria denunciar ao Supremo Tribunal Federal os crimes comuns do chefe da nação, vendo-se em minoria na instituição que chefia usou sua independência funcional para não dar continuidade a nenhuma dessas representações. Caracterizou-se assim, claramente, que ele tinha sido ali colocado para ser uma segunda barreira de proteção do presidente da República, complementar àquela assegurada pelo presidente da Câmara.

Manchou com isso a história e a imagem de todo o Ministério Público, mas este também não conseguiu reagir, nem face ao risco de tornar-se cumplice de seu chefe no crime de prevaricação que cometia. E uma infeliz decisão liminar de um ministro da Corte Suprema em um dos processos nela tramitando – decisão essa ainda a ser ainda convalidada pelo plenário da Corte – garantiu a independência funcional do Procurador Geral, como se ela não fosse limitada pelo menos pela ética. Por sua vez o próprio Senado também não reagiu à altura, diante do total desrespeito a ele com o engavetamento de seu relatório. E nada fez, apesar de autorizado pela Constituição a processar e destituir o Procurador Geral.

Surgiu então na sociedade civil mais uma proposta: pressionar o Senado para que cumpra sua obrigação de afastar esse Procurador Geral. Mas a esta altura também o silêncio do Senado está correndo o risco de se “naturalizar” (podemos dizer que seus membros também não nos representam?), embora a estatura moral do Procurador Geral – tão baixa como a do presidente, mas ambas já “naturalizadas” – esteja se tornando conhecida até fora do país.

Assim, entre os poderes de República o único que parece ainda se negar a se autodestruir – se conseguir não convalidar a liminar que protegeu quem protege o presidente – é o Supremo Tribunal Federal. Mas sua lentidão para agir é aceita por todos, como o é a de todo o sistema Judiciário. O que se agrava com a entrada na Corte de novos ministros visceralmente ligados ao presidente, que já usam regras internas para imobilizá-la ainda mais, quando se trate de questionar o chefe da nação. E enquanto a sociedade em geral não ousa pressioná-la, dentro dela nada emerge que enfrente eficazmente o verdadeiro descalabro que o Brasil conhece, nem nas discussões nas salas de seu belo palácio envidraçado, construído quando a barbárie estava mais distante. Só podemos desejar que esse palácio não desmorone, se o presidente da República, que agride com frequência seus membros até com palavras improprias ao decoro de seu cargo, decidir repetir no próximo 7 de setembro as ameaças ao Supremo Tribunal Federal que já fez nessa data no ano passado.

Enquanto isso, de dentro da sociedade foram surgindo muitas outras ações de resistência – tantas eram as “boiadas” que o governo tentava passar, surpreendendo-nos continuamente. O problema é que cada ação se encerrava em seus objetivos particulares, sem se articularem. E muitas pediam a participação das pessoas somente através de um “sim” de apoio, no celular. Discutíamos tudo isso muito pouco entre nós, isolados que estávamos por causa da pandemia, apesar das novas possibilidades criadas para a intercomunicação à distância. Por seu lado os meios de comunicação, inclusive os alternativos, nos distraiam com análises de jornalistas e especialistas sobre o que se passava e com falas dos líderes políticos. E depois que se esgotou a necessidade de informação e orientação sobre a pandemia, passaram a competir entre si na apresentação de informações e de entrevistas de personalidades, ocupando o tempo que poderíamos usar pelo menos para a reflexão.

Mais recentemente, o espetáculo a nos entreter passou a ser o das espertezas e alianças dos políticos para vencer as próximas eleições. Mas pouco se fala, nas declarações de candidatos e nos seus programas, do que farão para que se firme o pacto civilizatório mais urgente no Brasil de hoje, para que não conheçamos o caos da anomia: que os criminosos, dos mandantes dos crimes aos seus executores, não permaneçam impunes.

Em meio a isso tudo nos indignamos e nos comovemos – no Brasil todo e fora dele – com o brutal assassinato de mais um agente da FUNAI e de um jornalista inglês, pelos predadores da Amazônia que o presidente da República protege e estimula. Bruno Pereira, o agente da Funai, conhecedor profundo da região e persistente em sua missão de defender os indígenas, era suficientemente corajoso para incomodar os bandos que o mataram e, barbaramente, o esquartejaram, a ele e ao jornalista. Querido pelos seus colegas de trabalho e pelos indígenas, cujas línguas falava, só era “malvisto”, como ousou dizer o presidente, pelo próprio presidente e seus apoiadores em seu objetivo de destruição. Dom Philips, o jornalista, experimentado e sereno em seu amor pela Amazônia, fazia com determinação o que todos os seus colegas bem-intencionados gostariam de poder fazer: informar seus leitores do que realmente se passa por detrás dos silêncios criminosos que protegem os que tiram proveito da destruição da natureza e do extermínio dos indígenas.

Que a crueldade do assassinato desses novos mártires da Amazônia aumente a intensidade de nossa indignação – e a força de nossa ação – na dimensão exigida pela gravidade do que vivemos hoje no Brasil.
Chico Whitakerconsultor da Comissão Brasileira Justiça e Paz.

Brasil furado a bala

 


Bolsonaro está sendo bem-sucedido na tarefa a que se propôs. Bravo!

É muito desagradável quando os fatos contrariam o que antes fora imaginado. A Polícia Federal, há 72 horas, anunciou que elucidara o assassinato do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips. Os dois teriam sido executados pelos irmãos Amarildo da Costa de Oliveira e Oseney da Costa de Oliveira, réus confessos. O crime não teve mandante.

Então, um terceiro homem entregou-se e disse que também participou do crime. E, agora, o Comitê de Crise formado para investigar as mortes identificou outras cinco pessoas que teriam participado da ocultação dos corpos. A confirmar as suspeitas do comitê, somadas às confissões já obtidas, pelos menos 8 pessoas têm a ver diretamente com o que aconteceu a Bruno e a Dom.

Naturalmente, isso reforça a tese de que o crime teve mandantes, um ou mais de um. Não é razoável acreditar que oito pessoas, de repente, sem mais nem menos, ou só porque uma delas tinha motivo, resolveram matar um agente da Fundação Nacional do Índio e um jornalista estrangeiro conhecido por aquelas bandas do mundo. Um mutirão espontâneo, digamos. Não dá para acreditar.


A Amazônia, hoje, é terra de ninguém. Abandonada pelo governo Bolsonaro que estimula sua destruição com a conivência dos militares que sempre disseram defendê-la, a Amazônia profunda é dos desmatadores, contrabandistas, garimpeiros e pescadores ilegais que cobiçam e exploram em proveito próprio suas riquezas. Para eles, Bruno e Philips eram um incômodo.

Bolsonaro está sendo bem-sucedido na tarefa de levar o país a andar para trás. Voltou ao passado na economia, no bem-estar da população, na educação e no meio ambiente, como mostra uma reportagem exemplar da jornalista Cassia Almeida em O Globo, neste domingo. É de dar dor. A fome atinge 33,1 milhões de brasileiros, 14 milhões a mais em pouco mais de um ano.

A produção de bens de consumo duráveis (carros e eletrodomésticos) está igual à de 18 anos atrás. A economista Silvia Matos, coordenadora técnica do Boletim Macro do Ibre/FGV, calculou que somente em 2029 vamos voltar ao maior valor real do PIB per capita, de R$ 44 mil, atingido em 2013, considerando a média de crescimento dos últimos anos do país, em torno de 1,5%.

Na educação, as crianças perderam mais. A evasão escolar na faixa de 5 a 9 anos está igual à de 2012, de acordo com estudo do economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social. O país saiu de uma área desmatada de 4.571 quilômetros quadrados em 2012 para 13.235 quilômetros quadrados em 2021. Somente em 2003, o Brasil conviveu com um índice de inflação tão alto como agora.

A passo de caranguejo


O Brasil caminha vigorosamente em direção ao passado
Millôr Fernandes

Tudo é permitido

O poder invisível se expande no Brasil. Trata-se da força descomunal de máfias e grupos que se entranham nas malhas do poder para navegar nas águas das administrações federal, estadual e municipal. Máfias que acabam de perpetrar o mais escabroso assassinato desses tempos turbulentos, a eliminação do indigenista Bruno e do jornalista inglês Dom Phillips.

A Sólon, o legislador grego, foi perguntado se as leis que outorgara aos atenienses eram as melhores. Respondeu: “Dei-lhes as melhores que eles podiam suportar”. E o caso do Brasil? Os nossos legisladores dirão que as leis até são boas, mas o nosso território é uma terra sem leis.

Generaliza-se a sensação de que o País, cuja população armada se expande nas ondas do apoio e benevolência do mandatário-mor, navega nas ondas da impunidade. Madeireiros, mercadores de drogas, seringueiros, devassadores da floresta amazônica, ladrões do asfalto, milícias que dominam morros e favelas, enfim, sanguessugas e trânsfugas de todas as espécies, se espalham.

Alguns, flagrados com a mão na massa, continuam leves e soltos, a confirmar a tese de que o Brasil é, por excelência, o território da desobediência explícita. Nada mais surpreende. O esculacho chegou a tal ponto que uma facção criminosa passou a participar do sistema de transporte privado na capital paulista. E o escritório desse núcleo está dentro do cárcere. Certa vez, ouviu-se uma assertiva do comandante desse império do crime: ora, parlamentares também roubam.


Infere-se que o poder invisível, confortável com a barbárie que consome o País, não tem mais escrúpulos nem receio de mostrar a cara. Coloca-se no mesmo nível do poder do Estado. Para lapidar a pedra bruta do estado de inação em que vive o país, basta as máfias da violência mobilizarem seus exércitos nas ruas e forças de ocupação nos cárceres. Não é de assustar se parcela significativa da população começar a aplaudir a bandidagem da quadra de baixo contra a turma que faz zoeira no andar de cima. Afinal de contas, a passarela da criminalidade e o desfile de impunidade nas antecâmaras do Poder assumem dimensões grandiosas e formas escandalosas.

Corruptos e facínoras, se condenados, ganham o mesmo status perante a lei. A anomia toma conta do País. Vem de longe. Desde os idos da colônia e do Império, fomos afeitos ao regime de permissividade, apesar da rigidez dos códigos. Tomé de Souza, primeiro governador-geral, chegou botando banca. Os crimes proliferavam. Avocou a si a imposição da lei, tirando o poder das capitanias. Um índio que assassinara um colono foi amarrado na boca de um canhão.

Ordenou o tiro para tupinambás e colonos entrarem nos eixos. Mas em 1553 uma borracha foi passada na criminalidade, com exceção dos crimes de heresia, sodomia, traição e moeda falsa. Depois chegaram as Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), que vigoraram até 1830. Severas, estabeleceram a pena de morte para a maioria das infrações, espantando até Frederico, o Grande, da Prússia que, ao ler Livro das Ordenações, chegou a indagar: “Há ainda gente viva em Portugal?”

O fato é que, hoje, entre tensões e panos quentes, o Brasil semeia a cultura do faz-de-conta na aplicação das leis. Uma historinha ilustra nossa cultura: há quatro tipos de sociedade no mundo. A primeira é a inglesa, onde tudo é permitido, salvo o que for proibido; a segunda é a alemã, onde tudo é proibido, salvo que for permitido; a terceira é a sociedade que vive sob as ditaduras, onde tudo é proibido, mesmo o que for permitido; e a quarta é a brasileira, onde tudo é permitido, mesmo o que for proibido. A propósito, os candidatos não estão quebrando a legislação eleitoral, ao promoverem e participarem nesse momento de comícios?

O descalabro se escancara: menos de 5% dos indiciados em inquéritos criminais chegam a cumprir sentença condenatória. De milhares de roubos que ocorrem, por exemplo, na Grande São Paulo, poucos assaltantes são presos na ocasião do delito. Sob esse tecido costurado com os fios da ilegalidade nasce o poder invisível, cancro das democracias contemporâneas.

A esperança se esvai, a fé se enterra, o sonho se apaga no maremoto das amarguras cotidianas.

Os órgãos de investigação e controle até avançam. A Polícia Federal, urge reconhecer, ganha mais qualidade, bastando ver o esforço para a descoberta dos assassinos do Vale do Jaguari. Mas há um longo caminho a percorrer para que o Brasil chegue a um patamar civilizatório de respeito.

É preciso fazer alguma coisa

Escrevo esta canção porque é preciso.
Se não a escrevo, falho com um pacto
que tenho abertamente com a vida.
E é preciso fazer alguma coisa
para ajudar o homem.

Mas agora.

Cada vez mais sozinho e mais feroz,
a ternura extraviada de si mesma,
o homem está perdido em seu caminho.

É preciso fazer alguma coisa
para ajudá-lo. Ainda é tempo.

É tempo.

Apesar do próprio homem, ainda é tempo.
Apesar dessa crosta que cultivas
com amianto e medo, ainda é tempo.

Apesar da reserva delicada
das toneladas cegas mas perfeitas
de TNT pousada sobre o centro
de cada coração — ainda é tempo.
No Brasil, lá na Angola, na Alemanha,
na ladeira mais triste da Bolívia,
nesta poeira que embaça a tua sombra,
na janela fechada, no mar alto,
no Próximo Oriente e no Distante,
na nova madrugada lusitana
e na avenida mais iluminada
de New York. No Cuzco desolado
e nas centrais atômicas atônitas,
em teu quarto e nas naves espaciais
— é preciso ajudá-lo.

Nas esquinas
onde se perde o amor publicamente,
nas cantigas guardadas no porão,
nas palavras escritas com acrílico,
quando fazes o amor para ti mesmo.

Na floresta amazônica, nas margens
do Sena e nos dois lados deste muro
que atravessa a esperança da cidade
onde encontrei o amor
— o homem está
ficando seco como um sapo seco
e a sua casa já se transformou
em apenas local de seu refúgio.
Lá na Alameda de Bernardo O′Higgins
e no sangue chileno que escorria
dos corpos dos obreiros fuzilados,
levados para a fossa em caminhões
pela ferocidade que aos domingos
sabe se ajoelhar e cantar salmos.

Lá na terra marcada como um boi
pela brasa voraz do latifúndio.
Dentro do riso torto que disfarça
a amargura da tua indiferença,
na mágica eletrônica dourada,
no milagre que acende os altos-fornos,
no desamor das mãos, das tuas mãos,
no engano diário, pão de cada noite,
o homem agora está, o homem autômato,
servo soturno do seu próprio mundo,
como um menino cego, só e ferido,
dentro da multidão.

Ainda é tempo.
Sei por que canto: se raspas o fundo
do poço antigo da tua esperança,
acharás restos de água que apodrece.

É preciso fazer alguma coisa,
livrá-lo dessa situação voraz
da engrenagem organizada e fria
que nos devora a todos a ternura,
a alegria de dar e receber,
o gosto de ser gente e de viver.
É preciso ajudar.

Porém primeiro,
para poder fazer o necessário,
é preciso ajudar-me, agora mesmo,
a ser capaz de amor, de ser um homem.

Eu que também me sei ferido e só,
mas aconchego este animal sonoro
que reina poderoso em meu peito.

Thiago de Mello

Uma oportunidade que vamos perder

Períodos eleitorais sempre foram aqui e em toda a parte tempos de agitação e de acirramento de ânimos. Passadas as eleições e verificados os resultados, no entanto, a regra geral sempre tem sido a volta à normalidade e às rotinas da vida, mesmo aqui na tumultuada América Latina. Esta regra tem deixado de prevalecer em alguns de nossos vizinhos, numa antecipação do que pode perfeitamente acontecer também conosco. Um dos enigmas da história do nosso continente é a frequência como os ciclos de liberdade e tirania, crescimento e estagnação, harmonia e conflitos, ocorrem ao mesmo tempo em vários de nossos países. Sem percebermos, muitas coisas indicam que compartilhamos um mesmo destino, mesmo a contragosto.


Algumas eleições no continente permanecem inconclusas. É o caso do Peru, onde a antipolítica levou à Presidência um personagem exótico e despreparado, sem planos nem maioria para governar, cujo único projeto no momento é evitar seu impedimento e conservar-se no poder. No Chile um jovem ex-revolucionário de esquerda, com um discurso sensato, prevaleceu sobre a política tradicional. Seu governo, contudo, está pendente da confirmação, por meio de um plebiscito, de uma nova Constituição que, se entrar em vigor, tornará o país ingovernável para sempre, qualquer que seja o Presidente.

Neste momento a Colômbia, o mais estável dos países do continente até agora, viu a população rejeitar os partidos que tradicionalmente a governavam, para levar ao segundo turno um ex-guerrilheiro e um velho empresário, populista de direita, cuja única proposta para o país é drenar o pântano da política. Todos conhecemos o que resulta destas proclamações. Afinal tivemos Jânio Quadros e Fernando Collor. Quando as sociedades se desesperam elas votam apenas com raiva, com o fígado e não com o cérebro, mesmo sabendo que pagarão sozinhas pelos seus erros.

Como em quase todos os nossos vizinhos, as nossas instituições de política democrática há tempos deixaram de funcionar em proveito da maioria da população. Os partidos políticos não representam nada nem ninguém. São agências com interesses predominantemente privados, embora financiadas com abundantes recursos públicos. No Parlamento, as maiorias sem alma e sem idéias vivem da captura do orçamento público e não mantém a mínima conexão com a sociedade, salvo exceções cada vez menores. Neste ambiente a disputa eleitoral vai se resumir a uma competição entre personalidades e o resultado eleitoral não vai trazer normalidade, harmonia ou novos rumos para o país, apenas o congelamento dos conflitos e da intolerância.

As eleições brasileiras se anunciam como as mais conflituosas de toda a nossa vida democrática, servindo não para arbitrar civilizadamente nossas diferenças, mas, ao contrário, para alargar o fosso que tem separado as pessoas na política. Em alguns aspectos estamos retrocedendo aos tempos mais sombrios da nossa história política, quando a própria existência do estado democrático com razão volta a ser posta em dúvida. A mediocridade das lideranças em atividade criou um vácuo na esfera política, onde passaram a se movimentar atores indesejados, como os militares e os juízes, cuja presença aprofunda os conflitos e atrofia ainda mais as instituições da soberania popular, sem nenhum proveito para o país.

Se as pesquisas de opinião estiverem corretas e se o julgamento político dos brasileiros não se modificar, ficará patente que nosso país não apenas está abdicando de um futuro melhor e diferente, como também está se desinteressando de resolver os imensos passivos que vimos acumulando em todos os campos, como a estagnação da economia, o empobrecimento progressivo da população, a ausência do Estado na segurança das pessoas e na proteção do meio ambiente, a degradação da infraestrutura.

A grande ironia é que as atuais mudanças que estão ocorrendo no mundo abrem neste momento uma janela de oportunidades para o Brasil que poderia mudar nosso destino, se ao menos houvesse a esperança de que as eleições dariam ao país um Governo.
Roberto Brant

A mídia está perdendo a confiança – e a democracia, também

Quando pesquisas sobre a mídia são publicadas, elas geralmente provocam agitação apenas entre jornalistas. Mas a realidade de hoje é tudo menos normal. Por isso, o conteúdo do Digital News Report, do Reuters Institute for the Study of Journalism, que acaba de ser publicado, provavelmente irá alarmar mais pessoas do que apenas profissionais da mídia. O estudo, feito anualmente, registra as tendências do consumo da mídia em 46 países. Elas podem ser resumidas em três pontos.

Primeiro, cada vez mais pessoas estão conscientemente evitando assistir, ouvir ou ler as notícias. No Brasil, são 54%, no Reino Unido, 46%. Nos Estados Unidos, Irlanda e Austrália, mais de 40% dos entrevistados disseram evitar notícias. Uma jovem britânica resumiu a atitude: "Evito notícias sobre política. Elas me fazem sentir tão pequena. Além disso, minhas opiniões não importam de qualquer forma." Muitas pessoas, especialmente os jovens, também dizem que não compreendem o conteúdo das notícias.

Em segundo lugar, a mídia nacional continua perdendo a confiança em muitos países. A maior desconfiança está nos Estados Unidos, onde apenas 23% dizem confiar na mídia. Entre os conservadores, o número é ainda mais baixo, de 14%. Mas há também exemplos encorajadores. Na Dinamarca, por exemplo, 69% confiam na sua mídia, um aumento de quatro pontos percentuais.

Em terceiro lugar, a importância dos meios de comunicação tradicionais está diminuindo. Os jovens, em particular, se informam em grande parte por meio das redes sociais e dos mecanismos de busca. Especialmente na Tailândia, nas Filipinas e no Quênia, as redes sociais são a principal fonte de informação. E o TikTok e o Instagram estão se tornando cada vez mais importantes. Há muito tempo o Facebook está em declínio.


É precisamente a mistura de aversão e desconfiança das notícias que preocupa – mesmo que algumas das razões sejam plausíveis. Depois de dois anos de uma pandemia, quem de nós nunca disse: "Não posso mais ouvir essas porcarias sobre a covid"?

Mas há duas boas razões para continuar a se informar por meio de fornecedores de informação confiáveis – pelo menos enquanto houver interesse na participação democrática. Porque a participação democrática se baseia na troca de argumentos racionais e no debate construtivo sobre qual é o caminho certo a seguir. A participação pressupõe o conhecimento. Não é à toa que uma restrição autoritária dessa participação geralmente é acompanhada da restrição da liberdade de informação.

Não é por menos que a guerra de agressão de Vladimir Putin está associada a uma censura radical. Vozes que chamam esta guerra de absurda e prejudicial para a Rússia são cortadas pela raiz, e protestos são reprimidos. A censura e as crescentes restrições à liberdade andam de mãos dadas. Seja em Hong Kong, na Hungria ou na Polônia.

Isso ocorre porque na maioria das vezes são os meios de comunicação que expõem as mentiras dos governantes. O exemplo mais recente são as falsas declarações do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, de que não havia promovido festas em sua residência oficial durante o lockdown. (O que mudou, entretanto, é o fato de que qualquer chefe de governo ou primeiro-ministro antes dele teria renunciado por causa disso).

Aqueles que evitam consumir notícias devem estar cientes de uma coisa. O curso do mundo continua mesmo que ele não esteja sendo notado – sejam guerras ou fomes, mudanças climáticas ou inflação. Apenas aqueles que sabem podem fazer a diferença. Aqueles que desviam o olhar, estão enterrando a cabeça na areia. Praticando a autocensura, por assim dizer. E, portanto, estão cegos para o que está por vir.

Mas nós, jornalistas, não somos isentos de culpa por essa tendência. Nossa cobertura não deve se limitar a descrever as coisas negativas. Ela precisa ser cada vez mais orientada para apontar maneiras de fazer do nosso mundo um lugar melhor. Esse tipo de "jornalismo construtivo" está se tornando cada vez mais importante – e, felizmente, está encontrando cada vez mais apoiadores nas redações.

Precisamos fazer com que o nosso mundo, cada vez mais complexo, seja mais fácil de entender. O fato de que cada vez mais jovens estão se afastando do conteúdo por não o entenderem é um sinal de alarme. Precisamos de mais formatos nos quais os contextos sejam explicados de forma simples e cativante.

Se conseguirmos produzir cada vez mais artigos, vídeos ou podcasts explicativos e orientados a soluções, que também sejam divertidos, o Reuters Digital News Report de 2023 poderia trazer resultados um pouco mais otimistas. Se a atual tendência continuar, porém, a democracia estará seriamente ameaçada no longo prazo.
Martin Muno