quinta-feira, 17 de junho de 2021

Na era bolsonarista, expor horrores da ditadura é tarefa cívica

O negacionismo que mata na pandemia também perverte a compreensão da história do país, em especial daquela parte exaltada pelos seguidores do presidente Jair Bolsonaro. Se é fácil mentir em 2021 sobre um remédio chamado cloroquina, imagina o que pode ser dito sobre uma ação política e armada desencadeada há 57 anos.

Setores da população perderam a vergonha que poderiam ter ao elogiar a ditadura militar (1964-1985) e os métodos que os generais lançaram mão para permanecer no poder por 21 anos e que incluíram torturas e assassinatos de adversários, censura à imprensa, fechamento do Congresso e perseguição política.

A liberalidade para distorcer eventos históricos se beneficia de um processo de apagamento da memória. A amnésia é intensamente fabricada em grupos bolsonaristas e pode atingir os jovens com mais facilidade. Lembremos que todos os brasileiros com menos de 36 anos de idade nunca viveram numa ditadura. Assim fica mais fácil falsificar sobre o que ela de fato foi.


Conforme os anos vão passando, os brasileiros ficam cada vez mais distantes do que significa viver num regime autoritário, no qual garantias fundamentais são suspensas, liberdades são cassadas e crimes são cometidos impunemente pelo próprio Estado. As pessoas vão perdendo os fios que poderiam conectá-las às experiências reais de quem viveu as agruras do período.

Abre-se espaço para falsas narrativas que, se ouvidas na época dos acontecimentos, só provocariam risadas. Por exemplo, a fantasia de que não houve um golpe de Estado em 1964. Até um ministro do STF – que, aliás, nasceu três anos depois do golpe – já o qualificou de mero “movimento”.

Daí que aprofundar o conhecimento sobre o período volta a ser artigo de primeira necessidade. Reavivar a memória é um alerta para não viver de novo.

Vai nessa direção a revelação do UOL nesta segunda-feira (14), em reportagem da jornalista Amanda Rossi, sobre a internação, pela ditadura, de presos políticos em unidades psiquiátricas. Ao mesmo tempo, trabalhos graves e inéditos como esse reforçam a impressão de que sabemos muito sobre a ditadura, mas precisamos saber cada vez mais.

Passadas mais de três décadas da redemocratização, já parecem bem delineados os principais momentos da ditadura, os seus protagonistas e os eventos e personagens mais célebres da luta guerrilheira. Isso se deve a estudos tanto abrangentes quanto detalhados feitos por grupos de familiares dos mortos e desaparecidos, professores e alunos universitários, pesquisadores, jornalistas, escritores e membros do Ministério Público.

Por outro lado, há uma infinidade de aspectos da ditadura que, por motivos que não caberia aqui discutir, passam ao largo da história oficial do período. Falo das vítimas anônimas da ditadura e dos impactos que ela causou a vários setores da vida nacional, do massacre indígena aos projetos de ocupação da Amazônia, da liberdade de expressão à educação escolar, da produção artística a combate às epidemias. Nada ficou ileso a partir do projeto geral de país que os militares idealizaram e tentaram implantar.

A boa notícia é que há nitidamente um esforço, inclusive impulsionado pela Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), contra esse apagamento. Um estímulo é a modernização de órgãos que concentram documentação sobre o período, como o Arquivo Nacional, que guarda milhões de páginas produzidas na ditadura.

Os principais jornais e revistas do país também organizaram seus acervos digitais. Complicada até poucos anos atrás, hoje a consulta à documentação está ao alcance de um clique no teclado do computador. Iniciativas da sociedade civil como o Armazém Memória ampliam o acesso ao registro documental e iconográfico do período.

Outra relevante contribuição tem sido dada pelo Ministério Público Federal. Ao demandar a abertura de procedimentos na Justiça Federal, amplia o conhecimento sobre o período durante o esforço de buscar a responsabilização civil e militar de agentes da ditadura por crimes contra os direitos humanos.

Muito já se revelou sobre a ditadura no campo da produção bibliográfica. Figuras fundamentais para a compreensão do período, como o ex-presidente João Goulart e sua mulher Maria Thereza, o militar Sebastião Rodrigues de Moura, o “Major Curió”, e o guerrilheiro Carlos Marighella, entre tantos outros, já foram objeto de investigações de fôlego – como os notáveis livros de Jorge Ferreira (“Jango, uma biografia”, ed. Civilização Brasileira, 2011), Wagner William (‘Uma mulher vestida de silêncio”, ed. Record, 2019), Leonencio Nossa (“Mata!”, ed. Companhia das Letras) e Mário Magalhães (“Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo”, ed. Cia das Letras, 2012), só para citar algumas obras imprescindíveis de uma safra mais recente.

De um modo geral também já sabemos o que os principais oficiais militares do período pensavam sobre eles mesmos e a ditadura, como ficou registrado pelo projeto de memória oral da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e pelos livros de memórias de alguns desses conspiradores e ditadores. Está razoavelmente consolidada a versão “dos de cima”, isto é, o ponto de vista de quem ocupava o topo da cadeia de comando da ditadura.

Mas a “outra história” vem sendo escavada, contada e recontada nos últimos anos com mais atenção e afinco.

Aqui e ali surgem luzes sobre aspectos pouco conhecidos da ditadura militar. Pode ser o papel do Brasil no golpe militar do Chile, em 1973, descrito pelo jornalista Roberto Simon (“O Brasil contra a democracia”, ed. Companhia das Letras, 2021). Ou a repressão à comunidade LGBT, tema do livro de Renan Quinalha (“Contra a moral e os bons costumes”), anunciado para setembro deste ano pela Companhia das Letras. Ou a pesquisa em fase final realizada pelo ex-deputado federal Gilney Viana sobre os trabalhadores rurais mortos e desaparecidos.

Há mergulhos intimistas, como a história do casal de jovens estudantes preso e torturado pela ditadura narrada no livro e documentário “Em nome dos pais” (ed Intrínseca, 2017), do jornalista Matheus Leitão, que descreve a barbárie que a ditadura cometeu contra os jornalistas Miriam Leitão e Marcelo Netto. Ou a trajetória de um líder estudantil de Brasília sequestrado e desaparecido até hoje e tratada em “Paixão de Honestino” (ed. UnB, 2019), de Betty Almeida.

A atenção do pesquisador pode se fixar no fim suspeito de um servidor público, como em “A morte do diplomata” (ed. Tema, 2017), do jornalista Eumano Silva. Ou na ação das empresas de construção de obras públicas durante a ditadura, conforme descrita em “Estranhas catedrais” (Eduff, 2014), de Pedro Henrique Campos, professor de história da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Ou na relação da ditadura com o governo francês, tema de “Liberdade vigiada” (ed. Record, 2019), do professor de história Paulo César Gomes.

Aqui nem incluo a vibrante produção de documentários sobre o período, um tema todo à parte.

A multiplicidade recente de temas demonstra que a ditadura está longe de se esgotar como objeto de pesquisa e reflexão. A urgência política agrega outro fator de interesse. Na era bolsonarista, para remar contra o negacionismo, expor os métodos e consequências da ditadura é tarefa civicamente essencial.

Os crimes estão aí

Chamou a atenção o forte aplauso da plateia quando o presidente Bolsonaro disse que o “tal de Queiroga” estava preparando um parecer para dispensar o uso da máscara para vacinados e pessoas que já tiveram a Covid.

O aplauso denunciou o que o presidente e sua turma pensam da máscara: um símbolo de fraqueza, frouxidão e de oposição ao seu governo. Por pouco Bolsonaro não atirou no chão a máscara que não usava.

Radicalizou de novo. Ciência deixada de lado – o que não é novidade – a situação se encaminha para um conflito social e nas ruas: bolsonaristas não usam máscara; quem usar, pois, é inimigo.

Exagero?

Seguramente não. O presidente ostensivamente aglomera sem máscara. E reclama quando encontra algum seguidor com a máscara.


Comete crime duas vezes. Primeiro, porque ele mesmo pode infectar os que estão por perto. Já se sabe que as pessoas podem pegar a doença mais de uma vez. O fato de Bolsonaro já ter adoecido não o torna imune. E segundo, porque incita as pessoas a saírem por aí infectando outras. Também se sabe que vacinados podem pegar formas leves da Covid, tornando-se, nesse momento, fonte de transmissão do vírus.

Também nesta semana ficamos sabendo de outra grave irregularidade cometida pelo presidente. Documentos obtidos pela CPI mostram que Bolsonaro telefonou ao premier da Índia, Narendra Modi, para solicitar a liberação de cargas de insumos de cloroquina para duas empresas, a EMS e a Apsen.

Não sei se é crime, os juristas dirão, mas o presidente não pode usar de seu cargo para atender interesses particulares de empresas. Tem mais: o presidente de uma das empresas, Renato Spallicci, da Apsen, é seguidor de Bolsonaro desde antes de 2018.

Tudo errado. Inclusive a primeira declaração da Apsen, feita na quinta-feira, quando a história foi divulgada na CPI. Em nota, a empresa jurou que não tinha nada a ver com o presidente, que atuava no mercado e tal.

Já contei aqui aquele ensinamento da psicanálise. Quando uma pessoa, sem ser perguntada, nega veementemente ter feito algo, pode cravar: é falso.

Mais ainda: o presidente está em campanha direto. Aliás, parece que não gosta muito de trabalhar, não parece? Viaja toda hora. Está inaugurando até bica de água, como se diz na velha política.

Verdade que às vezes dá azar: sem ter nada a fazer ali, resolveu entrar em um avião da Azul que estava estacionado no aeroporto de Vitória. Pretendia apenas cumprimentar os passageiros. Tomou vaia.

A questão é: quem vai colocar o guizo no gato?

Como o presidente aparelhou órgãos policiais e de investigação – estão sendo processados os investigadores – sobra a CPI. E esta vai bem.

Na semana que se encerra, a Comissão passou dos depoimentos mediáticos – mas com alguns bem reveladores – para a fase de análise dos documentos sigilosos, já devidamente vazados.

Também determinou a quebra do sigilo telefônico e telemático de diversas autoridades, membros e ex-membros do governo Bolsonaro. Por essa via, se verá como foram tomadas as decisões de atrasar a compra das vacinas, de inventar o tratamento precoce, de tentar a imunidade de rebanho. Terá sido um programa organizado?

É muito provável que nessas quebras de sigilo apareçam diálogos com o presidente. E se ele, em público, fala o que fala, imaginem em privado. Lembram-se daquela reunião ministerial que era para ficar em segredo?

Tudo considerado, parece que já temos crimes bem definidos. O que falta à CPI, seu próximo trabalho, é ouvir os juristas para saber como tipificar os delitos. Isso vai para o relatório final e daí para as autoridades que podem agir, legalmente, bem entendido, contra o presidente.

O clima político vai esquentar. A recuperação desigual da economia pode amortecer alguma coisa, mas não tudo isso que vai aparecendo.

A ver.

Companheiras

Durante o inverno a sala era tão úmida, que engelava mãos e obrigava os pés um constante sapateado; no verão a sala era quente, tão quente que parecia querer matar-nos sufocados a qualquer momento.

O dias - no inverno como no verão - se arrastavam pesados, longos, sem monotonia, pois nossa constante preocupação era inventar formas para que eles não fossem parecidos. Enchíamos com coragem todas as horas: ginástica, estudos, conversas, cânticos, passeios. Tão pequeno o espaço que possuíamos para caminhar, e o ruído dos tamancos cortava-o, ferindo o lajedo; a saudade impressa nos olhos; as constantes evocações. Quando se falava em quitutes variados, quando alguém dizia como se preparava esse ou aquele prato, podia-se olhar os olhos: estavam todos famintos. Quando se contava passeios e se falava de mar, praia, montanhas ou planícies, podia-se ver nos olhos famintos uma ância de voltar à vida da cidade, da terra, do mundo.

Éramos vinte e cinco mulheres presas políticas numa sala da Casa de Detenção, Pavilhão dos Primários, 1935, 1936, 1937, 1938. Quem já esqueceu o sombrio fascínio do Estado Novo com seus crimes, perseguições, assassinatos, desaparecimentos, torturas?

De um lado e de outro da sala, enfileiradas, agarradas umas as outras, vinte e cinco camas. Quase presas ao teto alto, quatro janelas fechadas por umas tristes e negras grades. Encostadas à parede, uma grande mesa com dois bancos. Ao fundo da sala, os aparelhos sanitários. Por maior que fosse a nossa luta para mantê-los limpos e desinfetados, nunca conseguíamos fugir do cheiro forte que exalavam.

Vinte e cinco mulheres, vinte e cinco camas, vinte e cinco milhões de problemas. Havia louras, negras, mulatas, de cabelos escuros e claros; de roupas caras e trajes modestos. Datilógrafas, médicas, domésticas, advogadas, mulheres intelectuais e operárias. Algumas ficavam sempre, outras passavam dias ou meses, partiam, algumas vezes voltavam, outras nunca mais vinham.

Havia as tristes, silenciosas, metidas dentro de próprias; as vibráteis, sempre prontas ao riso, aproveitando todos os momentos para não se deixarem abater. Os filhos de Rosa eram nosso filhos. Sabiamos as graças e as manhas com que embalavam aquela mulher forte, arrogante, atrevida sempre mas tão doce, tão enlevada pelos "meninos". Quando Rosa falava nos "meninos" ficávamos todas em silêncio. Onde andariam eles? A polícia arrancara-os daquela mãe, negava-se a informar onde se encontravam, não admitia que Rosa soubesse notícias da família: o marido foragido, a irmã distante. E os "meninos"? No silêncio das noites, Rosa fazia com que assistíssemos aos nascimentos, aos primeiros passos, à primeira gracinha, ao primeiro sorriso, e depois o crescer rápido, a escola, os livros, idade avançada. Onde estariam eles?

Problemas de uma, problemas de todas. O noivo de Beatriz era o nosso noivo. Queríamos saber suas notícias, coisas que nem a própria noiva conhecia. Problemas comuns, destinos comuns. Os filhos de Antônia estavam em Natal, mas onde andaria o marido de Nininha, preso do Rio Grande do Norte?
- Aquele eu conheço muito. É um cabra da peste. Ninguém dobra ele, não.
Nininha Lourada, de voz cantante, opunha às cenas de doçura suas palavras de energia. Contava a vida do marido como a de um herói.

Pobres mulheres jogadas numa prisão infecta, sem o menor conforto. Maria pensava no seu chuveiro elétrico, Valentina ensinava literatura inglesa (como estudava e lia Valentina) e queríamos a viva força que Nise desse lições de Psicologia.

Um dia - jamais esquecerei esse dia - fazia muito calor e havia sol. Pareciam maiores as paredes da sala onde escrevêramos desabafos. A vida lá fora devia estar bela; era verão e com certeza ruas e avenidas ensolaradas viam passar mulheres de vestidos claros e leves. Na sala, aquela tarde, havia tanto calor que descansávamos nas camas, abanando-nos com pedaços de papel. Como não tínhamos espaço para andar todas ao mesmo tempo, quando umas o faziam, outras eram obrigadas a ficar sentadas ou deitadas nas camas. Jogávamos paciência, algumas, e o calor era tanto que nem tentávamos falar. Qualquer gesto, qualquer palavra ou movimento iria aumentar o suor que escorria de nossos corpos cansados. Não podíamos perder a menor de nossas energias: deveríamos sobreviver.

E foi nessa tarde que tenho gravada na memória que ela entrou na Sala das Mulheres. Nunca esquecerei seu ar de espanto nem aqueles sapatos que haviam sido brancos. Estavam manchados de terra ou de sangue? Nunca esquecerei o vestido sujo, as mãos trêmulas, os cabelos brancos revoltos.

Ouvimos os passos do guarda subindo a escada; as chaves na porta das grades; depois ela entrou. Estatura mediana, vestido estampado, olhos curiosos. Entrou em silêncio. Em silêncio o guarda a deixou ali.

Olhou em torno. Procurou examinar uma a uma as mulheres, envolvendo-as todas num olhar imenso. Sentou-se na ponta de cama próxima, curvou-se, meteu os dedos por entre os cabelos.

- Quem será?

- Que mulheres serão estas? - estaria se perguntando.

Aproximamo-nos. Tínhamos sempre o cuidado de fazer o reconhecimento e o nosso próprio interrogatório: de onde vem, que fez, por que foi presa, seu ome, etc. Muitos etc.

Perguntamos quem era ela. Nenhuma respostas. Ninguém a conhecia; não nos conhecia. Insistimos. Levantou os olhos, encarou-nos de frente, parecia um animal pronto a se defender. Nossas perguntas foram feitas em várias línguas. E ela continuava firme, sem a menor perturbação fisionômica.

- Não sabemos quem é você. Mas nós somos antifacistas, nós somos presas políticas. Cada uma de nós tem sua estória; esta veio presa do Norte, aquela está aqui como refém porque o marido sumiu. Somos todas brasileiras.
Uma de nós adiantou-se e lhe disse:

- Eu sou comunista.

Foi a esse grito que aquela mulher despertou. Agarrou-se à companheira, beijou-lhe o rosto e pôs-se a exclamar com grandes lágrimas descendo pelo rosto alquebrado:

- Camarada, minha camarada!

O olhar com que agora envolvia as vinte e cinco mulheres era diferente; queria entender as palavras na paredes; perguntava, sorria, abraçava todas, chorava e ria. E contou. Contou com voz firme o quanto sofrera. A Polícia Especial a maltratara mostruosamente. Mostrou-nos os seios onde trazia impressas marcas de dedo. Colocavam-na no alto da escada, amarrada e nua para forçá-la a declarar ou delatar, enquanto dois homens enormes lhe puxavam os seios.
Falou-nos do sofrimento, da fome e da sede que lhe haviam imposto. Falou-nos de seu companheiro e das barbaridades que ambas padeceram. Falou sempre com voz clara, precisa, serena, em tudo que passara nas rpisões desta cidade. Seu corpo guardava ainda as vergastadas de chicote policial. Jogavam-na de prisão em prisão. Ora era metida em celas de prostitutas, ora no meio das ladras ou ébrias. Durante mais de dois meses sofreu humilhações físicas e morais.

- Muito ruins, muito ruins, comentava.

Uma de nós falou:

- Ela precisa comer, tomar banho, mudar o vestido.

Houve um corre-corre geral. Todas queriam dar-lhe roupas, todas queriam dar-lhe um pedaço de pão, de doce, uma fruta. Comia sorrindo. Sua fome tinha dois meses, seu sofrimento mais algum tempo.

Minutos depois voltou o guarda. Explicou que fora engano. A prisão para ela seria outra. E sorrindo:

- Muito pior.

Quando partiu deixava vinte e cinco amigas. Não lhe dissemos adeus, não tivemos um monmento de fraqueza. Mas quando as grades se fecharam atrás dela, cinqüenta olhos choraram.

A tarde tão quente de verão foi mais longa e dolorosa naquele dia. Ninguém falava. Voltamos ao jogo de paciência, ao silêncio, à angústia de saber que a vida lá fora devia andar linda.

Três meses depois ela voltou. Veio viver conosco. Todas as noites, à meia-noite, levantava-se e andava, andava de um lado para o outro, sem uma palavra.

- De meia-noite às duas da manhã ela devia apanhar, ficou-lhe uma psicose.

Essa mulher se chamava Elisa Soborovsk, a Sabo Berger, mulher de Henry Berger. O governo Getúlio Vargas entregou-a mais tarde à Gestapo. Hitler matou-a.

Sabo, para mim, foi uma revelação; jamais conheci mulher tão culta, tão humana, tão valente. Uma mulher tão bela. Nunca a esquecerei.

Na noite em que ela partiu com Olga Benário para o navio que as levaria a Hitler, era inverno e tiritávamos de frio. sofríamos ainda mais, porque tínhamos aprendido a amá-la.

Recordando-a agora, cumpro um dever. Jamais esquecerei também as vinte e cinco mulheres da sala ora fria, ora quente, do Pavilhão dos Primários.
Grandes mulheres; boas companheiras.

Eneida de Moraes