domingo, 8 de novembro de 2020

Brasil, um 'órfão' à procura de adoção

 


O que Trump prometeu e não entregou

Uma das lições a serem aprendidas a partir do resultado das eleições presidenciais nos Estados Unidos é a de que são inviáveis propostas políticas para solução da atual crise baseadas no populismo nacionalista.

O presidente Donald Trump foi eleito em 2016 porque prometeu devolver o emprego e a renda para o cidadão da classe média e a prosperidade para os negócios das empresas dos Estados Unidos. Esse programa protecionista, desenhado em pranchetas carregadas de xenofobia, foi empacotado sob o rótulo do make America great again.

A rejeição a Trump que se viu nos mapas eleitorais do chamado Cinturão da Ferrugem (do qual fazem parte os Estados de Michigan, Pensilvânia e Wisconsin) demonstra o desapontamento do eleitor médio com a administração Trump, que não entregou o que prometeu.

O presidente preferiu culpar a China e os imigrantes cucarachos pelo sumiço dos empregos e pela redução de salários. E apontou a União Europeia como grande responsável pela destruição dos negócios ligados à energia convencional (indústrias do petróleo, do gás de xisto e automobilística). Mas os lances da guerra comercial, os ataques aos fluxos migratórios e o pouco-caso com as aflições das minorias nem recompuseram a renda do cidadão médio e a renda familiar desidratada pelo juro negativo, nem devolveram os postos de trabalho.



Os analistas políticos vêm avaliando quanto o desleixo para com a pandemia e o menosprezo darwiniano diante do sofrimento alheio não se tornaram fator de derrota do presidente Trump.

Independentemente disso, por trás do colapso eleitoral também há uma falha de diagnóstico.O presidente Trump não entendeu que a globalização, a incorporação de mais de 600 milhões ao mercado de trabalho e de consumo na Ásia (e não só na China), as migrações, a rápida disseminação da tecnologia de informação (altamente poupadora de mão de obra) e a incorporação da energia limpa na matriz energética global vêm produzindo profunda transformação na economia e na natureza do trabalho. E não soube como lidar com essa novidade.

De mais a mais, o eleitor copiou do próprio Trump a resposta que este deu ao amador fracassado: “Você está demitido!”. Foi o que Trump repetiu, com notória satisfação, por 10 anos, no programa de reality show conduzido por ele levado ao ar pela rede de TV NBC, chamado O Aprendiz. Os aprendizes eram sistematicamente despachados por ele com um sonoro You’re fired. Ironicamente, essa experiência não serviu para prepará-lo para a derrota eleitoral, para a situação em que ele próprio se tornaria um “loser”, um dos qualificativos que o americano médio mais teme.

O desfecho da eleição nos Estados Unidos parece indicar algo mais do que a simples rejeição ao populismo nacionalista. Parece indicar que não há saída para a crise econômica e social dos nossos dias senão a cooperação, o diálogo, a negociação e a busca de saídas multilaterais.

Isso sugere que a administração Biden deverá não só abandonar as decisões unilaterais que marcaram o governo Trump, mas também deverá retomar os contatos com a Organização Mundial do Comércio (OMC), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e acatar as disposições do Acordo de Paris rejeitadas pelo governo Trump.

Falta saber se, no país agora profundamente rachado e altamente polarizado, o Congresso e, especialmente, o Senado conseguirão dar apoio aos programas de recuperação da atividade econômica, que poderão lembrar os investimentos promovidos pelo governo do presidente Roosevelt nos anos 1930, o New Deal, com o objetivo de buscar a retomada e a saída do labirinto. Parte importante desse programa tende a ser os incentivos para substituição da energia de fonte fóssil pela energia renovável.

E o Brasil?

Se for confirmada essa guinada na condução da política econômica dos Estados Unidos, o governo Bolsonaro não poderá conduzir os interesses do Brasil com o espírito que prevaleceu até agora: o de aproveitar a confusão e a reclusão social da pandemia “para deixar passar a boiada”.

Mas essa reacomodação de um governo também contaminado pelo populismo, se houver, ainda está envolta em enormes incertezas. Essas incertezas se misturam a outras duas: à maneira como o País sairá da pandemia e à maneira como tratará o rombo fiscal, o flagelo que ameaça engolir a política econômica e desorganizar a vida social.

Alerta sobre o 'vermelho'


E vocês estão vendo as questões no mundo, como está a política no mundo. Cada um tem sua opinião, vocês têm que discutir. Tem que ver a América do Sul, vários países estão sendo pintados novamente de vermelho
Jair Bolsonaro

Três lições de Biden para a oposição a Bolsonaro

A certa altura, pareceu que Donald Trump ficaria no poder para sempre. O bilionário transformou a presidência dos Estados Unidos num palco de autopromoção permanente. Com sua oratória agressiva, ele eletrizou as redes sociais, dominou o noticiário e impôs a mentira como arma política. Inspirou uma onda reacionária que varreu democracias em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil.

Deslumbrado, o republicano chegou a anunciar que não se limitaria a buscar o segundo mandato. Já planejava o terceiro, o que exigiria rasgar a Constituição americana. Ontem o projeto autocrático foi interrompido pela vitória de Joe Biden. Trump ainda deve espernear por algum tempo, mas terá que deixar a Casa Branca.

A derrota do ídolo de Jair Bolsonaro pode ensinar algumas lições para o Brasil. A primeira: o populismo de direita não é imbatível. O discurso do ódio atrai votos, mas não resolve problemas concretos dos eleitores. Com o tempo, a realidade se impõe ao obscurantismo. Líderes que insistiram em negar a ciência, como Trump, foram atropelados pela pandemia.



Segunda lição: no confronto com um extremista, é preciso apostar na discussão de valores. Biden tem pouco carisma, mas cresceu ao se apresentar como antítese do rival. Conseguiu transformar a eleição num plebiscito sobre a democracia e a decência que se espera de um governante.

No último debate, o democrata se diferenciou ao mostrar solidariedade com as vítimas da Covid e do racismo. “Vocês sabem quem eu sou, e vocês sabem quem ele é”, disse, olhando para a câmera. “O caráter do país está em jogo. Nosso caráter está em jogo”, reforçou. Essa estratégia depende da realização de debates, que Bolsonaro boicotou em 2018.

A terceira lição está ligada à escolha do candidato e à união das forças democráticas. Biden já havia fracassado em duas tentativas de disputar a Presidência. No início da terceira, chegou a ser visto como carta fora do baralho. Moderado e conciliador, ele convenceu os democratas de que tinha o melhor perfil para derrotar Trump. Progressistas como Bernie Sanders e Elizabeth Warren deixaram a disputa para apoiá-lo. A vice Kamala Harris acrescentou diversidade e energia à chapa.

O sistema político brasileiro é muito diferente do americano, mas quem tem planos para o Brasil de 2022 precisará refletir sobre os EUA de 2020. “A vitória de Biden é uma vitória de frente ampla”, afirma o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB). Ele sustenta que a esquerda só derrotará Bolsonaro se conseguir atrair forças de centro. “Quem não fizer isso não ganhará a eleição”, sentencia.

Na centro-direita, o triunfo democrata empolgou o governador de São Paulo, João Doria (PSDB). “Biden é defensor da democracia e dos direitos humanos, e o Brasil tem falhado nos dois campos. A derrota de Trump mostra que os grandes absurdos têm um fim”, diz o tucano, que apoiou Bolsonaro em 2018 e hoje é inimigo do capitão.

O ex-presidenciável Fernando Haddad (PT) considera que a discussão de estratégia eleitoral ainda é prematura. Mesmo assim, ele festejou um efeito da derrota de Trump sobre o país. “Agora o Bolsonaro é um cachorro que caiu do caminhão de mudança”, ironizou.

Para a América voltar a ser grande

"Parece ter sido reservado ao povo deste país, por sua conduta e exemplo, o veredicto da importante questão: se as sociedades humanas são de fato capazes de estabelecer um bom governo a partir da razão e da escolha, ou se elas estão para sempre destinadas a depender do acaso e da força”.

As palavras de Alexander Hamilton, um dos pais fundadores dos Estados Unidos, em seu artigo ‘O FEDERALISTA NÚMERO UM” (assim mesmo, em caixa alta), de 30 de outubro de 1787, se encaixam como uma luva para definir o que estava em jogo na disputa entre Joe Biden e Donald Trump.

Em última instância, os americanos foram às urnas para decidir se os Estados Unidos retornariam a ser um país fundado em ideias sacramentadas em sua Constituição – chamadas de “estas verdades evidentes” por Thomas Jefferson e Benjamin Franklin - ou se aprofundariam a divisão e o ódio entre os americanos.


A vitória de Joe Biden na eleição mais concorrida da história do país, indica que os Estados Unidos podem se reconciliar consigo mesmo. O democrata demonstra ter clara noção de qual será sua principal missão: unir os americanos, com base nos valores que fizeram dos Estados Unidos a democracia mais resiliente do mundo e por isso mesmo admirada mundialmente.

Sua liderança veio não apenas da sua pujança econômica, mas também do poder de seus ideais. Entre eles, o da liberdade e o que vem da afirmação da Constituição fundadora de que todos os homens nascem livres e têm direitos iguais.

Isso não faz da América uma sociedade perfeita e sem desigualdades. Mas a superação de suas mazelas e o papel positivo que pode desempenhar no cenário internacional dependem da sua coerência com valores que, de resto, são de toda a humanidade.

Seria ilusório acreditar que, com a vitória de Biden, o trumpismo – essa corrente anti-histórica – desapareceu. Tanto está vivo que Donald Trump subverte a democracia americana ao tentar fraudar a verdade das urnas por meio de um tapetão amplo, geral e irrestrito, onde perdeu para Biden. Em sua insanidade, Trump passa recibo de sua derrota e revela profundo desrespeito ao pronunciamento soberano de 160 milhões de eleitores americanos.

Difícil de crer que, sem qualquer evidência de fraude, a Justiça americana avalize uma chicana jurídica que faria dos Estados Unidos uma república bananeira. Isto jogaria o país em uma crise institucional sem precedentes.

A última eleição a não ser aceita foi a de Abraham Lincoln. A contestação levou à Guerra da Secessão, com muito derramamento de sangue e uma ferida que levou muito tempo para cicatrizar.

O trumpismo não está morto, mas recebeu um duro golpe. A derrota no chamado “Cinturão da Ferrugem”, onde venceu em 2016, é o maior atestado de que sua demagogia não resolveu os problemas dos Estados Unidos. Em vez de fazer a América Grande Novamente apequenou-a tanto no concerto das nações como internamente. Em seu governo, a vocação cosmopolita da América deu lugar à xenofobia e ao isolacionismo, abdicando, assim, da vocação americana de liderar o mundo em sintonia com os valores democráticos. Hoje a supremacia americana está seriamente ameaçada pela China.

Há quatro anos a vaga nacional-populista chegava ao auge com sua vitória na maior economia do mundo. A derrota de Donald Trump em 2020 tende a ser o marco do refluxo da onda que varreu o mundo na segunda década do século. Soma-se à derrota de Matteo Salvini na Itália, da Alternativa para a Alemanha no país de Ângela Merkel, e no isolamento da extrema-direita na Espanha.

Os “engenheiros do caos”, para usar a definição do livro de Giuliano da Empoli, estão sendo derrotados porque negaram a ciência na maior pandemia do mundo, em cem anos. No caso de Trump, seu negacionismo teve peso enorme para sua derrota, como evidenciam os resultados eleitorais nos grandes centros urbanos, exatamente onde a Covid 19 mais se espraiou e mais matou. A virada de Biden em estados decisivos se deu quando os votos por correio e antecipados foram abertos. Esse era o eleitorado que mais levou a sério a pandemia e mais percebeu o desastre do desempenho de Trump diante de uma doença que tirou até agora a vida de 230 mil americanos.

Sai derrotada também a política quântica, pautada na exacerbação da polarização, na disseminação de fake news, em teorias conspiratórias e na disseminação do ódio. Ela não desaparece, mas perde fôlego. Há uma chance para que a política deixe de ser a continuidade da guerra por outros meios, ou a guerra sem derramamento de sangue, para voltar a ser forma civilizada de as sociedades dirimirem seus conflitos.

Voltando a Alexander Hamilton: Joe Biden é a possibilidade dos Estados Unidos terem um bom governo pautado pela razão. Por aí a América voltará a ser grande. E admirada por todos os que amam a liberdade.
Hubert Alquéres

Pensamento do Dia

 


A possível derrota do trumpismo enfraquece ou fortalece o bolsonarismo?

Poucas vezes o Brasil acompanhou uma eleição norte-americana com tanta atenção e apreensão como desta vez. A pergunta que se impõe é como o trumpismo continua vivo em metade dos norte-americanos e que pelo visto levará tempo para morrer. Bolsonaro encolherá com a possível derrota de Trump ou ficará ainda mais encorajado com a tentativa de tomar hoje sua bandeira no continente? 

Assim como o histriônico presidente norte-americano não aceitou o resultado das urnas, não é impossível que Bolsonaro e seus filhos agora se sintam incitados a agarrar o bastão do trumpismo. É possível que Bolsonaro também continue alimentando seu pânico e sua obsessão em ver comunistas até debaixo da cama e que continue a combatê-los como moinhos de vento. Ainda será preciso explicar como Trump – com todas as suas estridências, com sua política incorreta, seu racismo comprovado e sua política de perseguição das minorias – ainda consegue manter tanta força eleitoral. A democracia no mundo está entrando em crise para voltar aos tempos do obscurantismo, das guerras e do olho por olho? É uma análise que está por fazer. 

A antropologia e a psicologia também deverão explicá-lo, pois está estreitamente ligado aos instintos mais primitivos, inconscientes e destrutivos do ser humano. O trumpismo, que não morreu, é um fenômeno cada vez mais difundido e está contagiando até países europeus como Hungria, Polônia e Itália, juntamente com o ressurgimento dos movimentos de extrema direita fascistas e até mesmo nazistas. 


Não podemos nos iludir que, com a derrota de Trump e com a volta dos democratas, desaparecerão o ressurgimento e o fortalecimento dos grupos extremistas cada vez mais vivos e ativos. É como um novo vírus que poderia se tornar uma pandemia sem a vacina de uma política democrática renovada e capaz de entusiasmar as pessoas, capaz de saber dialogar com todos ao invés de semear o ódio e as cizânias que o passado nos ensina que costumam acabar em guerra civil. E isso porque esses movimentos extremistas, autoritários e antidemocráticos não nascem do nada, mas de uma insatisfação geral com a política vista hoje mais como uma acumulação de privilegiados que se apropriam da riqueza universal. 

O  mundo estaria se cansando da democracia? O ser humano é instintivamente violento, egoísta, predatório, racista e acumulador. É um lobo para seu semelhante sem as barreiras impostas pela cultura, pela ciência e pela política de coexistência que contrabalançam esses instintos enraizados desde os tempos das cavernas. São sentimentos destrutivos, de medo, que nunca morrem e que veem o próximo como um possível inimigo. Basta despertá-los para que surjam com sua força primitiva. E é isso que os movimentos radicais estão fazendo com os fenômenos do trumpismo e do bolsonarismo.

 E quando falo em bolsonarismo não me refiro aos 57 milhões de brasileiros que deram seu voto nas urnas ao capitão aposentado, muitos deles hoje decepcionados e até envergonhados. Refiro-me ao chamado bolsonarismo raiz, que apela aos sentimentos mais primitivos da convivência pacífica e que se alimenta do pior que existe no homem e goza revirando as latrinas que sujam a convivência civil e pacífica. Todos esses movimentos destrutivos pertencem à ordem dos impulsos que para podermos conviver felizmente reprimimos. 

A guerra se baseia no medo do outro e na ambição de possuir, enquanto a paz se constrói com a cultura e com uma educação que ensina desde a infância a aceitação dos diferentes, o respeito pelo outro e pela natureza. Não é por acaso que o bolsonarismo, por exemplo, revela desprezo pela ciência, pela cultura, pelo ensino livre de imposições autoritárias e defende a política do enfrentamento, enquanto fomenta o politicamente incorreto, zomba da defesa da terra, arrasta para o negacionismo e se opõe aos avanços civilizatórios que contribuem para a convivência pacífica. 

Por tudo isto, esperar que a possível queda de Trump faça desmoronar automaticamente o bolsonarismo é uma vã quimera. Talvez o exacerbe ainda mais como sempre aconteceu com os ditadores que, quanto mais acossados estão, mais aumentam a dose de sua loucura, de suas paranoias e de suas frustrações reprimidas. Por isso as forças democráticas e progressistas brasileiras devem ser capazes de, nas urnas em 2022, colocar um freio ao perigo cada vez mais real de ver destruídos os valores da democracia que impedem entrar no túnel da barbárie. Desse bolsonarismo que acaba envenenando as relações sociais e humanas, empobrecendo o país, afastando-o do diálogo com os outros povos e fechando-se cada vez mais em si mesmo. 

O Brasil ainda tem tempo. Amanhã talvez seja tarde demais.

Vacina obrigatória

O obscurantismo bolsonariano faz-nos retroceder no tempo mais de um século. Em 1900 a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, era conhecida como empesteada, vítima de febre amarela, peste bubônica e cólera. Oswaldo Cruz, diretor de saúde pública no governo Rodrigues Alves, enfrentou as duas primeiras a partir de 1902 e em 1904 deu início ao combate à varíola, cuja imunização poderia dar-se pela aplicação de vacina já conhecida havia décadas.

Depois de muita discussão, foi aprovada no Congresso Nacional a Lei n.º 1.261, de outubro de 1904, que determinava a vacinação compulsória. Houve, então, já naquele tempo, tanto fake news, difundindo ser perniciosa a vacina, como exploração política de positivistas, seguidores de Augusto Comte, e florianistas, adeptos de Floriano Peixoto, que tomaram a questão da vacina como pretexto para tentar derrubar o presidente.

A contestação à obrigatoriedade, liderada por parlamentares, antes oficiais do Exército, ganhou cores gravíssimas, pois entre 10 e 20 de novembro as ruas foram ocupadas por revoltosos, com um saldo terrível de 30 mortos e mais de 900 presos, dos quais 450, por antecedentes criminais, foram enviados para o Acre. Muitos feridos.



Até Rui Barbosa se pôs contra a vacina, ponderando que, “assim como o Direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme”. A obrigatoriedade foi revogada. Em 1908 muitos morreram de cólera e a população acorreu, então, para tomar a vacina. Rui alterou sua posição e em 1917 homenageou Oswaldo Cruz, reconhecendo dever-se a ele a vitória sobre o flagelo e a diferença entre o “Brasil pesteado, que encontrou, e o Brasil desinfectado, que nos veio a legar”.

Em plena pandemia, antes do meio do mandato, Jair só pensa na reeleição. E por interesse político, como em 1904, lança suspeitas sobre a vacina e nega sua obrigatoriedade para contentar seguidores e atacar governadores, contrariando os valores básicos da Constituição e os termos da legislação específica por ele mesmo sancionada. E daí?

No campo legal, a Lei n.º 6.259/75 e o Decreto n.º 78.231/76 impõem a obrigatoriedade da vacina a todos os adultos, aos quais incumbe submeter à vacinação os menores sob sua guarda.

A prevenção da contaminação da covid-19 é, especificamente, disciplinada pela Lei n.º 13.979/20. No artigo 3.º da lei, dispõe-se: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (...) III - determinação compulsória de (...) d) vacinação”. Essa conduta pode ser adotada, segundo o parágrafo 7.º desse artigo 3.º, pelos gestores locais de saúde, ou seja, pelos governadores, desde que cientificamente recomendada a providência.

Na Constituição da República consagra-se o valor da solidariedade no artigo 3.º, segundo o qual é objetivo fundamental da República construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ser vacinado é ser solidário, pois não apenas se protege a si mesmo, mas todos da comunidade, visando a alcançar a imunização. A solidariedade, na expressão de Dworkin, vem a ser “considerar a vida dos outros como parte de suas próprias vidas” (Uma Questão de Direito, pág. 297), significando “a pessoa se abrir à outra, pensá-la, sofrer com”, no dizer de Arias Bustamante (Alternativa Ideológica: Comunitarismo, pág. 40), unidos todos por grande cordão umbilical.

Pela via da solidariedade social pode-se cimentar, orientar e construir concretamente nossa unidade como povo, surgindo em face desse objetivo da República o dever de solidariedade que a todos vincula (André Corrêa, Solidariedade e Responsabilidade, pág. 313).

Como transmissores, somos todos iguais perante o vírus. Ninguém, por nenhuma razão, pode colocar-se acima dos demais e negar-se a colaborar com a comunidade na precaução contra o malefício da infecção. Rejeitar a vacina, autorizada pela Anvisa, é atuar com desprezo pelo outro, em superioridade antissolidária.

Como elucida o Supremo Tribunal Federal (Oscar Vilhena, Direitos Fundamentais, pág. 388, reproduzindo votos de Celso de Mello), “a proteção à saúde representa um fator que associado a um imperativo de solidariedade social impõe-se ao Poder Público”, em qualquer plano da organização federativa, tomando medidas preventivas e curativas.

Em outro voto, Celso de Mello observa que a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida com base nos direitos sociais significa a renúncia a “reconhecê-los como verdadeiros direitos” (pág. 399), em arrepio ao princípio da solidariedade.

Assim, campanha contra futura vacinação, por motivação política, significa não reconhecer a precaução eficaz contra o vírus como um direito da comunidade, a ser explicado e exigido de todos pelo chefe da Nação. Tal conduta infringe o artigo 7.º da Lei n.º 1.079/50, ou seja, pode ser crime de responsabilidade consistente em violar o direito social à saúde, pois incita a impedir a imunização, objetivo solidário de todo o povo. Que flagelo!

Rastro de morte


Donald Trump deixa para trás um rastro de destruição. Sua forma de governar através da mentira causou danos duradouros à confiança nos processos e instituições democráticos

Metamorfose pela metade

Na noite eleitoral de 2016, muitos norte-americanos foram dormir sonhando com uma mulher na presidência. Despertaram de um sonho intranquilo, com o presidente metamorfoseado num Trump gigantesco. Quem achava que este 3 de novembro daria fim ao pesadelo, entrou em insônia prolongada.

E, em vez de sediar a ansiada marcha dos civilizados sobre os bárbaros, a quarta foi de cinzas, entre festa e ressaca. Na quinta, Biden, tudo indica, venceu; mudará a configuração política do planeta. Não é pouco. Mas foi por pouco. Governará no meio a meio, Câmara e Senado partidos, Suprema Corte adversa.

As urnas atestaram o tamanho do apoio à pessoa, aos valores e às atitudes do presidente. Depois de quatro anos sob sua égide, o inaceitável para a metade azul soou bom o bastante para a vermelha. Trump perdeu a rodada, mas o conservadorismo ostentou seu enraizamento.

A derrota é tranco para adeptos do "make my country great again" mundo afora, mas não é antídoto que reponha o Ocidente no jazz de Clinton-Blair. Embora Trump fosse sua face mais vistosa, uma rede internacional de extrema direita se desenvolve desde a valsa Reagan-Thatcher.



A internet está infestada com suas publicações, campanhas, movimentos. Há conspiratórios e patéticos, mas não faltam os astutos. Santiago Abascal é desta espécie. Embora trumpistas de carteirinha em momento barata tonta, os Bolsonaros não ficarão no desamparo. Como são bons em diversificar investimentos, já tinham incluído o líder do Vox em sua carteira.

Quem cuida da bolsa internacional da família é o 03. Depois de se enlaçar com os reacionários norte-americanos e organizar convenção internacional conservadora, aproximou-se da extrema direita espanhola. Em junho, Eduardo entrevistou Abascal no YouTube. Gentilezas de lado a lado, o espanhol se excedeu: elogiou o domínio do castelhano pelo brasileiro.

Em cinco anos, o Vox virou o terceiro partido no país. Segundo Eduardo, Abascal segue "el mismo camino exacto" de seu pai. De fato, embora mais elegante e informado que a família presidencial brasileira, compartilha a autodefinição como "patriota" e a imodéstia na avaliação do próprio peso.

Em entrevista, no fecho das eleições que fizeram do partido andaluz força incontornável, foi categórico: o Vox mudou o debate na Espanha. Como Trump e Bolsonaro, quebrou a cerca do politicamente correto: "O marxismo cultural tinha decretado quais eram os debates proibidos, diziam do que se podia e do que não se podia falar". Agora a agenda pública se disputa.

Abascal projeta a sua globalmente. Criou a Fundación Disenso e, mês passado, o "Foro de Madrid", para "frear o avanço comunista", o aborto e a "ideologia de gênero". Arregimentou para sua "Carta de Madrid" 17 líderes de direita de 15 países, entre gente de governos, partidos, think tanks, proselitistas, jornalistas e empresários, muitos na casa dos 40 e 50 anos. Trata-se de nova e aguerrida geração de conservadores.

A carta denuncia o "sequestro" de parte da "iberoamérica" por "regimes totalitários de inspiração comunista, apoiados pelo narcotráfico", que, liderados por Cuba, Foro de São Paulo e Grupo de Puebla, imporiam seu "projeto ideológico e criminoso" de "desestabilizar as democracias liberais."

É extremismo distinto dos parentes dos anos 1940. Seu lema é "Iberoesfera e liberdade". Não joga contra as instituições liberais, joga dentro delas. Em vez de destruí-la na base da quartelada, interpreta capciosamente regras e brechas da democracia. Luta por moldá-la à sua maneira, disputa seu sentido.

Os extremistas são muitos e estão em muitos países. Neste mundo kafkaniano, Trump não é um Gregor Samsa solitário, nem sairá de cena com a mesma discrição.

Como escolher um candidato

Houve tempo em que era fácil escolher candidato, pelo partido ou pensamento – esquerda ou direita. As transformações no mundo ocorreram mais depressa do que as adaptações dos partidos e dos blocos, deixando os eleitores sem referências. A globalização fez impossível dividir os políticos entre nacionalistas plenos ou totalmente globalistas. O fracasso do Leste Europeu fez com que a esquerda deixasse de se identificar com a estatização, que passou a significar fábrica de privilégios, desperdícios, ineficiência e corrupção, mas as sucessivas crises provocadas pelo liberalismo fizeram a direita perceber a importância do Estado na economia e mesmo na sociedade, adotando e até ampliando programas de transferência de renda que eram bandeiras progressistas. A impressão é que os partidos e os políticos ficaram todos parecidos.

Mesmo assim, eles são diferentes e não é difícil escolher em quem votar, se, sem apego às siglas que pouco significam, leva-se em conta três fatores, nesta ordem de importância.



Primeiro, o passado do político: corrupto ou íntegro. No mundo de hoje, estas são características fundamentais que diferenciam radicalmente os candidatos.

Segundo, se nas suas histórias pessoais e propostas eles são responsáveis ou irresponsáveis no uso dos recursos públicos, os recursos fiscais que o povo paga a cada ano ao Tesouro Nacional, e os recursos ecológicos que recebemos da natureza. A moral do comportamento - corrupto ou honesto – é fundamental, mas a ética da responsabilidade – populista ou responsável – é igualmente importante, porque os irresponsáveis provocam desastres ainda maiores e muito mais difíceis de corrigir. A inflação, consequência da irresponsabilidade, rouba cada pessoa, especialmente aos pobres que não dispõem de instrumentos de proteção.

Terceiro, entre os honestos e responsáveis, há a divisão entre os progressistas e os conservadores. Embora cada um destes dois blocos também se dividam, é possível escolher o candidato conforme suas posições em relação ao respeito às instituições democráticas, aos costumes, à garantia de liberdade, à defesa de direitos humanos, ao papel eficiente e social do Estado, às reformas estruturais, à defesa do meio ambiente, às prioridades no uso dos recursos públicos.

Ao eleitor, depois de identificar os honestos responsáveis, cabe escolher quais prometem para o futuro o que mais se aproxima dos seus sonhos para o país e para o mundo: conservar o que temos ou progredir a um país eficiente, justo e sustentável.
Cristovam Buarque