quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Fome é produto de um governo que junta incompetência e improviso

No início de maio, alguém avisou a Jair Bolsonaro que o país atravessaria um período de estiagem aguda. O presidente olhou para os reservatórios das usinas hidrelétricas e soltou um lamento. "Estamos vivendo a maior crise hidrológica da história. Eletricidade. Vai ter dor de cabeça", avisou a seus apoiadores.

Duzentos e onze dias depois, o Brasil parece ter superado o risco imediato de um apagão, mas há gente correndo atrás de lagartos para não passar fome no Rio Grande do Norte. Reportagem da Folha mostrou que metade do estado enfrenta uma situação de "seca grave", expondo uma população desamparada por um governo incapaz de fazer o mínimo para enfrentar a miséria.


Nessa área, a gestão Bolsonaro exibe uma rara união entre incompetência, desinteresse e improviso. O presidente e seus auxiliares fazem definhar programas consolidados, ignoram consequências visíveis da crise econômica e recorrem a gambiarras para combater um problema crônico como a pobreza.

Em busca de dividendos eleitorais, Bolsonaro rebatizou o Bolsa Família e inventou um benefício adicional que pode valer apenas até o fim de seu mandato. Para completar, o governo barrou uma articulação que acabaria com a fila de espera do programa. Com a manobra, pelo menos 3 milhões de famílias pobres ou miseráveis devem continuar sem receber os pagamentos.

A gestão Bolsonaro ainda fez murchar um programa de enfrentamento à seca que chegou a instalar 100 mil cisternas num único ano. Agora, o governo se arrasta para chegar à marca de 3.000 unidades em 2021, enquanto a estiagem agrava a fome no semiárido. Entidades estimam que mais de 350 mil famílias da região ainda precisam ser atendidas.

A falta de uma rede de proteção social oferecida pelo governo faz com que a fome e a seca voltem a ser problemas políticos. Além das preocupações abrangentes com "a economia", o país chegará ao debate eleitoral de 2022 diante da miséria que atinge muitos brasileiros.

Quanto mais ocultas, mais fétidas serão as emendas ao Orçamento

Nova semana de queda de braços entre o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) teremos pela frente. Na aprovação da PEC dos Precatórios, a maioria do Senado manteve o sigilo sobre as emendas já executadas e adotou uma espécie de “me engana que eu gosto” em relação às que ainda não foram liberadas, ao propor que prefeituras, governos estaduais, órgãos federais e instituições da sociedade encaminhem “diretamente” ao relator os seus pedidos de emendas. A malandragem permite que os “padrinhos” desses pedidos não apareçam, ou seja os parlamentares, seus verdadeiros autores.

É como dizia, ironicamente, o cronista carioca Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, “ou restaura-se a moralidade ou nos locupletemos todos”. A proposta aprovada no Congresso adotou a segunda opção, que ainda vai dar muito pano para as mangas dos que estão distribuindo verbas do Orçamento com mãos de gato. O Supremo, ao endossar a decisão da ministra Rosa Weber, mandando sustar a execução das emendas, foi muito claro: orçamento secreto é inconstitucional. Tudo o que ocorreu precisa ter transparência, inclusive os nomes dos autores das emendas.

A forma desesperada como se tenta esconder seus autores só aumenta as suspeitas de “intermediação onerosa”, superfaturamento e desvios de recursos públicos. Haveria até mercado de emendas. Sobrou para o relator-geral do Orçamento da União de 2021, senador Marcio Bittar (MDB-AC), operador das emendas secretas. O presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), segundo a Advocacia do Senado informou ao Supremo, pediu a Bittar (PSL-AC) que adote todas as “providências possíveis e necessárias para o cumprimento das citadas deliberações do Congresso Nacional e da mencionada decisão do Supremo Tribunal Federal”.

No documento encaminhado ao STF, os advogados do Senado fazem questão de ressaltar que não havia obrigação para que esses dados — o autor da emenda, o valor pedido, o valor liberado e a destinação, por exemplo — estivessem cadastrados em algum sistema do Congresso. Somente os tolos podem imaginar que alguma emenda parlamentar ao Orçamento da União seja aprovada e liberada sem que se saiba e se registre o autor. Até os brincantes do calçadão da Gameleira, em Rio Branco (AC), sabem que o senador Bittar não dá ponto sem nó.

Além disso, o toma lá dá cá como instrumento de fidelidade na base governista impede que esse tipo de informação não seja do conhecimento de alguns mandachuvas do Centrão: o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL); a deputada Flávia Arruda (PL-DF), ministra-chefe da Secretaria de Governo; e o senador Ciro Nogueira (PP-PI), ministro da Casa Civil.

Tradicionalmente, a liberação de recursos para parlamentares consta também de planilhas das assessorias parlamentares da Presidência e dos principais ministérios, às quais os líderes do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), e na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), têm acesso, porque são o estuário das reclamações de insatisfeitos e responsáveis pela mobilização governista durante as votações do Congresso. Sob risco de se enrolar nesta história, será preciso muito óleo de peroba para Bittar não informar os nomes dos autores das emendas, já que Pacheco disponibilizou toda e estrutura e os servidores para levantar essas informações, “no prazo de 180 dias”.

O Brasil nunca se livrou do patrimonialismo, fenômeno estudado por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Florestan Fernandes e Victor Nunes Leal, entre outros. Inspirados em Max Weber, autor do conceito, eles estudaram os mecanismos da formação e manutenção do poder das oligarquias, tanto na política quanto nas relações econômicas. O patrimonialismo surge quando não existe distinção entre o público e o privado, e as duas coisas se misturam.

É o que está acontecendo descaradamente com o Orçamento da União, desde que Arthur Lira (PP-AL) conseguiu articular a aprovação do orçamento secreto. Na acepção mais restrita do conceito, o patrimonialismo existe quando um líder político instrumentaliza o poder e cria mecanismos de controle de estruturas e agencias de Estado para obter privilégios e vantagens pessoais. É uma herança das monarquias absolutistas, que impede que a máquina pública, a partir da racionalidade impessoal, tenha mais eficiência. O patrimonialismo está entranhado na política brasileira desde o Império.

Fome e abandono estão do outro lado do Auxílio Brasil

O Governo Federal definiu a regulamentação de um novo programa social, o Auxílio Brasil. Ele substitui o Bolsa Família, regulamentado por lei em 2004 e extinto pela Medida Provisória nº 1.061, de 9 de agosto deste ano, a mesma que criou o novo benefício.

O novo programa teve início no mês passado e já começou com inúmeras incertezas e falhas de implementação, impondo condições ao Congresso Nacional e não oferecendo nenhuma segurança para as famílias beneficiadas.

O pagamento em novembro começa com grandes decepções, muitas pessoas frustradas e milhões de famílias sem qualquer atendimento. A MP nº 1.061 ainda tramita no Congresso Nacional, mas já apresenta alguns avanços na Câmara dos Deputados, como a promessa de ter a fila de espera zerada –um problema crônico que mantinha mais de 2 milhões de famílias aguardando pelo Bolsa Família antes da pandemia. E mais: promete ainda que os valores dos benefícios sejam reajustados pelo INPC e prevê que serão elegíveis as famílias em situação de pobreza, cuja renda familiar per capita mensal esteja entre R$ 105,01 e R$ 210; e as famílias em situação de extrema pobreza, com renda familiar per capita mensal igual ou inferior a R$ 105,00.


Esses valores votados na Câmara foram diferentes do previsto no decreto que regulamentou a MP, que fixou a renda da extrema pobreza até R$ 100,00 e da pobreza entre R$ 100,01 e R$ 200,00. O efeito prático da mudança é ampliar o universo de elegíveis.

Qual o tamanho dessa ampliação? Se pensarmos nas 39 milhões de famílias que estavam sendo atendidas pelo auxílio emergencial, o quadro que temos hoje é: 29 milhões ficaram completamente desassistidos e 10 milhões, que já faziam parte do Bolsa Família e recebiam também o auxílio emergencial, migraram automaticamente para o Auxílio Brasil.

Outros 24 milhões de brasileiros que estavam inscritos pelo aplicativo foram automaticamente excluídos e há 5,3 milhões que estão no cadastro único e, mesmo tendo chance de serem chamados, não foram incluídos. De certo até agora, apenas os graves problemas que persistem: pessoas com direito que não foram incluídas, pessoas que estão recebendo menos do que deveriam, pessoas excluídas sem qualquer critério, mesmo fazendo parte do bloco de brasileiros que mais precisam.

São tantas famílias. Nathalia da Silva, do Rio de Janeiro, que é mãe solo, depende da transferência de renda e teve o benefício suspenso; Suelen Feitosa, de São Gonçalo (RJ), mesmo tendo direito não está recebendo e foi suspensa do Bolsa Família na virada para Auxílio Brasil; Gardenha Cleofas, de São Sebastião (SP), que não está com o Cadastro Único atualizado porque o prazo de atualização está suspenso até março de 2022; Arlete Silva, de São Paulo, que recebia o Bolsa Família até outubro, mas em novembro foi excluída do Auxílio Brasil.

Esses são apenas alguns na multidão de excluídos. E são os que procuram diariamente a Rede Brasileira de Renda Básica (RBRB) para terem suas histórias ouvidas, na esperança de que a entidade seja sua interlocutora junto ao Ministério da Cidadania.

Para o Governo Federal, eles continuam invisíveis. Esse mesmo governo poderia ter mantido o Bolsa Família como programa de Estado, com recursos garantidos, critérios e valores mais amplos, com menos burocracia para fortalecer-se como um Estado protetor de fato.

Mas não! O Governo Federal preferiu uma saída eleitoreira, mesmo correndo o risco de não ter a PEC dos Precatórios aprovada. Dessa forma, delegou ao Parlamento fazer as adequações para o projeto passar. Enquanto isso, infelizmente, mais pessoas vivem a insegurança, a fome e o desgaste de não ter o nome entre os beneficiários.

Vale lembrar que, no Brasil, uma em cada quatro pessoas não sabe se vai fazer a próxima refeição e já são mais de 50 milhões que vivem em situação de insegurança alimentar. O povo tem pressa porque a fome não dá trégua. Até quando?
Paola Carvalho, diretora de Relações Institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica