domingo, 2 de julho de 2023

Pensamento do Dia

Sheida Sardashti



 

Poemas aos Homens do nosso Tempo

Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.
Hilda Hilst

Quem deve mandar no Brasil

Jair Bolsonaro foi o pior presidente que o Brasil já teve, em qualquer dos regimes em que vivemos. Além de sua incompetência natural, incentivou nosso racismo de berço, separou os brasileiros em que ele acreditava (se é que acreditava em algum) daqueles com que não contava para nada, passou quatro anos pregando seu golpe por um governo autoritário em que mandasse e fizesse o que bem entendesse do Brasil. Foi, em suma, o político que menos havia de merecer nossa confiança na condução do país.

Mas devia caber ao povo brasileiro, a seu melhor e mais confiável representante, o cidadão eleitor, dizer que ele não servia para nós. Isso não pode ser secundário, incerto e precário. Tem que ser a base de nossa existência como nação.

Cacá Diegues

O valor da ambição prática

Se o prezado leitor acredita que a abundância de recursos naturais será suficiente para levar o Brasil ao paraíso do bem-estar, parabéns, é um otimista.

Otimismo não paga imposto; não se preocupe em poupá-lo. Mas lembrem-se de que já experimentamos vários modelos e nos especializamos em dar com os burros n’água. Atualmente, estamos afundados no que os economistas chamam de “armadilha do baixo crescimento”. Uma exceção aos nossos sucessivos fracassos é a exportação de commodities para a China, mas, atenção, commodities não criam empregos. Os fios de esperança que mantêm vivos os nossos quase 10 milhões de desempregados são a indústria e o setor de serviços. A indústria, que outrora atingia 27% do Produto Interno Bruto (PIB), hoje não passa de 11%. E os serviços (falo de restaurantes, hotelaria, atividades ligadas ao turismo) que mantenham ligadas as suas antenas, porque a fúria arrecadatória do governo não vai parar tão cedo. O governo precisa dela para prover os auxílios-emergência sem os quais nosso quadro social ficaria deveras macabro.


Nunca é demais lembrar que já estamos no século 21. Foi apenas um século atrás que implantamos nossa primeira universidade. Em 1934 até que tentamos um passo mais arrojado, a criação da Universidade de São Paulo, com um corpo docente recrutado entre o que de melhor havia na Europa. Nas ciências exatas, podemos dizer que valeu a pena. Mas as ciências humanas rapidamente sucumbiram à era da ideologia. O resultado dessa triste combinação é que só agora, em 2023, uma universidade brasileira aparece na lista das cem melhores do mundo.

Salta, pois, aos olhos que precisamos explorar outras linhas de raciocínio. Temos de pensar em iniciativas de larga escala, que redundem em avanços palpáveis num curto lapso de tempo. O melhor exemplo é bem conhecido. Vem da educação. Nos Estados Unidos, em 1862 – segundo ano da guerra civil, reparem bem –, o presidente Abraham Lincoln encontrou tempo para pensar em algo melhor que revólveres e carabinas. Sancionou o projeto de lei que deu origem aos landgrant colleges: a concessão de terras pertencentes à União aos Estados com a condição de que estes as utilizassem para a implantação de escolas dedicadas às “mechanical arts ”, ou seja, ao desenvolvimento de tecnologias. O êxito de tal programa foi absolutamente espetacular, a ponto de tais colleges se tornarem um dos propulsores da acelerada industrialização das três décadas seguintes.

No Brasil, graças aos céus, a consciência de que precisamos de ciência e tecnologia vem aumentando, mas, se querem avaliar o tamanho do nosso atraso, vejam lá em cima minha referência ao Mississippi. Deus talvez seja mesmo brasileiro, mas às vezes se distrai. Nos Estados Unidos, um dos principais estímulos à criação dos land-grant colleges foram as nevascas que todo ano arrasavam uma parcela importante da agricultura. Deus não nos deu a neve, privando-nos, portanto, de indispensáveis impulsos na geração de técnicas e de hábitos de colaboração entre vizinhos e coletividades. A parte que nos coube no latifúndio universal foram o clima tropical e a cultura ibérica, em sua maior parte assentada sobre a contrarreforma deflagrada por Santo Inácio de Loyola, inimiga figadal da ciência moderna. Seu cerne, além da religião, a pregação, a oratória, uma arraigada aversão à experiência factual como base para o progresso do conhecimento.

O fruto mais elaborado dessa trilha foi, como sabemos, as escolas de Direito. Essencial em doses moderadas, o Direito difunde e alastra a opacidade sobre as sociedades que a ele sucumbem sem nenhum sentido crítico. Hoje, no Brasil, temos algo em torno de 2 mil escolas de Direito. De agora em diante, os bacharéis egressos de escolas privadas consumirão o resto de sua vida tentando pagar o que despenderam em sua formação. Esse é um fenômeno já perceptível mesmo nos Estados Unidos.

Para não concluir numa nota triste, peço vênia para evocar um caso que por certo soará inusitado neste espaço: a difusão do violão clássico pelo mundo. Ela se deveu ao hercúleo exemplo de um pequeno grupo, liderado pelo espanhol Andrés Segovia (um aristocrático que se recusou a reconhecer o mérito do paraguaio Agustín Barrios, tão bom quanto ele na técnica e muito superior na composição). Segovia anunciou como seu propósito nada menos que restaurar o violão à condição de instrumento de concerto, digno de ser apresentado em recitais e junto com as melhores orquestras. No Brasil, cento e poucos anos atrás, violão era instrumento de homem, negro, malandro e por aí afora. Villa-Lobos foi outro que contribuiu poderosamente para o projeto de Segovia. Para isso, era mister cultivar, sem concessões, a melhor técnica. Nos anos 50 do século passado, no Brasil, haveria talvez quatro ou cinco violonistas de padrão internacional. Hoje há dezenas, e o mesmo ocorre em todo o mundo, com a possível exceção da Coreia do Norte. Curiosamente, tal desenvolvimento foi marcante na Ásia e, salvo engano, mais entre as mulheres que entre os homens.

Antes tarde que nunca: enfim impõem-se limites a Bolsonaro

Com 5 votos a 2, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) condenou Jair Messias Bolsonaro. A maioria dos juízes entendeu que o então presidente cometeu abuso de poder político em 18 de julho de 2022, quando disse mentiras sobre o sistema eleitoral brasileiro a embaixadores estrangeiros especialmente convidados. Segundo ele, as urnas teriam seriam fraudadas para favorecer seu principal adversário, Luiz Inácio Lula da Silva, e a Justiça Eleitoral seria parte da conspiração.

As fake news de Bolsonaro sobre as urnas supostamente manipuladas copiaram as de seu ídolo Donald Trump. E tanto nos Estados Unidos como no Brasil, uma multidão foi instigada pelas teorias da conspiração a invadir o Capitólio e a Praça dos Três Poderes, respectivamente. No caso de Bolsonaro, a violência de 8 de janeiro de 2023 fez com que o lento e preguiçoso TSE finalmente agisse rapidamente. Bolsonaro está fora do cargo há apenas seis meses.

Ainda assim, o Judiciário reagiu tarde demais. Durante mais de 30 anos, permitiu-se que o populista de direita realizasse sua sabotagem contra a democracia sem ser perturbado, primeiro no Congresso e depois no Palácio do Planalto. Ele agrediu verbalmente seus adversários, pediu o assassinato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e insultou Dilma Rousseff da pior forma possível durante a votação do impeachment, dedicando seu voto ao repugnante carrasco Brilhante Ustra.


Mesmo como presidente ele disseminou notícias falsas sem ser incomodado, destruindo deliberadamente a confiança de milhões de pessoas nas instituições e causando milhares de mortes adicionais pelo coronavírus. E ninguém impediu o incendiário. O fato de o Judiciário ter se oposto às fantasias golpistas do então presidente no final de seu mandato deve-se exclusivamente ao presidente do TSE, Alexandre de Moraes, que não se deixou intimidar por Bolsonaro e sua turba raivosa.

Bolsonaro não poderá disputar eleições por oito anos. Isso se a sentença proferida nesta sexta-feira (30/06) resistir a eventuais recursos da defesa, inclusive ao Supremo Tribunal Federal (STF). O próprio Bolsonaro parece ter pouca esperança, como mostra seu discurso de vítima. A iniciativa de parlamentares leais a ele de apresentar uma lei especificamente para salvar seu direito de disputar eleições também promete pouco sucesso.

Até a derrota apertada para Lula em outubro passado, Bolsonaro não apenas havia vencido todas as eleições que disputou, mas também ajudou toda a sua família – filhos e ex-mulheres – e numerosos aliados a obter vitórias nas urnas. E, assim, garantiu-lhes acesso a todos os benefícios da democracia brasileira: levou dezenas de parentes e associados a cargos estatais bem remunerados, por meio dos quais eles provavelmente tiveram que ceder parte de seus salários ao clã Bolsonaro. Os casos de parasitismo conhecidos como "rachadinha" precisam ser urgentemente investigados pelo Judiciário. Será que as Cortes se atreverão?

Bolsonaro ainda é alvo de outros 15 processos no TSE relacionados à campanha eleitoral de 2022. Mas o ex-militar também tem que responder por suas fake news sobre a covid-19, pelo escândalo do desvio de joias no valor de milhões de dólares e por tentativa de subversão. É um registro completamente indigno para o cargo de presidente que Bolsonaro tem a mostrar depois de quatro anos no comando do país. O Judiciário poderia ter poupado a democracia brasileira se tivesse agido de forma mais rápida e consistente. De qualquer forma, o julgamento proferido agora ainda pode quebrar o gelo e dar coragem aos demais juízes para condenarem Bolsonaro em outras ações.

Contudo, permanece a impressão de que os tribunais só se atrevem a tocar em políticos que estão em declínio. Já havia sido o caso de Lula, que não foi prejudicado pelo escândalo do Mensalão em 2006, quando sua popularidade era alta. Então em 2017, quando o político aposentado estava manchado por anos de fogo constante da mídia em torno do escândalo da Lava Jato, vieram as condenações. Como os ventos políticos voltaram a favorecer Lula, ele não tem nada a temer do Judiciário. É claro que isso cheira a oportunismo.

Também entre os apoiadores de Bolsonaro, há a sensação de que o Judiciário não está agindo tão cegamente – e, portanto, imparcialmente – como deveria. Para eles, a condenação de Bolsonaro é mais uma prova da suposta corrupção do sistema.

Esse é o reflexo de o judiciário não ter tomado medidas consistentes contra Bolsonaro anos atrás. Como diz o ditado: é preciso cortar o mal pela raiz.

O que a Justiça ainda deve ao Brasil no caso de Bolsonaro

Bolsonaro não precisava ter feito muitas coisas para se reeleger. Os presidentes que o antecederam renovaram o mandato, até mesmo Dilma Rousseff que um ano e pouco depois seria derrubada.

Bastava que, aos primeiros sinais da pandemia da Covid-19, tivesse seguido as recomendações do então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Ou de Nelson Teich, que sucedeu a Mandetta.

E que ao longo dos anos seguintes não atacasse a Justiça tão violentamente como fez. Aqui, mas não só, a Justiça costuma ser branda e compreensível com os poderosos. Está no seu DNA.

Engoliu sem reclamar a garfada que o presidente Fernando Collor deu na poupança dos brasileiros em 1990 a pretexto de controlar a inflação. O Plano Collor e a Constituição eram incompatíveis.

Em 1994, a Justiça engoliu calada a compra de votos para que o Congresso aprovasse a emenda que introduziu no país a reeleição de presidente da República, governador e prefeito.

Fernando Henrique Cardoso reconhece que a reeleição foi um erro. Mas ele foi o primeiro a se beneficiar. Eleito em 1994 na garupa do Plano Real, reelegeu-se em 1998 quando o Real fazia água.

Foi por excesso de provas de que a chapa Dilma-Temer abusara do poder econômico para se eleger que a Justiça, em 2017, a absolveu. Àquela altura, Dilma já estava no chão e Temer na presidência.


Bolsonaro acreditou que a economia iria pelos ares e, com ela, seu governo, se combatesse a pandemia como Mandetta pedia. Então, preferiu associar-se à morte. Foram mais de 700 mil.

Se desejasse apenas se reeleger, não partiria para o confronto sangrento com a Justiça. O ápice foi no 7 de setembro de 2021, em comício na Avenida Paulista, quando ele explodiu:

“Acabou o tempo dele. Alexandre de Moraes: deixa de ser canalha. Eu quero dizer que qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, este presidente nunca mais cumprirá. A paciência do nosso povo se esgotou. Ele tem tempo ainda de pedir seu boné e cuidar de sua vida. Ele para nós não existe mais.”

Em live nas redes sociais, desafiou o ministro:

“Tu está (sic) pensando o quê da vida, que você pode tudo? E tudo bem? Você um dia vai dar uma canetada e me prender? É isso que passa pela tua cabeça?”

Quem quer pegar galinha não diz xô. A galinha dos ovos de ouro de Bolsonaro não era a reeleição, mas o golpe. Em legítima defesa do país e dela mesma, a Justiça decretou: “Chega! Basta! Fora!”

O imexível e imbrochável capitão de fancaria acabou castrado, tornando-se também inelegível. Falta a canetada. Que não será uma canetada, mas um julgamento que obedeça aos ritos da lei.

É assim nas democracias que não são relativas, mas de verdade.