quarta-feira, 24 de abril de 2024

Pensamento do Dia

 


Os bilionários

Hoje, os bilionários são 2.544 pessoas no mundo, segundo “Billionaire Ambitions Report 2023” do Banco UBS, com a riqueza (assets financeiros e não financeiros) em US$ 12 trilhões, nominalmente equivalente a 12% do total do PIB mundial de US$ 101,3 trilhões, seis vezes maior do que a riqueza dos 50% da população mundial mais baixos na base da pirâmide. Hoje, segundo o “World Inequality Report 2022”, os 1% mais ricos do mundo detém 19% do PIB mundial enquanto os 50% mais baixos detém 8,5% do PIB mundial, com a renda total dos 1% mais ricos 2,3 vezes maior do que a renda total dos 50% mais baixos na pirâmide.

Na lista dos bilionários, os Estados Unidos lideram com 751, China 520, Índia 153, Alemanha 109, Inglaterra 83. O primeiro trilionário em riqueza surge neste ano de 2024, Bernard Arnault, francês, do grupo LVMH / L’Oréal, com US$ 1 trilhão de riqueza, nominalmente equivalente à metade do PIB do Brasil em 2023, estimado em US$ 2,1 trilhões pelo FMI.


O Brasil, com a 9ª economia do mundo, está na 10ª colocação mundial de bilionários, com 45 no total; acima do Canadá com 42; Japão 38; França 34. Nos indicadores socioeconômicos, no índice de GINI, que mede a distribuição de riqueza para 162 países, o Brasil encontra-se na 154ª posição; no IDH, que mede a qualidade de vida em função bens e serviços para 191 países, o Brasil encontra-se na 87ª posição; no PISA, que mede o desempenho de alunos do ensino médio em 81 países, o Brasil encontra-se na 52ª posição em leitura, 61ª em ciências, e 65ª em matemática.

Paradoxalmente, a Suíça, 20ª economia do mundo, ocupa o 6º lugar no ranking mundial com 75 bilionários; Hong Kong, 30ª economia, 7º lugar com 68 bilionários; Taiwan, 22ª economia, 9º lugar com 46 bilionários; todos acima do Brasil, 9ª economia, no 10º lugar com 45 bilionários. Segue-se Singapura, 32ª economia, 12º lugar com 41 bilionários. Os núcleos de decisão se deslocam.

No Oriente Médio, Israel conta com 26 bilionários; Emirados Árabes 17; Arábia Saudita 6; Egito 4; Líbano 2.

Wright Mills, em A Elite do Poder, diz que manda o econômico, garante o militar, executa o político, e modera o intelectual, aqui compreendido como imprensa e universidades. E Max Heirich, em A Espiral do Conflito, analisa o processo decisório que chega ao afunilamento dos conflitos, onde, do social ao político, as decisões acabam por ficar nas mãos de poucos, com imprevisibilidade nas decisões tomadas. Nunca estivemos, ao longo de nossos 200 anos de capitalismo industrial, na mão de tão poucos. Vide Davos.

É hora de se pensar em uma Sociologia dos Bilionários, para o melhor entendimento da economia atual, das consequências da economia sobre a ecologia, e das guerras que se acentuam. As guerras e os danos ao meio ambiente se tornam mais incidentes, por serem movidas pelas decisões de poucos; e mais imprevisíveis em seus possíveis resultados, por serem movidas pelas decisões de poucos.

Que Deus nos proteja.

Está envenenada a terra

Está envenenada a terra que nos enterra ou desterra.
Já não há ar, só desar.
Já não há chuva, só chuva ácida.
Já não há parques, só "parkings".
Já não há sociedades, só sociedades anônimas.
Empresas em lugar de nações.
Consumidores em lugar de cidadãos.
Aglomerações em lugar de cidades.
Não há pessoas, só públicos.
Não há realidades, só publicidades.
Não há visões, só televisões.
Para elogiar uma flor, diz-se: 'que linda, parece de plástico'.

Eduardo Galeano

O bom operário

Estava o beato Antônio em oração e jejum quando o sono venceu-o e ele sonhou que do céu descia uma voz que lhe dizia que seus méritos ainda não eram comparáveis aos do curtidor José, de Alexandria. Saiu andando Antônio e surpreendeu o simplório homem com sua presença respeitável. “Não me lembro de ter feito nada de bom — declarou o curtidor —. Sou um servo inútil. Diariamente, ao ver o sol raiar sobre esta grande cidade, penso que todos os seus moradores, do maior ao menos importante, entrarão no céu por sua bondade, menos eu que, por causa dos meus pecados, mereço o inferno. E o mesmo mal-estar me contrista quando vou deitar-me, e cada vez com mais veemência”. “Na verdade, meu filho — observou Antônio — tu, dentro de tua casa, como bom operário, ganhaste descansadamente o reino de Deus, enquanto que eu, irrefletido que sou, consumo minha solidão e ainda não cheguei a tua altura”. Isto posto, voltou Antônio ao deserto e, no primeiro sonho que teve, voltou a baixar a ele a voz de Deus: “Não te angusties; estás perto de mim. Mas não esqueças de que ninguém pode estar seguro nem do próprio destino nem do destino dos outros”.

Jorge Luís Borges, "Livro de Sonhos"

Em 50 anos de democracia, Portugal passou de país atrasado a referência

Intenso como os cravos sobre as roupas cinzentas de 1974, o vermelho de um sinal fechado salvou Rita da prisão. A então estudante de 21 anos combatia na clandestinidade a ditadura em Portugal e achava que era seguida nas ruas de Lisboa pela temida e violenta Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), adepta da tortura que aniquilou ou quase matou alguns de seus camaradas. Ela conta que teve a sorte de parar em um semáforo, abrir a porta e fugir para o carro ao lado, dirigido por um amigo de infância.

Era, assim, carregado, o clima em Portugal antes do 25 de abril de 1974, data da Revolução dos Cravos, que completa 50 anos na quinta-feira. O fim da ditadura de 48 anos (1926-1974), a mais longa da Europa, trouxe liberdade e comprovou como a democracia melhorou os índices de um país considerado atrasado e pobre, como revelou o banco de dados Pordata, num estudo inédito.

“Em 1970, um em cada quatro portugueses (25,6%) era analfabeto. Em 2021, a taxa de analfabetismo era de 3,1%. Cerca de 68% das casas não tinham chuveiro, 53% não tinham água canalizada e 42% não tinham instalações sanitárias, números que se inverteram quase totalmente”.

Segundo um trecho do livro “A Revolução Gentil”, que será lançado em maio pelo escritor Ricardo Viel, mais de um terço da população vivia sem luz elétrica. Havia cerca de 30 mil presos políticos e entre 7 a 10 mil livros censurados. Só em Lisboa, 90 mil pessoas (mais de 10% da população à época) vivam em cerca de 18,5 mil barracas Eram os “bairros de latas”, ou simplesmente favelas.


Ali viviam milhares de mulheres, relegadas pela ditadura ao papel de submissas ao homem por imposição de um Código Civil do século XIX. Elas e seus filhos foram as primeiras a ocupar casas e só depois permitiam a entrada dos homens. Também ganharam direito ao voto.

— O homem era o chefe e a mulher lhe devia obediência, como mandava o Código. Isso desapareceu com o 25 de Abril. Mulheres que viviam nas favelas foram com seus filhos para casas ocupadas e depois chamaram os maridos. Fábricas com mão de obra feminina aderiram às greves. Houve um pacto universal para mudar a família e a sociedade. Alterar a mentalidade demorou mais. Mas o fato era que, de repente, tínhamos as leis mais avançadas da Europa — lembrou Rita, pseudônimo de Irene Flunser Pimentel, que uma vez livre da opressão, virou escritora e historiadora especialista na ditadura.

Não houve banho de sangue, mas quatro pessoas morreram na revolução. Segundo Pimentel, todas as vítimas foram assassinadas pela PIDE. A tomada do poder foi organizada pelos militares, que planejavam entregar o comando para a sociedade civil, como de fato aconteceu. O 25 de Abril suave pôs cravos nos canos das armas, imagem atraiu o “turismo da Revolução”, levando a Portugal o colombiano Gabriel Garcia Márquez, o francês Jean-Paul Sartre e o alemão Heinrich Böll, três vencedores do Prêmio Nobel de literatura. E também Sebastião Salgado, Simone de Beauvoir e muitos outros renomados escritores, jornalistas, fotógrafos e cineastas.

— Foi a época do ‘turismo vermelho’. Havia voos fretados da Europa em rota contínua. Lembro que passei a atuar como uma guia informal, não formada, porque estudei no Liceu Francês e sabia falar outros idiomas. O que eu fazia como Rita, na clandestinidade, passei a fazer em liberdade, ao ar livre — conta a historiadora.

Hoje, Portugal respira os 50 anos do 25 de Abril, o que traz à tona o debate em torno da criação de uma rota turística oficial sobre a Revolução dos Cravos para preservar e promover locais históricos.

— A revolução é pouco explorada em termos turísticos. Se em 1974 muita gente veio conhecer o país que tinha derrubado uma ditadura com uma revolução pacífica, hoje pouco se fala disso para os milhões de turistas que todo ano visitam Lisboa — lamenta Viel: — As iniciativas do poder público são tímidas e mal-feitas. Desafio qualquer pessoa a ir à Praça do Comércio e achar alguma referência, uma placa ou busto, sobre o que aconteceu lá no dia 25 de Abril de 1974. Visitar o quartel da Pontinha, onde foi o Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas, é fazer uma viagem no tempo (e nem todas são boas). Tudo o que está lá parece que foi feito nos anos 80 e nunca mais foi tocado.

Para a historiadora, uma rota dos Cravos seria também uma maneira de rebater o saudosismo fascista que tem ocupado ruas e redes sociais. Principalmente com grupos organizados para idolatrar a figura do ditador António de Oliveira Salazar, que ingressou no governo em 1928, criou o Estado Novo em 1933 e comandou o país com mão de ferro até morrer, em 1970.

— Mesmo com dados que provam como a democracia só fez bem, há quem defenda que na ditadura de Salazar é que era bom. É reflexo de um processo que começou com as eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro e liberou as pessoas da vergonha que tinham de dizer o que pensavam. Em Portugal culminou no partido Chega — diz Pimentel, que também faz um alerta para o simbolismo de ter 50 deputados da ultradireita do Chega eleitos para o Parlamento justamente nos 50 anos da retomada da democracia: — O Parlamento é a principal instituição da democracia e a vontade deles é destruir a democracia.

Uma pesquisa do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e do Instituto Universitário de Lisboa para o semanário “Expresso” e para a rede SIC revelou que 35% dos simpatizantes do Chega dizem que Portugal está pior do que na ditadura. Embora a maioria das pessoas ouvidas acredite que a vida esteja melhor, também considera que a criminalidade e a corrupção pioraram. Outro alerta da pesquisa: 34% preferem ter um líder forte e alçado ao poder sem eleições democráticas.

Em um jantar oferecido na segunda-feira em Lisboa a jornalistas estrangeiros, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que a transição pacífica do 25 de Abril é um orgulho. E ressaltou que a população percebe os benefícios que a democracia trouxe.

— Neste momento, apesar de ainda existirem dois milhões na pobreza, das desigualdades e da falta de coesão territorial, os portugueses sentem que estão vivendo um momento sem sobressaltos econômicos. As ajudas do governo acomodaram a situação social e a sensação é de razoável estabilidade política.

terça-feira, 23 de abril de 2024

O que é, o que é...

Se ele sempre fala de virtude, então é um depravado; fala constantemente de religião, então o é extremamente
Immanuel Kant

A proximidade de uma guerra absurda

Neste momento, considero muito interessante a reflexão do escritor Amin Maalouf no livro recém-lançado no Brasil “O labirinto dos desgarrados, o Ocidente e seus adversários” (Editora Vestígio, 332 páginas). Ele não é cientista político nem estrategista. É um escritor que não só tem coragem de afirmar o absurdo da guerra, como de devolver as qualificações de romântico ou ingênuo atribuídas aos que a consideram inevitável.


Creio que Maalouf, nascido no Líbano e vivendo na França, tem muitas razões para refletir bem sobre o Ocidente. Ele escreveu um livro sobre as Cruzadas mostrando como, nas Cruzadas, os europeus comiam crianças muçulmanas no espeto. Ele conhece também todos os horrores da colonização europeia na África, Ásia e em todos os outros lugares por onde ela se instalou. Mas seu conhecimento da História mostra também que o ódio sistemático ao Ocidente acaba desviando para a barbárie e para a autopunição.

Na comparação entre as duas guerras frias, a que terminou com o fim do Império Soviético e a atual, Maalouf compreende bem que países como Rússia e China, que, de certa forma, encarnavam a revolução no passado, representam hoje o campo do conservadorismo político, social e intelectual. Essa constatação parece não ter chegado à esquerda brasileira, mas isso é apenas um detalhe.

Uma das importantes conclusões do livro é que nem os ocidentais nem seus aliados são capazes de conduzir a humanidade para fora do labirinto em que ela se perdeu. Isso é verdade, pois nenhuma nação detém todas as virtudes e todas as respostas, muito menos o direito de dominar as outras.

Ele pensa que estaríamos realmente perdidos se acreditássemos que a humanidade precisa de uma nação hegemônica para liderá-la. Estaríamos condenados a torcer pelo que nos maltrata menos, tipo de opção que alguns países como o nosso são forçados a adotar no plano da política interna.

A estupidez de uma guerra mundial pode nos destruir. Mas é uma pena, pois temos grandes problemas comuns, como o combate à emergência climática, e grandes possibilidades de progresso por meio da evolução da medicina genética e mesmo da inteligência artificial, se conseguirmos controlar suas consequências. Apesar de parecer ingênuo, é necessário apostar na paz. Claro que, num confronto mundial, o Brasil, com suas raízes históricas e culturais, é um país do Ocidente e deve ficar ao seu lado.

Mas antes de tudo é necessário investir não só na paz regional no Oriente Médio, como em todos os lugares onde houver conflito. Os fundamentos de nossa política externa nos permitem isso. Há, porém, uma brecha entre os fundamentos e a prática, marcada até agora por frases infelizes e uma visão nostálgica da primeira Guerra Fria. A ideia de que existe democracia relativa na Venezuela ou democracia efetiva na China é apenas resultado de uma visão que não encontra nenhuma base no mundo real.

Na verdade, a democracia não é a única forma de governo. Não se pode universalizá-la com adjetivos, muito menos tentar levá-la a outros países na ponta da baioneta como os Estados Unidos fizeram em muitas ocasiões. O grande esforço intelectual do momento é dissecar todos os elementos de conflito no mundo e neutralizá-los.

Maalouf destaca um deles que contribui enormemente para envenenar o clima político. É o vínculo que estabelece entre religião e identidade, sobretudo nos países de tradição monoteísta. Os conflitos identitários que se baseiam em referências divinas acabam envenenando a História humana. Nesse ponto, há um reconhecimento da longevidade de Confúcio: para ele, o que importava era o comportamento do cidadão na cidade, e não suas preferências metafísicas.

Os ianques guardaram de armas na mão as terras que tinham roubado

A Califórnia já pertenceu ao México, e suas terras aos mexicanos; então uma horda de americanos esfarrapados e loucos imundou-a. E tal era a sua fome de terra que eles tomaram, roubaram as terras dos Guerrero, dos Sutter, roubaram e destruíram os respectivos documentos de posse e brigaram entre eles sobre a presa, esses homens esfomeados, raivosos; e guardaram de armas na mão as terras que tinham roubado. Construíram casas e celeiros, revolveram as terras e semearam-nas. E isso era apropriação, e apropriação era propriedade.

Os mexicanos eram fracos e esquivos. Não puderam resistir, porque nada no mundo desejavam com o frenesi com que os americanos desejavam aquelas terras.


Depois, com o tempo, os invasores não mais eram invasores, mas sim donos; e seus filhos cresceram e por sua vez tiveram filhos. E a fome não mais existia entre eles, essa fome animalesca, essa fome corroedora, lacerante pela terra, por água e um céu azul sobre elas, pela verde relva exuberante, pelas raízes tumescentes. Tinham tudo isto, tinham tanto disso tudo que nada mais desejavam. Não mais ambicionavam um hectare produtivo e um arado brilhante para abrir-lhe sulcos, sementes e um moinho a girar as pás ao sol. Não mais acordavam nas madrugadas escuras para ouvir o chilrear sonolento dos primeiros pássaros, ou o vento matinal soprar em torno da casa enquanto aguardavam os primeiros clarões à luz dos quais deveriam rumar para os campos amados. Tudo isso tinha sido esquecido, e as colheitas eram calculadas em dólares, e as terras eram avaliadas em capital mais juros, e as colheitas eram compradas e vendidas antes mesmo que tivessem sido plantadas. Então as colheitas fracassavam, secas e inundações não mais significavam pequenas mortes em meio à vida, mas apenas perda de dinheiro. E todos os seus amores eram medidos a dinheiro, e toda a sua impetuosidade se diluía à medida que seu poder crescia, até que finalmente nem mais eram fazendeiros os meeiros, apenas homens de negócios, pequenos industriais, que tinham de vender antes de ter produzido qualquer coisa. E os fazendeiros que não eram bons negociantes perdiam suas terras para os que eram bons negociantes. Não importava quão trabalhador e diligente um homem era, e o quanto amava a terra e tudo que nela crescia, desde que não fosse também um bom negociante. E com o tempo os bons negociantes apropriavam-se de todas as terras, e as fazendas foram aumentando de tamanho, ao mesmo tempo em que diminuíam em quantidade.

Já aí a agricultura era uma indústria, e os donos das terras seguiam o sistema da Roma antiga, conquanto não o soubessem. Importavam escravos, embora não os chamassem de escravos: chineses, japoneses, mexicanos, filipinos. Eles vivem de arroz e feijão, diziam os negociantes. Não precisam de muita coisa para viver. Nem saberiam o que fazer com bons salários. Ora, veja como eles vivem. E se se tornarem exigentes, a gente os expulsa do país.

E as propriedades cresciam cada vez mais e os proprietários iam simultaneamente diminuindo. E havia poucos fazendeiros pobres nas terras. E os escravos importados passavam fome, eram maltratados e se sentiam apavorados, e alguns regressavam aos lugares de onde tinham vindo, e outros rebelavam-se e eram assassinados ou deportados. E as propriedades cresciam e diminuía a quantidade de proprietários.

E as colheitas tornavam-se diferentes. Árvores frutíferas tomavam o lugar das plantações de grãos, e legumes destinados a alimentar o mundo espraiavam-se pelo chão: alface, couve-flor, alcachofra, batatas — colheitas humilhantes, inferiores. Um homem pode ficar de pé quando trabalha com a foice, o arado, o forcado; mas tem que rastejar por entre os canteiros de alface, tem que curvar-se e arrastar o enorme balaio por entre os algodoeiros, e tem que vergar os joelhos como um penitente para tratar da couve-flor.

E chegou a hora em que os proprietários não mais trabalhavam em suas propriedades. Trabalhavam no papel; esqueciam as terras, o cheiro da terra e a satisfação de cultivá-la; lembravam-se apenas de que elas lhes pertenciam quando estavam calculando o quanto ganhavam ou perdiam nelas. E algumas das propriedades cresciam a ponto de um só homem nem mais poder imaginar o seu tamanho; eram tão grandes que requeriam batalhões de guarda-livros para o cálculo dos lucros ou perdas que proporcionavam; químicos para analisar a qualidade das terras e torná-las mais produtivas; capatazes cuja missão consistia em fazer com que os homens que trabalhavam nas terras o fizessem até o último resquício de sua força física. Então, esses proprietários assim transformavam-se em autênticos donos de armazéns. Pagavam aos homens e vendiam-lhes gêneros alimentícios e assim recuperavam o dinheiro que lhes pagavam. E após algum tempo deixavam absolutamente de pagar aos homens e economizavam a escrituração, os guarda-livros. Os proprietários vendiam alimentos a crédito aos trabalhadores. Um homem podia desse jeito trabalhar e comer; e quando terminava o trabalho verificava simplesmente que ainda devia ao proprietário. E os proprietários não só não trabalhavam nas propriedades, como havia muitos que jamais o tinham.

Então chegaram as multidões de espoliados e assaltaram o Oeste — vinham de Kansas, Oklahoma, Texas, Novo México; de Nevada e Arkansas, famílias e tribos expulsas pela poeira, expulsas pelos tratores. Carros cheios, caravanas de gente sem lar e de esfomeados; vinte mil, cinquenta mil, cem mil, duzentos mil despencavam das montanhas, famintos e inquietos — inquietos qual formigas, famintos de trabalho, de poder suspender, carregar, puxar, arrancar, cortar, colher, fazer de tudo, dar todo o seu esforço por um pouco de comida. Nossos filhos têm fome. Não temos casa pra morar. Inquietos como formigas, atrás de trabalho, de comida e, antes de mais nada, de terra.

A gente não é estrangeiro. Sete gerações de americanos, e antes disso irlandeses, escoceses, ingleses, alemães temos em nosso passado. Um avô nosso fez a revolução, e muitos outros parentes tiveram na Guerra Civil... de ambos os lados. Eram americanos.

Vinham famintos e ferozes, tinham a esperança de encontrar um lar, e só encontraram ódio. Okies... os proprietários odiavam-nos porque sabiam que eram covardes e que os Okies corajosos, e que eram bem nutridos e que os Okies passavam fome. E talvez os proprietários tivessem ouvido seus avós contarem como era fácil a alguém roubar terras a um homem fraco quando esse alguém era feroz e faminto e estava armado. Os proprietários odiavam-nos. E os donos das casas comerciais das cidades odiavam-nos também, pois que eles não tinham dinheiro para gastar. Não há caminho mais curto para se obter o desprezo de um negociante. Os homens das cidades, pequenos banqueiros, odiavam os Okies porque eles nada lhes deixavam ganhar. Eles nada possuíam. E os trabalhadores odiavam os Okies porque um homem esfomeado tem que trabalhar, e quando precisa trabalhar e não tem onde trabalhar, automaticamente trabalha por um salário menor, e aí todos têm que trabalhar por salários menores.

E os espoliados, os imigrantes inundavam a Califórnia, duzentos e cinquenta mil, trezentos mil. Atrás deles, novos tratores marchavam pelas terras, os meeiros que ainda tinham ficado eram também expulsos. Novas ondas estavam a caminho, novas ondas de espoliados e expulsos, de coração endurecido, vorazes e perigosos.

E enquanto os californianos desejavam muitas coisas, acumular riquezas, sucesso social, diversões, luxo e uma curiosa segurança bancária, os novos bárbaros só desejavam duas coisas: terra e comida; para eles as duas coisas se fundiam numa só. E enquanto os desejos dos californianos eram nebulosos, indefinidos, os desejos dos Okies jaziam nos caminhos, eram visíveis e palpáveis: bons campos em que se podia perfurar a terra e achar água, boas terras verdejantes, terras que se podia esmigalhar entre as mãos ao experimentá-las, relva que se podia cheirar, hastes de aveia que se podiam mascar até sentir-lhes o gosto agridoce na garganta. Um homem podia olhar para um campo em pousio e saber logo, sentir logo que suas costas curvadas e seus braços diligentes fariam frutificá-lo, produzir nele a couve, o milho dourado, os rabanetes, as cenouras.
John Steinbeck, "As vinhas da ira"

segunda-feira, 22 de abril de 2024

O fundamentalismo político, agora sob as redes sociais, tem dinamitado a vida em sociedade

O aiatolá Khomeini impressionou o mundo ao derrubar o xá Reza Pahlavi em 1979. Com seu olhar severo, a partir de Paris, comandou a insurreição contra o monarca iraniano (lá mantido pelos americanos). Ao que eu saiba, foi o primeiro a provocar a queda de um regime usando apenas o telefone.

Pahlavi deu trela. Vendia a imagem de bon-vivant, de um governante moderno e ocidental. Espécie de playboy persa, ao lado de sua bela mulher, a rainha Farah Diba, cuja coroa fora assinada pelos joalheiros Van Cleef & Arpels. Era encenação: por trás da imagem, dava guarida a uma corja corrupta.

Na aparência, Khomeini era seu oposto. Sisudo, barbudo e não afeito a luxos terrenos ou à cultura. Depois de anos de exílio na França, voltava ainda mais fanático. Atrás da estampa, havia um religioso sedento por vingança. Não titubeou em mandar matar vários adversários de sua fé e de sua intransigência política. Pela força, levou a laica sociedade iraniana a retroagir à Idade Média, em crenças e desejos.

Uma de suas vítimas mais célebres, o autor anglo-indiano Salman Rushdie, reapareceu na semana passada no coquetel de lançamento de seu novo livro — “Faca”. Era uma festa privada num restaurante de Manhattan, oferecida pela revista on-line Air Mail, onde se reuniu com escritores, editores e jornalistas. Os amigos se impressionaram com sua disposição e bom humor, achando-o elegante num blazer esverdeado e de óculos com uma das lentes totalmente escura. Sua figura agora lembra a do pirata com tapa-olho. Há dois anos, Rushdie sofreu um atentado. Sobreviveu às 12 facadas que perfuraram diversas partes de seu corpo, cortaram seu rosto, além de macularem seu olho direito, que ficou dependurado no rosto “feito um ovo cozido”.

Quem tentou matá-lo atendia a uma fatwa emitida por Khomeini 30 anos atrás. O aiatolá forjou a mentira de que “Os versos satânicos”, obra de Rushdie, vilipendiavam o profeta Maomé. E assim o condenava à morte. Depois de viver anos escondido, o escritor foi alcançado por um chacal numa pequena cidade no upstate de Nova York. “Faca”, um livro de memórias, reconstrói o atentado e sua recuperação. “A obra não traz ódio”, adiantou Rushdie.

Khomeini morreu em 1989, aos 86 anos, no Irã. Rushdie sofreu o atentado em agosto de 2022, nos Estados Unidos, aos 74 anos. A distância no tempo revela a força e o alcance prático de uma mentira política, que no contexto contemporâneo poderíamos chamar de fake news. O aiatolá desejava impor os ditames de sua religião aos alcunhados “ímpios”. Era ainda um leitor iletrado. “Os versos satânicos” são uma obra poética, baseada numa lenda islamita e na própria vida do escritor, dividido entre a tradição persa e muçulmana e a contemporaneidade ocidental.

O uso da religião pela política, entre várias outras mortes, também está presente no massacre dos jornalistas do satírico Charlie Hebdo, na Paris de 2015. Qual Rushdie, alguns dos chargistas assassinados constavam de uma lista divulgada pela Al-Qaeda como alvos a ser abatidos. Sim, eram “ímpios”.

No germe da intolerância, a mentira e a incivilidade. O conceito revolucionário da urbanidade pressupõe o convívio de diferentes crenças, opiniões e gostos. Para a proteção de tal liberdade de escolha, ao final em defesa da própria vida cidadã, a civilização precisou criar regras e leis. Existem avanços e retrocessos, e mesmo os fracassos fornecem sinais. O fundamentalismo político, agora sob as redes sociais, tem dinamitado o arcabouço da vida em sociedade. Busca-se aplicar uma visão da antiga tribo ao cotidiano contemporâneo. Preconceitos e frustrações ajudam a criar clivagens. Mundo afora, o almoço familiar dominical virou um campo de guerra.

O Homo bolsonarus, da mesma cepa do aiatolá, defende a liberdade de expressão enquanto martela nas redes sociais reincidentes mentiras. Assim se enxerga livre para atirar. O novo discurso deles constrói a irrealidade de que o Brasil vive numa ditadura! Falam até numa ditadura judiciária. Os golpistas do 8 de Janeiro difundem o cenário de um Brasil avenezuelado, sem processo legal.

Rushdie não blasfemou contra o profeta Maomé, como Khomeini e os mercenários da Al-Qaeda difundiram em fake news. Nem o Brasil vive numa ditadura ou Lula transformou o país numa Venezuela. Rushdie vive escondido, com medo de ser morto ou perder o olho esquerdo. Mas seu algoz aguarda julgamento numa prisão americana, para mostrar que a vida e a liberdade de expressão são direitos fundamentais do Homo sapiens.

Revolução dos Cravos, 50, foi onda democrática que chegou ao Brasil

Em 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos, movimento liderado por militares e apoiado pela maioria da população civil, pôs fim ao Estado Novo em Portugal, regime ditatorial que vigorou por 41 anos. João Pereira Coutinho comenta os contextos sociais e econômicos que levaram à queda da ditadura, o turbulento processo de democratização nos meses seguintes, os impactos da revolução em países que viviam sob governos autoritários, como o Brasil, e como os portugueses avaliam os últimos 50 anos


Foi bonita a festa, pá? Digo que foi, embora não tenha estado presente. Nasci depois de tudo. Esse tudo, aqui, é o 25 de Abril de 1974, a Revolução dos Cravos, 50 anos atrás. Mas, às vezes, nas minhas horas de ociosidade, pergunto o que teria sido de mim se a sorte me tivesse jogado duas ou três gerações antes de eu nascer, no mesmo país, sob o regime ditatorial de António de Oliveira Salazar (1889-1970) e Marcello Caetano (1906-1980).

Dizer que a minha vida teria sido diferente seria um eufemismo: como escrever livremente em um país com censura prévia e polícia política? A cadeia ou o exílio teriam sido opções possíveis. Ou o silêncio, já agora: nunca devemos subestimar o papel da boa e velha covardia.

O que é válido para a loucura da arte é válido para a loucura da guerra —em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau— que consumiu as gerações anteriores.

Em princípio, minhas maleitas físicas teriam poupado a carcaça a certos terrores. Mas nunca fiando: entre 1961 e 1974, 200 mil rapazes foram mobilizados para as "províncias ultramarinas", com o fino propósito de defender as populações brancas das guerrilhas independentistas (o que se compreende), e por lá continuaram, contra toda a lógica, defendendo o "império" ou uma noção anacrônica de império (o que não se compreende). É muito?

É muitíssimo. Falamos de 2% da população portuguesa, contas por baixo, um número superior, em termos relativos, às tropas que os Estados Unidos enviaram para o Vietnã. Mais de 8.000 não regressaram. Trinta mil regressaram, mas em péssimo estado. Poderia ter sido um deles? A resposta arrepia de tão óbvia.

Como foi óbvia para os "capitães de Abril" quando disseram basta à guerra e, por inerência, ao regime. Um deles era Fernando José Salgueiro Maia (1944-1992), que na madrugada do 25 de Abril de 1974 falou assim aos seus homens, antes de sair com eles para derrubar o Estado Novo: "Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado: os sociais, os corporativos e o estado a que chegamos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegamos".

Não é qualquer um que inaugura uma revolução com essa mistura de clareza e humor. Mas Salgueiro Maia não era qualquer um: no Movimento das Forças Armadas, ele foi o mais corajoso e, deposto o regime, um dos mais recatados também. Morreu jovem e relativamente esquecido. Mas divago.

Estou grato a esses homens. Estou grato aos que vieram depois: derrubar um regime autoritário não é coisa pouca; mas construir uma democracia liberal é tarefa ciclópica.

Entre 1974 e 1975, Portugal oscilou entre radicalismos de sentido oposto: uma tentativa de golpe da extrema direita em março de 1975, uma tentativa de golpe da extrema esquerda em novembro do mesmo ano.

Mas o que importa, para lá dessas contabilidades macabras que continuam a alimentar ressentimentos vários nas franjas da sociedade portuguesa, é olhar para o povo. Falo do povo que realmente existe, não do "povo" como criação mítica de vanguardas revolucionárias que têm o hábito desagradável de falar em seu nome.

Nas primeiras eleições livres, para a Assembleia Constituinte, em 1975, os portugueses votaram. Para quem acompanhava o curso da revolução nas ruas, nas fábricas, nos campos, nos jornais, na televisão, o caminho para o comunismo parecia inexorável. Pelo menos, para quem achava que os portugueses, depois de experimentarem a mais longa ditadura da Europa, estariam dispostos a ter outra, de inspiração soviética.

Quase 92% dos eleitores acorreram às urnas, números que nunca mais se repetiram. Quando os resultados foram divulgados, 68% escolhiam partidos defensores da democracia liberal e do pluralismo político (o PS, o PPD e o CDS, por ordem decrescente).

O Partido Comunista, que se julgava ungido pela história e proprietário do país, ficava em terceiro lugar, com 12,5%. A "legitimidade revolucionária", como então se dizia, sofreu um golpe fatal. Ainda sobreviveu uns meses, na união perversa entre a ala radical do Movimento das Forças Armadas e a extrema esquerda. Ocuparam-se terras, nacionalizaram-se empresas, cometeram-se abusos e violências contra as forças da "reação", ou seja, contra os democratas. Mas o país tinha falado e nunca mais voltou atrás.

Como diria mais tarde o presidente e primeiro-ministro Mário Soares sobre o "verão quente" de 1975: "As praias e os parques de automóveis estavam literalmente a abarrotar. Como é possível, pensei, com esta classe média tão forte, com toda esta gente nas praias, que se venha dar aqui um golpe comunista? Não era". E não foi.

Quando eu nasci, em 1976, a democracia era um fato, ainda que limitada pela tutela dos militares (até à primeira revisão constitucional de 1982). A entrada na Comunidade Econômica Europeia, em 1986, passou a ser o horizonte de um país que só queria uma vida normal.

Tive direito a uma vida normal: educação pública até a universidade, fronteiras abertas para viajar pela Europa durante toda adolescência e a liberdade para escrever e publicar por minha conta e risco.

Quando fui a tribunal por abuso de liberdade de imprensa, pouco depois dos 18 anos, não foi a Pide/DGS, a polícia política do regime salazarista, que me foi buscar a casa. Caminhei para a sala de audiências pelo meu próprio pé, conhecendo os meus direitos e deveres.

E por falar em pé: foi ele que me salvou quando compareci à inspeção para cumprir o serviço militar obrigatório, só abolido no século 21. Fui dado como "inapto". Nunca estive nas antigas províncias ultramarinas, muito obrigado.

Foi bonita a festa, pá? O cientista político Samuel Huntington não tem dúvidas: foi belíssima. Nas primeiras linhas do clássico "The Third Wave: Democratization in the Late 20th Century" (a terceira onda: democratização no final do século 20), escreve Huntington: "A terceira vaga de democratização no mundo moderno começou, implausível e involuntariamente, 25 minutos depois da meia-noite, quinta-feira, 25 de abril de 1974, em Lisboa, Portugal, quando uma estação de rádio tocou a canção 'Grândola Vila Morena'".

Explico melhor. Na obra de Huntington, a democracia na era contemporânea é como as ondas do mar, avançando e recuando em momentos históricos particulares. E arrastando consigo outros países, por influência ou exemplo.

A primeira vaga aconteceu entre 1828 e 1926 e tem as suas raízes na Revolução Francesa e no alargamento do direito de voto nos Estados Unidos (aos homens brancos, claro).

A sua contravaga surgiria em 1922, com a infame marcha dos fascistas sobre Roma, contaminando Portugal (em 1926), a Espanha (em 1936), sem falar da Alemanha (em 1933, o caso mais catastrófico de todos).

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, uma segunda vaga se espraiou na Europa, na Ásia, na América Latina, pelo menos até 1962. Da Alemanha à Itália, da Áustria ao Japão, a democracia firmou-se nesses países até então relapsos.

A segunda contravaga terá começado em 1958 e durado até 1962. A América Latina foi a "loca infecta" dessa regressão, com o Brasil (1964), a Argentina (1966), o Equador (1972), o Chile e o Uruguai (1973) a serem tomados pelo autoritarismo.

Aquela manhã fria em Lisboa inaugurou a reversão da reversão. Para ficarmos uma vez na América Latina, a democracia retornou ao Equador (1979), ao Peru (1980), à Bolívia (1982) e ao Brasil (1985).

Por outras palavras: o pedigree internacional da Revolução dos Cravos é reconhecido e aplaudido. Sua influência benigna também. Mas nos momentos de festa há sempre vozes de desânimo que olham para a data e lamentam o que ela significa.

Alguns têm razões para isso: falo dos extremos, cada vez mais minoritários, que lamentam o fim da ditadura —ou, em alternativa, o fato de Portugal não ter inaugurado outra.

Mas eu não falo dos casos extremos. Falo até de moderados que persistem em projetar na democracia o que ela não pode comportar. Democracia é igualdade, para uns. É riqueza, para outros. É reconhecimento, justiça, fraternidade. Citando o título do filme, é tudo em todo lugar ao mesmo tempo. Se a perfeição não foi atingida em cada um desses valores, a democracia falhou.

sociólogo Ralf Dahrendorf, ao confrontar-se com as revoluções de 1990 que libertaram o Leste Europeu do comunismo, já tinha detectado esse problema eterno. Se a revolução é o momento em que o povo faz amor com a história (obrigado, Sartre), há quem não tolere a rotina conjugal que se instala quando a febre passa. As expetativas extravagantes dão lugar ao desencanto quando a utopia teima em não chegar.

Mas a utopia nunca chega, afirmava Dahrendorf. Se a revolução enterra a ditadura e se a democracia enterra a revolução, permitindo a partir daí remover maus governos sem derramamento de sangue, ambas já terão cumprido o seu papel.

Tal como o 25 de Abril cumpriu o dele: o Estado Novo terminou em 1974, praticamente sem resistência, e ninguém suspira por ele, muito menos com a sua restauração. Além disso, se a democracia é o arranjo possível para remover governos através de eleições limpas e livres, convém procurar o que falta ao país noutros lugares, não nas urnas que sempre funcionaram sem engulhos.

Falta muito, admito, mesmo sabendo que o país de 2024 é irreconhecível aos olhos de 1974. Em qualquer indicador relevante —educação, saúde, bem-estar, proteção social, emancipação feminina etc.—, existe um abismo entre esses dois mundos.

Mas nem tudo é perfeito. O fraco crescimento econômico, os baixos salários, a dívida pública (beirando os 100% do PIB), a taxa elevada de pobreza e de desigualdade em comparação com os nossos parceiros europeus —tudo isso é motivo de desânimo. A fraca participação política e a erosão na confiança das instituições democráticas são a expressão disso.

Desânimo, no entanto, não significa desistência. Significativamente, o Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa realizou um estudo intitulado "50 anos de democracia em Portugal: mudanças e continuidades geracionais". O objetivo dos pesquisadores é permitir que sejam os portugueses a fazer um balanço do regime, sem os habituais mandarins que, repito, gostam de falar em seu nome.

Os resultados não me surpreendem. A esmagadora maioria (69%) tem uma opinião mais positiva que negativa da revolução; 24% ficam em cima do muro; 7% têm uma opinião mais negativa que positiva. Mas é entre os mais jovens, de 16 a 34 anos, que o 25 de Abril é acolhido com entusiasmo: 73% aplaudem a data (só 6% a recusam).

Moral da história?

Em 1975, chamados às urnas, os portugueses mostraram mais clarividência que as vanguardas terceiro-mundistas que os desejavam pastorear. Cinquenta anos depois, nada mudou: o gosto pela liberdade é um hábito que não se perde.

Nestas matérias, convém lembrar o verso da canção "Grândola Vila Morena", que pôs em marcha o fim da ditadura. "O povo é quem mais ordena"?

Precisamente.

 João Pereira Coutinho 

Pensamento do Dia

 


Agentes estrangeiros infiltrados na democracia brasileira

Não passa um dia sem que a agitação extremista antidemocrática deixe de comparecer à pauta da nossa paciência, como entrelinha invasora das informações e debates sobre os acontecimentos significativos da vida cotidiana das pessoas comuns. Os resíduos do golpe de Estado de 1964 ainda conspiram contra a democracia e os direitos sociais. Indicam-no evidências, como as de 8 de janeiro de 2023, de tratamento do povo brasileiro como um povo carneiril.

De tanto repetir-se, a agitação subversiva contra as instituições se naturaliza pela teimosia de sua reiteração. A sociedade brasileira vai ficando sem alternativas para situar o que de fato é relevante e o que é irrelevante na vida do país. Sobretudo o que é intencionalmente produzido para deturpar e minimizar o nosso penoso retorno à ordem.

Os mais desprovidos de discernimento e mais vulneráveis à manipulação ideológica e autoritária vão sendo induzidos a aceitar a banalização de nossa identidade de povo que a duras penas se formou numa história social de adversidades e desafios.

A ação antidemocrática basicamente nos indica um consistente ativismo para desmobilizar a vigilância crítica dos partidários da democracia e dos que se recusam a ser tratados como tolos e politicamente imaturos.


Agitadores e suspeitos de autoria e promoção da baderna, no entanto, têm sido contidos pela vitalidade das instituições e do protagonismo cívico dos defensores da Constituição e das leis. Os cansativos atores do circo da ilegalidade querem convencer os expectadores, no entanto, de que são vítimas de uma ditadura de esquerda.

A temida democracia que, ao enquadrá-los na lei, estaria se opondo ao anarcoliberalismo e à liberdade de alguns de tramarem contra o direito de todos. Associaram-se a agitadores internacionais que defendem como legitimamente democrática a difusão de valores negativos e princípios reacionários, antissociais e nazistas, caso da proclamação do direito ao ódio.

Estão em peregrinação por diferentes cantos do mundo para denunciar o governo brasileiro como uma ditadura de esquerda que lhes tolhe o direito de expressar, defender e praticar sua opção supostamente conservadora pelo ódio, pela tirania, pelo autoritarismo e pela morte, como se viu no modo criminoso e irresponsável de lidar com a pandemia.

Na verdade, nem os bolsonaristas, nem os seus simpatizantes e cúmplices, civis, religiosos e militares, são conservadores. Eles não têm o menor conhecimento do que é isso. São reacionários de forte inclinação fascista, despistados, vítimas não das instituições, mas de si mesmos e dos seus mentores e manipuladores.

O Brasil já conheceu, no Império, a grande tradição conservadora, no equilibrado balanço de gestão política alternativa do país pelos conservadores e liberais. Os liberais propondo inovações políticas e sociais e os conservadores realizando-as no marco do consenso negociado, como observou Euclides da Cunha na aguda compreensão que desenvolveu a respeito da realidade brasileira.

Entre nós esse balanço se expressou na ação política e econômica de grandes figuras como a de Antonio da Silva Prado, de família de grandes empresários originada no século XVIII. Ele foi o grande arquiteto da abolição da escravatura, cujo humanismo convergia com o de Joaquim Nabuco, quem melhor viu a extensão dos danos antissociais da escravidão relacionados com seus danos econômicos. Os fundamentos do atraso brasileiro, que residualmente persistem em anomalias como a onda autoritária do presente e o anticapitalismo da direita.

Um dos episódios desse delírio foi o da manifestação de bilionário sul-africano, empresário, dono de conhecida rede social, que, contrariado na sua insólita economia da manipulação das necessidades ideológicas dos toscos e irresponsáveis, prometeu desobedecer as ações e normas emanadas do TSE e do ministro Alexandre de Moraes. Com o reforço do presidente argentino, que, na falta de problemas em seu país, dispôs-se a colaborar com o empresário sul-africano no “conflito” com o STF.

O embaralhamento de temas irrelevantes com temas fundamentais da cidadania tem permitido aqui sobrerrepresentação de agitadores no Congresso. Base política de ações contra a ordem convencionada na Constituição de 1988. Como a dos que foram, sem êxito, à Câmara dos Deputados dos EUA pleitear medidas contra o Brasil por ser o nosso país suposta ditadura de esquerda. À custa do dinheiro público, esses grupos estão na Europa pleiteando o seu reconhecimento como vítimas dessa ditadura.

Atuam como agentes estrangeiros infiltrados na democracia brasileira, para defender um liberalismo superficial e interesseiro, contrário ao nosso direito de povo livre e soberano.

Tudo o que tange a Palestina é historicamente difícil

Não é preciso ser um Voltaire para definir a História como o estudo de todos os crimes do mundo — a começar pelas guerras. Numa segunda categoria desses crimes, mais silenciosos, mas igualmente ruinosos, está deixar passar oportunidades capazes de mudar a História para melhor. Nesta semana, sob instrução do democrata Joe Biden, 46º presidente dos Estados Unidos, seu vice-embaixador junto à ONU desempenhou o melancólico papel de vetar a admissão da Palestina como membro pleno das Nações Unidas. Apesar de esperado, o veto solitário (Grã-Bretanha e Suíça se abstiveram, os outros 12 integrantes do Conselho de Segurança aprovaram a moção) pode ser considerado uma dessas oportunidades perdidas.


Caso não tivesse sofrido veto, a resolução passaria à votação na Assembleia Geral, com aprovação certamente maior que o mínimo necessário de dois terços dos 193 países. Hoje, 140 das nações da ONU já reconhecem a Palestina como Estado. Um acolhimento pleno com direito a voto e assento rotativo no Conselho de Segurança representaria um upgrade simbólico e político (mas não legal, claro) para o país que ainda não é país. Continuará, assim, sendo “não membro com status de observador”. Autoproclamado Estado independente desde 1988, apesar de não ter soberania sobre seus territórios ocupados até hoje por Israel, a Palestina, de que a Faixa de Gaza faz parte, continua a ser este imenso encontro marcado e sempre adiado do mundo democrático com a História.

Ao justificar o veto dos Estados Unidos, o vice-embaixador Robert Wood cometeu contorcionismos verbais para explicar que o veto contra a admissão do Estado Palestino na ONU não refletia oposição ao Estado Palestino. Difícil de entender. Soube-se também que, para evitar ser a única voz dissonante da votação, os americanos se empenharam em tentar aliciar outros integrantes do colegiado. Cópias de memorandos do Departamento de Estado obtidas pelo site The Intercept atestam a pressão exercida sobre o Equador para que convencesse os embaixadores de Japão, Coreia do Sul e Malta (país que preside os trabalhos do Conselho neste mês) a se alinhar aos Estados Unidos. Não deu certo.

Como pano de fundo, havia a emergência de uma guerra entre Israel e seu inimigo existencial, o Irã. As duas fortalezas militares jamais haviam se confrontado mano a mano, preferindo acertar suas contas por meio de atentados terroristas, ataques cibernéticos, assassinatos e agentes intermediários. Na madrugada do sábado anterior, porém, a chuvarada de mais de 300 drones e mísseis iranianos que incandesceu o céu de Jerusalém e se espraiou por todo o território israelense alterara essa realidade... Ainda assim, foi uma resposta anunciada com antecedência aos atores-chave da região e calibrada para poder ser interceptada por Israel e seus aliados. Todos puderam se dar por satisfeitos e declarar vitória. Seis dias depois, o inevitável revide israelense revelou-se ainda mais contido, mais cirúrgico — um ataque de drones atingiu a base militar de Isfahan na sexta-feira, sem que a instalação nuclear iraniana ali fincada fosse atingida. Atendeu à pressão de seu principal aliado, os Estados Unidos, e de coadjuvantes, tanto europeus como árabes, para baixar a pressão.

Fica a pergunta: em troca de que os radicais do governo Netanyahu aceitaram comedimento contra o Irã? A moeda de troca talvez seja Rafah. Na próxima terça-feira, terão transcorrido 200 dias desde a chacina terrorista do Hamas contra civis israelenses. A retaliação desencadeada pelas Forças de Defesa de Israel — eliminação radical do Hamas, mesmo que ao custo da asfixia da vida civil na Faixa de Gaza — ainda não está completa. Falta limpar Rafah, a cidade-refúgio do Sul onde mais de 1 milhão de palestinos desenraizados do Norte se somam aos famintos locais e onde o emaranhado de túneis usados pelos terroristas ainda não foi implodido. Em 200 dias de operação terra-arrasada, 133 reféns israelenses (vivos ou mortos) continuam em mãos do Hamas devido ao estancamento das negociações por um cessar-fogo. Para o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, a contenção contra o Irã pode ter valido a pena se conseguir convencer Biden da necessidade de estrangular Rafah — condicional à remoção prévia daquela multidão sem rumo. Difícil.

Tudo o que tange a Palestina é historicamente difícil. O próprio New York Times, jornalão de referência para boa parte do mundo, atualiza constantemente as orientações sobre os termos a ser usados por jornalistas do matutino que cobrem o conflito. Segundo um memorando interno obtido por Jeremy Scahill, cofundador do Intercept, é recomendada a restrição ao uso de termos como “genocídio” e “limpeza étnica”; a denominação “territórios ocupados”, em referência às terras palestinas da Cisjordânia, Gaza e parte de Jerusalém, deve ser evitada. “Palavras como matança, massacre, carnificina muitas vezes contêm mais emoção do que informação. Pensem muito antes de usá-las como sendo suas”, sugere também o memorando. Difícil.

Barco à deriva

Os europeus enriquecem com as riquezas da África. Para isso, precisam que o continente se mantenha pobre, dividido e mal governado. Depois, os africanos migram para a Europa, fugindo da miséria. Triste mundo. A Humanidade é um barco à deriva
José Eduardo Agualusa

O espectro da guerra civil: Para onde a polarização exacerbada pode nos levar

Uma pesquisa do instituto YouGov para a revista britânica The Economist em 2022 mostrou que 14% dos americanos consideram “muito provável” e 29% consideram “um pouco provável” que os Estados Unidos enfrentem uma guerra civil na próxima década. Sessenta e seis por cento dos entrevistados acreditam que, depois do 6 de janeiro de 2021 (quando houve a invasão do Congresso americano), o país ficou ainda “mais dividido”, e 65% creem que a violência política “aumentou”. No Brasil, a situação não é muito diferente.

Levantamento do instituto Quaest, publicado aqui no GLOBO, mostrou, na véspera das eleições de 2022, que 12% dos brasileiros consideravam “muito justificado” e 9% “um pouco justificado” o uso de violência se o outro lado vencesse as eleições. Três meses e meio depois, tivemos o 8 de Janeiro. É num futuro próximo, derivado dessas tensões políticas, que se passa o novo filme de Alex Garland, “Guerra civil”, que entrou em cartaz neste fim de semana.

O filme é uma distopia realista sobre os Estados Unidos destruídos por uma guerra civil sangrenta. Um grupo de quatro jornalistas que trabalham para a agência Reuters e o jornal The New York Times viaja de carro de Nova York à capital Washington para tentar entrevistar o presidente antes que forças rebeldes cerquem a cidade e tomem o poder. Numa espécie de roadmovie de terror, os quatro passam por estradas tomadas por carros abandonados, um estádio convertido em centro de acolhimento, um posto de gasolina controlado por justiceiros e cidades ocupadas por guerrilheiros e milicianos.

O filme filia-se a uma tradição de perturbadores filmes antiguerra, como “Apocalypse now” (1979), “Platoon” (1986), “Nascido para matar” (1987) e “Guerra ao terror” (2008). Da diretora Kathryn Bigelow, de “Guerra ao terror”, incorpora uma estética ultrarrealista, próxima à de um documentário, que provoca calafrios ao ser encenada em locações conhecidas nos Estados Unidos. De Francis Ford Coppola, Garland faz uma citação direta numa das cenas finais de batalha, que remete à famosa cena da dança dos helicópteros de “Apocalypse now”. Ao produzir essas cenas ultrarrealistas de batalha que nos relembram a crueza da guerra, Garland quer fazer um alerta: a consequência lógica do aprofundamento da polarização política é a violência, a guerra civil fratricida entre compatriotas que não mais se aceitam.

Essa mensagem política do filme, porém, tem sido muito debatida. Garland optou por embaralhar as referências políticas em seus Estados Unidos distópicos. O presidente do filme está no terceiro mandato (quando a Constituição só autoriza dois), e descobrimos que fechou o FBI e bombardeou civis, mas não sabemos se é republicano ou democrata. Contra ele, forma-se uma coalizão de dois estados que também têm orientação política desconhecida reunindo Texas e Califórnia, hoje marcados pela orientação política oposta — a Califórnia de esquerda e o Texas de direita. Diálogos esparsos dos personagens não dão pistas dos motivos da divisão política, e ela não parece ser a fratura que divide hoje republicanos conservadores e democratas progressistas. Nas cenas de batalha, nunca sabemos bem com que lado os agentes armados estão colaborando. É como se o filme nos dissesse que isso não importa.

Em entrevistas, Garland tem defendido sua abordagem que impede o público de se reconhecer e se alinhar com um dos lados da disputa. Críticos do filme têm chamado o resultado de “bobo” e “superficial” ao evitar enfrentar os temas reais que nos dividem. A resenha no jornal The Wall Street Journal chamou o filme de “carnificina sem causa”. Outra, na revista The New Yorker, afirma que Garland “se perdeu numa névoa não partidária”.

Garland, porém, evitou perder espectadores discutindo as causas do conflito e preferiu, ao contrário, mostrar aos dois lados para onde a polarização exacerbada pode nos levar. Seu filme não é uma reflexão sobre os temas dos nossos conflitos políticos, é uma reflexão sobre a maneira como levamos esses conflitos. É um filme que nos lembra que a violência — consequência lógica da polarização crescente — é a própria falência do espírito humano.

Ressurreição dos mortos

Tudo aconteceu depois que se viu a jovem levando o tio – talvez já morto – para conseguir empréstimo. Viralizou, provocou efeito cascata. Acendeu uma luz em cada cabeça. Levar parentes queridos aos bancos para cavar um auxílio usando a malandragem brasileira. Em um átimo estavam caçando parentes. Tem tosse? Vem comigo? Disenteria? Refluxo? Urina solta? Flatulência? Redes sociais funcionaram. Maioria dos políticos não se importou, vive de emendas parlamentares, rachadinhas.


Assim, desde o show da Taylor Swift não se tinha visto tanta ansiedade, desespero, congestionamentos, desmaios, enfartes. Semáforos no amarelo, trombadas, cruzamentos fechados, situação de guerra civil nas imediações de agências bancárias. A Faria Lima e a Bolsa alucinadas. Parentes iam aos advogados exigindo recuperação financeira com solicitações do dinheiro bloqueado pelo Collor, exigindo revisão de vida na Previdência, fim dos juros nos cartões, baixa da Selic nos juros. Parte lamuriava, inconsolável: não tenho nenhum morto querido nesta cidade. Cemitérios foram saqueados, covas abertas, vinham esqueletos de décadas, pedaços de braço com a mãos empunhando canetas, prontas para assinar. Circo de horrores.

Todos procuravam um meio de chegar a um posto, se inscrever, pegar o que desse, levando seu ente querido nos braços, nas costas, em carrinhos de mão. Muitos se remoíam, parentes que poderiam render estavam mortos. Foram pedidas exumações. Buzinação, sirenes, carros de som, ambulâncias paralisadas, portas de aço baixadas. Filas gigantescas levando parentes para assinar com uma caneta amarrada na mão. Todos aos gritos: estou aqui há quatro semanas, sabe se chamaram minha senha? Há quantos meses o senhor espera? Você pagou para passar à frente? Já tem mercado paralelo? Na terceira semana, estava o País imobilizado. E as filas empurradas pelos parentes. Apareceram vendedores de água, refrigerantes, sanduíches, sucos. Começaram a se engalfinhar, socos, facas, polícia chegava (sem câmeras, claro) e tentava empurrar a massa. Para onde? Não havia em nenhum ponto do País, um só espaço. Gente desmaiava, pisoteada.

Lamentos, choros, desesperos, cabelos arrancados, “meu tiozinho, minha madrinha, minha amante!”. “Me deem o dinheiro, eles estão prontos para assinar.” Gasolina faltou em todos os postos. Há meses, acampados esperam sua senha ser chamada. O País está paralisado, há falta de água, comida, energia elétrica, gasolina, carne, inteligência artificial. Todos esperam pela ressurreição dos mortos pra levá-los aos bancos. E o Lira e o Pacheco rindo à socapa.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Pensamento do Dia

 


Atacar crime organizado é estratégico

A relação do crime organizado com o Estado brasileiro se tornou um tema estratégico para o presente e o futuro do país. A prisão dos mandantes da morte de Marielle, a fuga de dois membros do Comando Vermelho de presídio federal de segurança máxima e a investigação sobre os tentáculos do PCC na administração pública em São Paulo revelam que as facções criminosas só são fortes porque seu negócio, o crime, está cada vez mais interligado com ação ou inação do aparelho estatal. Essa deveria ser a agenda prioritária da segurança pública do país, em vez de projetos aporofóbicos e sem embasamento em evidências, como a “Lei da Saidinha” e a PEC sobre as drogas.

É estarrecedor como os políticos e parcela da sociedade compraram um modelo demagógico para combater a criminalidade e a sensação crescente de insegurança. Há uma miopia enorme que gera decisões que, ao fim e ao cabo, somente vão fortalecer o crime organizado. Fim da “saidinha” e criminalização da posse e porte de drogas em qualquer quantidade terão como principal resultado o crescimento da população prisional, especialmente de pessoas pobres e negras. Isso só fortalece ainda mais as facções criminosas, que precisam de um exército de gente sem direitos nem esperança, produzindo assim uma máquina do crime cada vez mais poderosa.


O foco não deveria ser leis penais mais rígidas desenhadas para atingir basicamente os mais pobres. Da classe média para cima ninguém será preso por porte de drogas. Basta visitar as festas de jovens abastados ou da alta sociedade paulistana, carioca ou brasiliense para saber como o ilícito usado por seus participantes é invisível para as forças policiais. Assim, a descriminalização mais importante a ser discutida no país é a da pobreza.

Tampouco o endurecimento da ação policial resolverá a questão da criminalidade. A polícia paulista matou a torto e a direito a população vulnerável da Baixada Santista, e o PCC continua exportando suas drogas pelo porto de Santos. A política do “bandido bom é bandido morto” defendida pelo secretário Derrite não reduziu os crimes contra o patrimônio que ocorrem em São Paulo, que cresceram até no icônico bairro de Higienópolis. Há clamores morais em prol do punitivismo e da mão forte - muitas vezes ilegal - das polícias. Mas, ao final, produz-se incompetência em acabar com as raízes da criminalidade e imoralidade de ampliar o fosso da desigualdade.

Estrategicamente, só há uma saída para reduzir o peso da criminalidade sobre a sociedade brasileira: criar um projeto estrutural e de longo prazo para combater o crime organizado, que é capaz de afetar negativamente, e de forma ampla, o exercício da cidadania, a qualidade da democracia e o desenvolvimento econômico sustentável do país. Tudo isso acontece porque o Estado foi atingido em cheio por esse fenômeno.

Há duas formas de intromissão do crime organizado na atividade estatal: enfraquecendo as políticas públicas e gerando um relacionamento promíscuo com a política. Atuando nos dois campos, as facções criminosas reduzem a capacidade governamental de enfrentá-las. De um lado, amedrontando ou aliciando pessoas para servir ou comprar serviços de suas organizações e, de outro, corrompendo policiais e políticos para garantir salvo-conduto na prática diária de seus crimes.

Mais especificamente, o crime organizado afeta as políticas públicas de quatro modos. O primeiro é interferindo na provisão de serviços básicos à população, como fazem as milícias no Rio de Janeiro, prática que está se expandindo para várias partes do país. Em determinados territórios, o Estado e/ou concessionárias estão perdendo a batalha para as facções. Esses grupos mafiosos amedrontam a população para que ela seja obrigada a gastar boa parte de sua renda para pagar fornecedores ilegais de internet, água, gás, energia elétrica e tudo o que for possível de extorquir dos mais pobres. Cidadãos de áreas periféricas têm seus direitos vilipendiados sem que nenhuma força republicana consiga estancar essa enorme violência.

O segundo modo realiza-se pelo fortalecimento de atividades econômicas ilícitas para alavancar mais riqueza e, sobretudo, lavar dinheiro. O crime organizado é uma máquina de fazer negócios ilegais travestidos de legalidade. Mais uma vez as políticas públicas estão perdendo a batalha. Neste caso, estão sendo ineficazes para garantir e estimular o crescimento das empresas e do empreendedorismo sobre bases concorrenciais justas. O quanto o crime organizado está infiltrado do pequeno ao grande negócio no Brasil? Ninguém sabe o tamanho exato, mas quando facções dominam empresas de ônibus que ganham bilhões de subsídios da Prefeitura de São Paulo ou então se expandem em diversas atividades econômicas do mundo virtual, o sinal é assustador para o capitalismo brasileiro.

As políticas públicas têm um terceiro front de fragilidade frente ao crime organizado: a questão socioambiental. O Brasil tem nesse tema um dos seus ativos econômicos e geopolíticos mais importantes. Porém, atividades ilícitas extremamente violentas, como o tráfico de drogas, o garimpo ilegal e o desmatamento, são um empecilho gigantesco, se não o maior, a uma boa política ambiental. Mas não é só a natureza que sofre aqui. A população desses locais degradados por facções criminosas é refém de uma lógica equivocada de desenvolvimento, e enquanto o crime organizado dominar o pedaço, dificilmente haverá apoio a modelos mais sustentáveis.

O ciclo de impactos do crime organizado nas políticas públicas completa-se com um quarto elemento, o mais diretamente ligado a esse processo. As facções são o principal veículo da violência e insegurança que assolam o Brasil. Há crimes individualizados ou cometidos por pequenos grupos autônomos, mas isso é bem residual no conjunto do fenômeno. Obviamente que a organização cada vez mais efetiva dessas máfias, sua capacidade em adquirir armas e usá-las, a força que têm nas prisões, além dos negócios cada vez mais rentáveis, são aspectos que ampliam o seu poder.

Esse poderio, no entanto, só foi consolidado porque parcela das forças policiais foi conquistada pela corrupção. Assim, é cada vez mais difícil, em certos territórios, saber quem é polícia e quem é bandido, para lembrar da dicotomia básica que aprendi na rua quando cresci na periferia de São Paulo. Vale reforçar que policiais não só são comprados, como também estabelecem “tributos” para pagamento dos criminosos - o “arrego” no Rio de Janeiro e a “recolha” em São Paulo.

O impacto sobre as políticas públicas ampliou-se demais nos últimos anos por uma razão mais perversa: a entrada do crime organizado na política brasileira. Os recentes episódios envolvendo a morte de Marielle e as prisões de empresários e políticos envolvidos com o PCC mostram que essa temática poderá ter nos próximos anos o mesmo lugar central na agenda pública que teve a Operação Lava-Jato na década passada. Mesmo tendo cometido uma série de erros e ilegalidades, todas para favorecer politicamente agentes do sistema de Justiça, a Lava-Jato teve como maior legado a mudança na forma de financiamento eleitoral baseada nas trocas de dinheiro privado por benefícios públicos.

Há um novo cenário hoje: o crime organizado, junto com o golpismo de lideranças bolsonaristas, constitui um grande risco à democracia brasileira. No início, esse fenômeno se circunscrevia a algumas elites políticas locais e estaduais, especialmente no Rio de Janeiro, onde políticos apoiaram as milícias em nome da ordem - gente do bolsonarismo faz parte dessa história. A capacidade de se infiltrar na política cresceu vertiginosamente nos últimos anos, inclusive substituindo com dinheiro ilícito parte do financiamento privado que a classe política detinha no passado.

Vencer o crime organizado vai exigir um grande esforço nacional, um dos maiores de nossa história. Tal como ocorreu na maior frente ampla da política brasileira, que há 40 anos, completados nesta semana, organizou a campanha das Diretas Já para acabar com a ditadura militar. Líderes sociais, empresariais, religiosos e políticos vão ter de atuar conjuntamente e publicamente gritar contra o crime organizado. Para tanto, será necessário mudar estruturalmente a política de segurança pública, o que só será possível implementando efetivamente, e não com medidas fragmentadas e esporádicas, o Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP, um modelo que pode integrar o governo federal aos estados por meio de pactos institucionalizados e de longo prazo.

Como lembra Renato Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a profissionalização e a adoção de modelos de gestão consistentes, como em boa medida ocorreu no SUS, são fundamentais para que a cooperação federativa na segurança pública não seja mero discurso. Por essa linha, abandona-se o discurso demagógico que tem alimentado a discussão no Congresso Nacional. A saída para combater o crime organizado não é acabar com a “saidinha”, mas sim, um pacto amplo em torno de um SUSP efetivo. A pergunta incômoda é saber se a sociedade, policiais e políticos estão preparados para assumir essa bandeira. O medo maior é que parte do problema esteja no fato de que haja mais gente importante ligada às facções criminosas do que imaginaríamos nos nossos piores sonhos.

Computando a felicidade

Até agora, discutimos a felicidade como se esta fosse, em grande medida, produto de fatores materiais, como saúde, dieta e riqueza. Se as pessoas são mais ricas e mais saudáveis, também devem ser mais felizes. Mas isso é mesmo assim tão óbvio? Filósofos, padres e poetas refletiram sobre a natureza da felicidade durante milênios, e muitos concluíram que fatores sociais, éticos e espirituais têm tanta influência sobre nossa felicidade quanto as condições materiais. E se as pessoas nas sociedades afluentes modernas sofrem muitíssimo de alienação e carência de sentido, apesar de sua prosperidade? E se nossos ancestrais menos abastados encontravam grande contentamento na comunidade, na religião e em um vínculo com a natureza?


Nas últimas décadas, psicólogos e biólogos aceitaram o desafio de estudar cientificamente o que de fato deixa as pessoas felizes. É o dinheiro, a família, a genética ou, talvez, a moral? O primeiro passo é definir o que será medido. A definição geralmente aceita de felicidade é “bem-estar subjetivo”. A felicidade, de acordo com essa visão, é algo que sinto dentro de mim, uma sensação de prazer imediato ou de contentamento no longo prazo com o modo como minha vida avança. Se é algo sentido do lado de dentro, como pode ser medido de fora? Supostamente, podemos fazer isso pedindo que as pessoas nos digam como se sentem. Desse modo, os psicólogos e biólogos que desejam avaliar o quanto as pessoas se sentem felizes lhes dão questionários para responder e computam os resultados.

Um típico questionário sobre bem-estar subjetivo pede aos entrevistados para avaliarem em uma escala de zero a dez o quanto concordam com afirmações do tipo “Sinto-me satisfeito com minha forma de ser”, “Sinto que a vida é muito satisfatória”, “Sou otimista com relação ao futuro” e “A vida é boa”. O pesquisador, então, soma todas as respostas e calcula o nível geral de bem-estar subjetivo do entrevistado.

Tais questionários são usados para correlacionar a felicidade com vários fatores objetivos. Um estudo pode comparar mil pessoas que ganham 100 mil dólares por ano com mil pessoas que ganham 50 mil dólares por ano. Se o estudo descobrir que o primeiro grupo tem um nível médio de bem-estar subjetivo de 8,7, ao passo que o segundo grupo tem um nível médio de apenas 7,3, o pesquisador pode concluir, de maneira razoável, que há uma correlação positiva entre riqueza e bem-estar subjetivo. Dito de forma simples, dinheiro traz felicidade. O mesmo método pode ser usado para examinar se pessoas vivendo em democracias são mais felizes que pessoas vivendo em ditaduras e se os casados são mais felizes que os solteiros, divorciados ou viúvos.

Isso fornece uma base para os historiadores, que podem examinar a riqueza, a liberdade política e os índices de divórcio no passado. Se as pessoas são mais felizes em democracias e as pessoas casadas são mais felizes que as divorciadas, um historiador tem uma base para argumentar que o processo de democratização das últimas décadas contribuiu para a felicidade da humanidade, ao passo que os índices crescentes de divórcio indicam uma tendência oposta.

Essa maneira de pensar não é isenta de falhas, mas, antes de apontar algumas delas, vale considerar suas descobertas.

Uma conclusão interessante é que, de fato, o dinheiro traz felicidade. Mas só até certo ponto, e além desse ponto tem pouca significância. Para as pessoas presas na base da pirâmide econômica, mais dinheiro significa mais felicidade. Se você é uma mãe solteira brasileira que ganha 12 mil reais por ano limpando casas e de repente ganha 500 mil reais na loteria, provavelmente sentirá um aumento significativo e duradouro em seu bem-estar subjetivo. Conseguirá alimentar e vestir seus filhos sem se afundar ainda mais em dívidas. No entanto, se você é um alto executivo que ganha 250 mil reais por ano e de repente ganha 1 milhão de reais na loteria, ou se a diretoria de sua empresa de repente decide dobrar seu salário, é provável que seu aumento no bem-estar subjetivo dure apenas algumas semanas. De acordo com descobertas empíricas, é quase certo que não fará uma grande diferença no modo como você se sente no longo prazo. Você comprará um carro mais pomposo, se mudará para uma casa suntuosa, se acostumará a comer coisas mais sofisticadas e a tomar os melhores vinhos, mas logo tudo isso parecerá rotineiro e nada excepcional.

Outra descoberta interessante é que a doença diminui a felicidade no curto prazo, mas só é fonte de sofrimento no longo prazo se as condições de vida de uma pessoa se deteriorarem de forma constante ou se a doença envolver dor contínua e debilitante. As pessoas que são diagnosticadas com doenças crônicas como diabetes geralmente ficam deprimidas por um tempo, mas, se a doença não piorar, elas se ajustam à nova condição e classificam sua felicidade nos mesmos patamares que as pessoas saudáveis. Imagine que Lúcia e Lucas são gêmeos de classe média, que concordam em participar de um estudo sobre bem-estar. Ao voltar do laboratório de psicologia, o carro de Lúcia é atingido por um ônibus, deixando-a com uma série de ossos fraturados e uma perna permanentemente danificada. Enquanto a equipe de resgate a está tirando do meio das ferragens, o telefone toca e Lucas grita que acabou de ganhar 10 milhões de reais na loteria. Dois anos depois, ela estará mancando e ele estará muito mais rico, mas, quando o psicólogo aparece para um estudo de acompanhamento, ambos tendem a dar as mesmas respostas que deram na manhã daquele dia fatídico.

Família e comunidade parecem ter mais impacto na nossa felicidade do que dinheiro e saúde. Pessoas com famílias coesas que vivem em comunidades unidas que lhes dão apoio são significativamente mais felizes do que pessoas cujas famílias são disfuncionais e que nunca encontraram (ou nunca buscaram) uma comunidade da qual fazer parte. O casamento é particularmente importante. Repetidos estudos descobriram que há uma relação muito direta entre bons casamentos e nível elevado de bem-estar subjetivo e entre maus casamentos e sofrimento. Isso é verdade independentemente de condições econômicas ou mesmo físicas. Um inválido sem recursos cercado por uma esposa amorosa, uma família dedicada e uma comunidade afetuosa pode se sentir melhor do que um bilionário alienado, contanto que a pobreza do inválido não seja extrema e que sua doença não seja degenerativa nem dolorosa.

Isso levanta a possibilidade de que a melhoria gigantesca nas condições materiais dos últimos dois séculos tenha sido compensada pelo colapso da família e da comunidade. As pessoas no mundo desenvolvido contam com o Estado e o mercado para quase tudo de que necessitam: alimento, abrigo, educação, saúde, segurança. Desse modo, tornou-se possível sobreviver sem ter uma família estendida ou amigos reais. Um indivíduo que mora em uma cobertura urbana é cercado por milhares de pessoas onde quer que vá, mas possivelmente jamais visitou o apartamento vizinho e sabe muito pouco sobre seus colegas de trabalho. Até mesmo seus amigos talvez sejam apenas companheiros de bar. Hoje, muitas amizades envolvem pouco mais do que conversar e se divertir juntos.

Encontramos um amigo em um bar, telefonamos para ele ou lhe enviamos um e-mail para aliviar nossa raiva sobre o que aconteceu hoje no escritório ou compartilhar nossas opiniões sobre o último escândalo político. Mas até que ponto podemos conhecer bem uma pessoa somente com base em conversas?
Diferentemente de tais companheiros de bar, os amigos na Idade da Pedra dependiam uns dos outros para sua própria sobrevivência. Os humanos viviam em comunidades solidárias, e os amigos eram pessoas com quem se caçava mamutes. Juntos, sobreviviam a longas jornadas e a invernos rigorosos.

Cuidavam um do outro quando um deles ficava doente, e compartilhavam a última porção de comida em épocas de necessidade. Tais amigos conheciam uns aos outros mais intimamente do que muitos casais de nossos dias. Quantos maridos podem dizer que sabem qual será o comportamento da esposa se eles forem atacados por um mamute enfurecido? Substituir tais redes tribais precárias pela segurança das economias e dos Estados paternalistas modernos obviamente tem vantagens enormes, mas é provável que a qualidade e a profundidade das relações íntimas tenha sido afetada.

Mas a descoberta mais importante de todas é que a felicidade não depende de condições objetivas de riqueza, saúde ou mesmo comunidade. Em vez disso, depende da correlação entre condições objetivas e expectativas subjetivas. Se você quer uma carroça e consegue uma carroça, fica contente. Se você quer uma Ferrari zero e só consegue um Fiat usado, sente que algo lhe foi negado. É por isso que ganhar na loteria tem, com o tempo, o mesmo impacto sobre a felicidade das pessoas que um acidente de carro debilitante. Quando as coisas melhoram, as expectativas inflam, e consequentemente até mesmo melhorias drásticas nas condições objetivas podem nos deixar insatisfeitos. Quando as coisas se deterioram, as expectativas diminuem, e consequentemente até mesmo com uma doença grave a pessoa pode ser tão feliz quanto era antes.

Você poderia dizer que não precisamos de um bando de psicólogos e seus questionários para descobrir isso. Profetas, poetas e filósofos perceberam, há milhares de anos, que estar satisfeito com o que você já tem é muito mais importante do que obter mais daquilo que deseja. Ainda assim, é bom quando pesquisas atuais – sustentadas por uma porção de números e gráficos – chegam à mesma conclusão a que os antigos chegaram.

Yuval Noah Harari, "Sapiens: uma breve história da humanidade"

Governos para quê?

No caso da democracia, foi prometida uma resposta simples: “do povo, pelo povo e para o povo”. Será mesmo?

Ou, talvez: governos, para quem? No caso da democracia, foi prometida uma resposta simples: “do povo, pelo povo e para o povo”. Será mesmo? Tudo estaria resolvido se houvesse ao menos concordância na definição de povo.

A confusão começa com inúmeros grupos humanos sendo chamamos de ‘povos’ (indígenas, africanos, originários, tradicionais, europeus etc. etc.). Será que todos esses ‘povos’ já usufruem igualmente daquele exercício democrático de ser povo?

Como se não bastasse, no âmbito de cada um desses ‘povos’ há diversas estratificações econômicas e sociais que se apresentam de maneira muito diferente quanto ao acesso concreto às oportunidades e às garantias previstas na legislação de cada país.


Um caso claro é o das pessoas negras. Várias democracias modernas surgiram, a partir do século XVIII, convivendo com regimes escravistas. Nos EUA a abolição da escravidão só ocorreu uns cem anos após a Independência Americana. Na França a abolição foi conquistada anos após a Revolução Francesa e foi restabelecida por Bonaparte, antes de ser revogada em meados do século XIX.

Ao longo do século XX persistiu nas democracias a discriminação contra grande parte da sociedade, com a restrição ao direito de votar dos negros, mulheres, analfabetos e indígenas, por exemplo. Ainda hoje restam desigualdades profundas no acesso à educação, saúde, emprego, segurança, infraestrutura, moradia, transporte e outros serviços públicos ou privados.

Ao que parece, ao longo da história o Estado é reinventado periodicamente, em formatos que oferecem novas possibilidades de governança, adequadas às elites emergentes de cada época. A democracia prevê na sua certidão de nascimento as conexões que possibilitariam a liberdade, igualdade e soberania, ampliando a dinâmica de poder para além dos limites das cortes monarquistas.

Contudo, os retrocessos autocráticos periódicos refletem o esforço de recomposição dos desenhos originais de democracias pouco inclusivas, deixando a impressão de que os sistemas de governo não esquecem que foram projetados para viabilizarem a prosperidade e consolidarem a influência dos segmentos sociais que bancaram sua instalação.

Esse estilo “camarote vip” pode ser visto na composição do próprio Conselho de Segurança da ONU. Nesse ponto, os atuais ultraliberais e anarcocapitalistas preservam um vício de origem similar ao dos ditadores e populistas de leste a oeste do planeta. O retrocesso cíclico reflete a queda-de-braço estrutural entre o andar de cima do PIB (a quem os governos foram inventados para servir) e a base da pirâmide social (a quem os governos disseram que foram inventados para servir).

Por isso, o que Trump, Kim Jong-um, o talibã (e suas variações) têm em comum é a crença na desigualdade social enquanto chão de fábrica da concentração de riqueza, que segue sendo curiosamente, ao mesmo tempo, o principal propósito e o maior desafio dessa invenção milenar humana chamada governo.