sábado, 14 de dezembro de 2024
O bombardeio digital por terra, mar e ar
A “palavra do ano”, segundo o Dicionário Oxford, é brain rot — a deterioração intelectual pelo consumo indiscriminado de conteúdos superficiais, encontrados na internet. Não é um diagnóstico médico, mas questão de saúde cultural. A persistirem os sintomas — similares aos da depressão, da ansiedade, do TOC, da síndrome de burnout, do TDAH, das demências, do hipotireoidismo, da anemia e da insônia crônica —, não é um neurologista ou um psiquiatra que deve ser consultado, mas um técnico de informática. Porque o vírus da brain rot tem como transmissor o algoritmo — espécie de entidade obsessora, uma alma desencarnada digital que influencia os vivos, decidindo que conteúdos aparecem em seu feed.
Em tese, se você curte fotos de gatos, veria mais publicações da Cora Rónai ou anúncios de ração para felinos. Se é botafoguense, como eu, páginas sobre ansiolíticos se abririam automaticamente a cada partida. Juntando os dois interesses, a máquina de pubar cérebros — pilotada por Zuckerberg, Musk e Zhang Yiming — lhe sugeriria seguir Gatito, o veterano goleiro do glorioso Fogão. Mas não.
Mesmo para quem não tem qualquer interesse em tretas aéreas, o algoritmo forneceu uma overdose da saga da moça insultada e exposta por se recusar a trocar de lugar com uma criança. Caindo de paraquedas no embate entre a titular da janelinha e a mãe do birrento, uma passageira resolveu armar um palanque a bordo da aeronave. Talvez tenha farejado, ali, uma boa oportunidade de lacrar (e lucrar) no papel de justiceira. Armou e se deu mal, porque o wokismo de ocasião não colou — e o vídeo-denúncia acabou sendo um tiro no pé. Mas, de celular em punho, fez da pirraça um tema onipresente nas nossas conversas.
Pouco antes, foi a vez de a valorosa Marinha do Brasil fazer água. A pretexto de comemorar o Dia do Marinheiro, a arma que já nos deu Tamandaré, Barroso e João Cândido embarcou na canoa furada da defesa dos próprios privilégios. Para não ser torpedeado no corte de gastos (que atingiu em cheio Saúde e Educação), o cisne branco se fez de patinho feio. Os marujos se sacrificariam num mar de perigos enquanto os civis, esses folgados, apenas dançam, surfam, bebem, fazem ioga e brincam de videogame. Baita tiro n’água — e nós, que só nos lembramos da Marinha quando ela bota tanques fumegantes para desfilar no 7 de Setembro ou apoia golpe de Estado, ficamos sabendo (mesmo sem querer) que ela pode afundar mais ainda.
Em terra firme, por menor que seja a nossa disposição, cá estamos nós acompanhando o BBB em que se transformou o cotidiano das grandes cidades. Graças às câmeras corporais, a violência policial pode ser apreciada praticamente ao vivo e em cores. Principalmente a de São Paulo — o que obrigou o governador, muito a contragosto, a fazer uma correção de rota. (A Bahia é mais violenta, mas lá o governo é do PT, então a indignação não se aplica.) Câmeras de segurança também flagraram militante woke, em Belém, forjando acusação de agressão em carro de aplicativo e sacando a carta do racismo (sempre um tiro no escuro).
Nem é preciso ir atrás desses e de outros conteúdos. Eles nos alcançam, por terra, mar e ar, bastando que estejamos conectados à internet. Talvez não haja dosagens seguras para esse tipo de consumo. E não há cérebro que aguente.
Em tese, se você curte fotos de gatos, veria mais publicações da Cora Rónai ou anúncios de ração para felinos. Se é botafoguense, como eu, páginas sobre ansiolíticos se abririam automaticamente a cada partida. Juntando os dois interesses, a máquina de pubar cérebros — pilotada por Zuckerberg, Musk e Zhang Yiming — lhe sugeriria seguir Gatito, o veterano goleiro do glorioso Fogão. Mas não.
Mesmo para quem não tem qualquer interesse em tretas aéreas, o algoritmo forneceu uma overdose da saga da moça insultada e exposta por se recusar a trocar de lugar com uma criança. Caindo de paraquedas no embate entre a titular da janelinha e a mãe do birrento, uma passageira resolveu armar um palanque a bordo da aeronave. Talvez tenha farejado, ali, uma boa oportunidade de lacrar (e lucrar) no papel de justiceira. Armou e se deu mal, porque o wokismo de ocasião não colou — e o vídeo-denúncia acabou sendo um tiro no pé. Mas, de celular em punho, fez da pirraça um tema onipresente nas nossas conversas.
Pouco antes, foi a vez de a valorosa Marinha do Brasil fazer água. A pretexto de comemorar o Dia do Marinheiro, a arma que já nos deu Tamandaré, Barroso e João Cândido embarcou na canoa furada da defesa dos próprios privilégios. Para não ser torpedeado no corte de gastos (que atingiu em cheio Saúde e Educação), o cisne branco se fez de patinho feio. Os marujos se sacrificariam num mar de perigos enquanto os civis, esses folgados, apenas dançam, surfam, bebem, fazem ioga e brincam de videogame. Baita tiro n’água — e nós, que só nos lembramos da Marinha quando ela bota tanques fumegantes para desfilar no 7 de Setembro ou apoia golpe de Estado, ficamos sabendo (mesmo sem querer) que ela pode afundar mais ainda.
Em terra firme, por menor que seja a nossa disposição, cá estamos nós acompanhando o BBB em que se transformou o cotidiano das grandes cidades. Graças às câmeras corporais, a violência policial pode ser apreciada praticamente ao vivo e em cores. Principalmente a de São Paulo — o que obrigou o governador, muito a contragosto, a fazer uma correção de rota. (A Bahia é mais violenta, mas lá o governo é do PT, então a indignação não se aplica.) Câmeras de segurança também flagraram militante woke, em Belém, forjando acusação de agressão em carro de aplicativo e sacando a carta do racismo (sempre um tiro no escuro).
Nem é preciso ir atrás desses e de outros conteúdos. Eles nos alcançam, por terra, mar e ar, bastando que estejamos conectados à internet. Talvez não haja dosagens seguras para esse tipo de consumo. E não há cérebro que aguente.
Os caminhos desapareceram da alma humana
Caminho: faixa de terra sobre a qual se anda a pé. A estrada distingue-se do caminho não só por ser percorrida de automóvel, mas também por ser uma simples linha ligando um ponto a outro. A estrada não tem em si própria qualquer sentido; só têm sentido os dois pontos que ela liga. O caminho é uma homenagem ao espaço. Cada trecho do caminho é em si próprio dotado de um sentido e convida-nos a uma pausa. A estrada é uma desvalorização triunfal do espaço, que hoje não passa de um entrave aos movimentos do homem, de uma perda de tempo.
Antes ainda de desaparecerem da paisagem, os caminhos desapareceram da alma humana: o homem já não sente o desejo de caminhar e de extrair disso um prazer. E também a sua vida ele já não vê como um caminho, mas como uma estrada: como uma linha conduzindo de uma etapa à seguinte, do posto de capitão ao posto de general, do estatuto de esposa ao estatuto de viúva. O tempo de viver reduziu-se a um simples obstáculo que é preciso ultrapassar a uma velocidade sempre crescente.
Milan Kundera, "A Imortalidade"
Antes ainda de desaparecerem da paisagem, os caminhos desapareceram da alma humana: o homem já não sente o desejo de caminhar e de extrair disso um prazer. E também a sua vida ele já não vê como um caminho, mas como uma estrada: como uma linha conduzindo de uma etapa à seguinte, do posto de capitão ao posto de general, do estatuto de esposa ao estatuto de viúva. O tempo de viver reduziu-se a um simples obstáculo que é preciso ultrapassar a uma velocidade sempre crescente.
Milan Kundera, "A Imortalidade"
A verdadeira bandeira
Em 19 de novembro de 1889, os republicanos adotaram uma nova bandeira, para substituir a anterior, do período imperial. Contudo, 85% dos brasileiros, 12 milhões entre 14 milhões, não conseguiam ler o lema —Ordem e Progresso —por serem analfabetos. Começou, ali, a saga de uma nação partida, separando a maioria, o povão, da minoria privilegiada, a elite. Pouco mais de 135 anos depois, o estandarte é reconhecido por 93% da população —contudo, os 7% com mais de 15 anos iletrados não a reconhecem, em um grupo, 12 milhões, de tamanho semelhante ao dos apartados de 1889. É possível estimar que, ao longo da gestão dos 39 presidentes da história republicana, pelo menos 50 milhões de pessoas tenham morrido sem decifrar o lábaro.
Não é uma estimativa perfeita, tanto quanto não são os cálculos do número de escravos que nasceram no Brasil ao longo dos 350 anos de escravidão, até a Lei do Ventre Livre. É claro indício, contudo, da essência perversa de nosso sistema político. Nossos democratas lutaram por anos contra a censura sobre os que tinham chance de escrever ou ler, mas não contra a mais absoluta censura sobre os analfabetos; tampouco lutaram por aqueles impedidos de receber educação de base suficiente para induzi-los à leitura, apesar de alfabetizados. Os defensores das letras denunciam o alto custo dos livros e o pouco apoio público à leitura, mas esquecem os analfabetos adultos e as vítimas da baixa qualidade do sistema educacional, que continua produzindo a cada ano dezenas de milhões de iletrados. Até mesmo a luta contra a tortura sobre presos políticos não considerou que o analfabetismo é uma tortura sobre o analfabeto: diante de um texto escrito, é como se levasse uma chicotada no cérebro. A comemorada Lei da Anistia ainda não se aplicou às vítimas do analfabetismo que são jogadas ao mar da “desescola” e ficam socialmente para trás, por falta de acesso à educação de base com qualidade.
Um século e meio depois da Proclamação da República prevalece a mesma essência política dos primeiros republicanos que formularam a bandeira dos letrados sem cuidar dos iletrados nem dos ileitores. No Dia da Bandeira do 24º ano do século XXI, o Brasil tomou conhecimento de que diminuiu o número de leitores entre os brasileiros alfabetizados. Diversas vozes se levantaram contra as causas dessa tragédia social. Criticaram o descuido com o programa do livro didático, o fechamento de livrarias, a penúria de bibliotecas, o alto preço dos livros, mas sem cobrança por um programa para a erradicação do analfabetismo de adultos, nem pela criação de um sistema nacional para a educação de base que produza leitores.
Os republicanos fizeram uma bandeira para poucos e, de modo triste e inaceitável, até hoje a desfraldamos para poucos devido a um regime educacional com qualidade para privilegiados, apenas. A consequência é um círculo vicioso: a essência perversa da política impede educação de qualidade para todos, e essa apartação educacional faz duradoura a perversidade social iniciada em 19 de novembro de 1889 com a adoção da bandeira de uma república partida ao meio. Tudo somado: a verdadeira bandeira de um país republicano é a escola que seus governos oferecem ao seu povo.
Não é uma estimativa perfeita, tanto quanto não são os cálculos do número de escravos que nasceram no Brasil ao longo dos 350 anos de escravidão, até a Lei do Ventre Livre. É claro indício, contudo, da essência perversa de nosso sistema político. Nossos democratas lutaram por anos contra a censura sobre os que tinham chance de escrever ou ler, mas não contra a mais absoluta censura sobre os analfabetos; tampouco lutaram por aqueles impedidos de receber educação de base suficiente para induzi-los à leitura, apesar de alfabetizados. Os defensores das letras denunciam o alto custo dos livros e o pouco apoio público à leitura, mas esquecem os analfabetos adultos e as vítimas da baixa qualidade do sistema educacional, que continua produzindo a cada ano dezenas de milhões de iletrados. Até mesmo a luta contra a tortura sobre presos políticos não considerou que o analfabetismo é uma tortura sobre o analfabeto: diante de um texto escrito, é como se levasse uma chicotada no cérebro. A comemorada Lei da Anistia ainda não se aplicou às vítimas do analfabetismo que são jogadas ao mar da “desescola” e ficam socialmente para trás, por falta de acesso à educação de base com qualidade.
Um século e meio depois da Proclamação da República prevalece a mesma essência política dos primeiros republicanos que formularam a bandeira dos letrados sem cuidar dos iletrados nem dos ileitores. No Dia da Bandeira do 24º ano do século XXI, o Brasil tomou conhecimento de que diminuiu o número de leitores entre os brasileiros alfabetizados. Diversas vozes se levantaram contra as causas dessa tragédia social. Criticaram o descuido com o programa do livro didático, o fechamento de livrarias, a penúria de bibliotecas, o alto preço dos livros, mas sem cobrança por um programa para a erradicação do analfabetismo de adultos, nem pela criação de um sistema nacional para a educação de base que produza leitores.
Os republicanos fizeram uma bandeira para poucos e, de modo triste e inaceitável, até hoje a desfraldamos para poucos devido a um regime educacional com qualidade para privilegiados, apenas. A consequência é um círculo vicioso: a essência perversa da política impede educação de qualidade para todos, e essa apartação educacional faz duradoura a perversidade social iniciada em 19 de novembro de 1889 com a adoção da bandeira de uma república partida ao meio. Tudo somado: a verdadeira bandeira de um país republicano é a escola que seus governos oferecem ao seu povo.
Terras férteis estão se tornando desertos
Quase metade da superfície sólida do planeta está prestes a se tornar um deserto não arável, de acordo com a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD, na sigla em inglês).
Essas terras são marcadas há muito tempo pela baixa pluviosidade, e mesmo assim sustentam 45% da agricultura mundial. Agora, a seca extrema ligada ao aquecimento global causado pelo homem está ajudando a transformar essa área em um terreno baldio infértil.
Com uma em cada três pessoas do mundo vivendo nessas regiões áridas, especialistas alertam que a insegurança alimentar, a pobreza e o deslocamento em massa acompanharão a desertificação.
O problema é tão grave que uma conferência das Nações Unidas sobre desertificação (COP16), a ser realizada na Arábia Saudita em dezembro, exige que 1,5 bilhão de hectares de terras desertificadas do mundo sejam restaurados até 2030. Pelos cálculos da ONU, essa é a porção que poderia ser reabilitada.
A desertificação é uma forma de degradação pela qual a terra fértil perde grande parte de sua produtividade biológica – e econômica – e se torna um deserto.
Atualmente, até 40% das terras do mundo já estão degradadas, de acordo com a UNCCD.
Embora as mudanças climáticas, o desmatamento, o uso excessivo de pastagem para pecuária, práticas agrícolas insustentáveis e a expansão urbana sejam os principais fatores da desertificação, uma crise global de estiagem está exacerbando o problema.
A seca e o calor extremos provocam escassez de água e levam à degradação do solo e à perda de culturas e vegetação.
Com a previsão de que 2024 será o ano mais quente já registrado, a seca poderá afetar 75% da população mundial até 2050, de acordo com relatório da ONU divulgado nesta semana.
A escassez de água agrava ainda mais os impactos do desmatamento. Menos árvores significa menos raízes para prender o solo e evitar erosão.
Enquanto isso, questões sociais, como maior dificuldade para mulheres de possuir terras, também podem afetar a saúde da terra e do solo. A ONU observa que as mulheres investem com mais frequência em sistemas alimentares biodiversos, ao contrário dos homens, que se concentram principalmente em monoculturas de alta produtividade que podem degradar a terra rapidamente.
A grave degradação da terra e a desertificação estão afetando a capacidade do planeta de "apoiar o bem-estar ambiental e humano", disse um relatório da UNCCD de 2024.
A terra degradada não pode mais sustentar diversos ecossistemas ou ajudar a regular o clima, os fluxos de água e a produção de nutrientes vitais para toda a vida.
A terra saudável também proporciona segurança alimentar e um sistema agrícola sustentável, aponta o estudo.
Porém, com tanta terra fértil e produtiva degradada a cada ano, a desertificação contínua está acelerando a perda de biodiversidade, a fome e a pobreza.
Migração forçada e conflitos sobre recursos em declínio serão algumas das consequências futuras.
"São a terra e o solo sob nossos pés que cultivam o algodão para as roupas que vestimos, garantem a comida em nossos pratos e ancoram as economias das quais dependemos", observou Ibrahim Thiaw, secretário executivo da UNCCD.
Um tema fundamental dos esforços para combater a desertificação é a restauração do solo e a promoção de uma agricultura e de um manejo de pastagens mais sustentáveis e "positivos para a natureza", de acordo com Susan Gardner, diretora da divisão de ecossistemas do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
Isso anda de mãos dadas com a conservação de "bacias hidrográficas" que armazenam água.
O Programa Mundial de Alimentos da ONU, por exemplo, tem trabalhado para melhorar a resiliência da água na Mauritânia e no Níger, no oeste da África, construindo "meias-luas" que retêm a água da chuva.
Os lagos semicirculares ajudam solos degradados a reter a água por mais tempo e a sustentar a vegetação. Além disso, eles são práticos e econômicos para a população local construir.
Mas medidas mais drásticas também estão sendo tomadas para impedir a expansão dos desertos.
Em 2007, as nações da região do Sahel, na África, decidiram impedir a expansão do deserto do Saara para o norte, alimentada pela seca e pela mudança climática, cultivando árvores, pastagens e vegetação para criar a Grande Muralha Verde.
Bilhões de árvores seriam plantadas ao longo de quase 8.000 km, do litoral oeste ao leste da África, para criar zonas de amortecimento e evitar mais desertificação.
De acordo com os números mais atualizados da ONU, um quinto da restauração desejada foi alcançado, com o progresso paralisado devido à falta de financiamento. No entanto, novas iniciativas estão avançando com o objetivo de tornar mais verdes 100 milhões de hectares de terras degradadas em toda a África.
Uma iniciativa semelhante de replantio na China e no deserto de Gobi, na Mongólia, também conhecida como a "Grande Muralha Verde", inclui esforços para reduzir o o uso excessivo de pasto entre os pastores da Mongólia.
Quase 80% das terras da Mongólia foram afetadas pela degradação até 2020, e uma iniciativa da ONU buscou combater a desertificação por meio do gerenciamento sustentável da terra, incluindo a proteção de quase 850 mil hectares na região sul de Gobi como corredores de biodiversidade.
Essas terras são marcadas há muito tempo pela baixa pluviosidade, e mesmo assim sustentam 45% da agricultura mundial. Agora, a seca extrema ligada ao aquecimento global causado pelo homem está ajudando a transformar essa área em um terreno baldio infértil.
Com uma em cada três pessoas do mundo vivendo nessas regiões áridas, especialistas alertam que a insegurança alimentar, a pobreza e o deslocamento em massa acompanharão a desertificação.
O problema é tão grave que uma conferência das Nações Unidas sobre desertificação (COP16), a ser realizada na Arábia Saudita em dezembro, exige que 1,5 bilhão de hectares de terras desertificadas do mundo sejam restaurados até 2030. Pelos cálculos da ONU, essa é a porção que poderia ser reabilitada.
A desertificação é uma forma de degradação pela qual a terra fértil perde grande parte de sua produtividade biológica – e econômica – e se torna um deserto.
Atualmente, até 40% das terras do mundo já estão degradadas, de acordo com a UNCCD.
Embora as mudanças climáticas, o desmatamento, o uso excessivo de pastagem para pecuária, práticas agrícolas insustentáveis e a expansão urbana sejam os principais fatores da desertificação, uma crise global de estiagem está exacerbando o problema.
A seca e o calor extremos provocam escassez de água e levam à degradação do solo e à perda de culturas e vegetação.
Com a previsão de que 2024 será o ano mais quente já registrado, a seca poderá afetar 75% da população mundial até 2050, de acordo com relatório da ONU divulgado nesta semana.
Árvores plantadas no Senegal para conter avanço do deserto |
A escassez de água agrava ainda mais os impactos do desmatamento. Menos árvores significa menos raízes para prender o solo e evitar erosão.
Enquanto isso, questões sociais, como maior dificuldade para mulheres de possuir terras, também podem afetar a saúde da terra e do solo. A ONU observa que as mulheres investem com mais frequência em sistemas alimentares biodiversos, ao contrário dos homens, que se concentram principalmente em monoculturas de alta produtividade que podem degradar a terra rapidamente.
A grave degradação da terra e a desertificação estão afetando a capacidade do planeta de "apoiar o bem-estar ambiental e humano", disse um relatório da UNCCD de 2024.
A terra degradada não pode mais sustentar diversos ecossistemas ou ajudar a regular o clima, os fluxos de água e a produção de nutrientes vitais para toda a vida.
A terra saudável também proporciona segurança alimentar e um sistema agrícola sustentável, aponta o estudo.
Porém, com tanta terra fértil e produtiva degradada a cada ano, a desertificação contínua está acelerando a perda de biodiversidade, a fome e a pobreza.
Migração forçada e conflitos sobre recursos em declínio serão algumas das consequências futuras.
"São a terra e o solo sob nossos pés que cultivam o algodão para as roupas que vestimos, garantem a comida em nossos pratos e ancoram as economias das quais dependemos", observou Ibrahim Thiaw, secretário executivo da UNCCD.
Um tema fundamental dos esforços para combater a desertificação é a restauração do solo e a promoção de uma agricultura e de um manejo de pastagens mais sustentáveis e "positivos para a natureza", de acordo com Susan Gardner, diretora da divisão de ecossistemas do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
Isso anda de mãos dadas com a conservação de "bacias hidrográficas" que armazenam água.
O Programa Mundial de Alimentos da ONU, por exemplo, tem trabalhado para melhorar a resiliência da água na Mauritânia e no Níger, no oeste da África, construindo "meias-luas" que retêm a água da chuva.
Os lagos semicirculares ajudam solos degradados a reter a água por mais tempo e a sustentar a vegetação. Além disso, eles são práticos e econômicos para a população local construir.
Mas medidas mais drásticas também estão sendo tomadas para impedir a expansão dos desertos.
Em 2007, as nações da região do Sahel, na África, decidiram impedir a expansão do deserto do Saara para o norte, alimentada pela seca e pela mudança climática, cultivando árvores, pastagens e vegetação para criar a Grande Muralha Verde.
Bilhões de árvores seriam plantadas ao longo de quase 8.000 km, do litoral oeste ao leste da África, para criar zonas de amortecimento e evitar mais desertificação.
De acordo com os números mais atualizados da ONU, um quinto da restauração desejada foi alcançado, com o progresso paralisado devido à falta de financiamento. No entanto, novas iniciativas estão avançando com o objetivo de tornar mais verdes 100 milhões de hectares de terras degradadas em toda a África.
Uma iniciativa semelhante de replantio na China e no deserto de Gobi, na Mongólia, também conhecida como a "Grande Muralha Verde", inclui esforços para reduzir o o uso excessivo de pasto entre os pastores da Mongólia.
Quase 80% das terras da Mongólia foram afetadas pela degradação até 2020, e uma iniciativa da ONU buscou combater a desertificação por meio do gerenciamento sustentável da terra, incluindo a proteção de quase 850 mil hectares na região sul de Gobi como corredores de biodiversidade.
Slogans caradura
Tenho falado aqui do "Beba com sabedoria", slogan que encerra os comerciais de certa bebida alcoólica, e de forma tão discreta que mal satisfaz sua função de cumprir a lei —a de alertar o consumidor para os riscos do produto que ele está ingerindo. É uma "recomendação" inócua, como a que a mãe dá bondosamente ao seu garoto que vai para a noite pela primeira vez: "Meu filho, seja sábio. Evite ir a lugares frequentados por traficantes de drogas e mal'-intencionados que irão tentá-lo com seus produtos ilegais e irresistíveis".
Se já começa por esse cara-durismo fundamental, de tapear uma determinação da Justiça, o slogan omite também que uma pessoa organicamente incapaz de tomar numa noitada mais do que uma vodca, duas taças de vinho ou três cervejas (dosagens alcoólicas equivalentes) não precisará ser aconselhada a "beber com sabedoria". E, ao contrário, se for tolerante ao álcool, não se embriagar com facilidade e não sofrer efeitos matinais adversos, não terá nenhum motivo para "beber com sabedoria".
Se a campanha antiálcool fosse para valer, os comerciais e as garrafas de bebidas conteriam a mesma literatura agressiva dos maços de cigarros, obrigados a informar que fumar leva ao câncer, ao enfarte e à brochice. Os anúncios de cigarros já foram banidos há muito, mas seria engraçado se, em seu apogeu na contracapa das revistas, em vez das advertências eles viessem com a recomendação "Fume com sabedoria".
"Beba com sabedoria" não está longe de "Jogue com responsabilidade", o slogan dos comerciais de apostas, igualmente descarado, porque também omite que a possibilidade de apostar à vontade pelo celular, bastando depositar na conta da bet o dinheiro da aposta, elimina qualquer perspectiva de responsabilidade —quem ganhar apostará de novo, para continuar ganhando; quem perder, a mesma coisa, para recuperar o prejuízo.
O antigo governador paulista Paulo Maluf, ao recomendar ao seu eleitor "Estupra, mas não mata", poderia ter acrescentado: "Estupre com delicadeza". E o atual governador, Tarcísio de Freitas, deveria recomendar à sua PM: "Mate com carinho".
Se já começa por esse cara-durismo fundamental, de tapear uma determinação da Justiça, o slogan omite também que uma pessoa organicamente incapaz de tomar numa noitada mais do que uma vodca, duas taças de vinho ou três cervejas (dosagens alcoólicas equivalentes) não precisará ser aconselhada a "beber com sabedoria". E, ao contrário, se for tolerante ao álcool, não se embriagar com facilidade e não sofrer efeitos matinais adversos, não terá nenhum motivo para "beber com sabedoria".
Se a campanha antiálcool fosse para valer, os comerciais e as garrafas de bebidas conteriam a mesma literatura agressiva dos maços de cigarros, obrigados a informar que fumar leva ao câncer, ao enfarte e à brochice. Os anúncios de cigarros já foram banidos há muito, mas seria engraçado se, em seu apogeu na contracapa das revistas, em vez das advertências eles viessem com a recomendação "Fume com sabedoria".
"Beba com sabedoria" não está longe de "Jogue com responsabilidade", o slogan dos comerciais de apostas, igualmente descarado, porque também omite que a possibilidade de apostar à vontade pelo celular, bastando depositar na conta da bet o dinheiro da aposta, elimina qualquer perspectiva de responsabilidade —quem ganhar apostará de novo, para continuar ganhando; quem perder, a mesma coisa, para recuperar o prejuízo.
O antigo governador paulista Paulo Maluf, ao recomendar ao seu eleitor "Estupra, mas não mata", poderia ter acrescentado: "Estupre com delicadeza". E o atual governador, Tarcísio de Freitas, deveria recomendar à sua PM: "Mate com carinho".
O começo do fim da realidade
Se você curte imagens de gatinhos, passarinhos e outros bichinhos fofinhos nas redes sociais, deve ter visto um vídeo que viralizou recentemente no Instagram (e possivelmente em outras plataformas), de uma mamãe papagaio fazendo uma “cabaninha” com as asas para proteger seus filhotes da chuva. Coisa mais linda desse mundo! O vídeo foi replicado amplamente e recebeu milhões de visualizações em vários perfis da plataforma. “O amor de uma mãe não tem limites”, diz a legenda de uma das postagens.
Só tem um problema: o vídeo é uma mentira, criada 100% por inteligência artificial (IA) e totalmente desconectada da realidade. A mamãe papagaio é de uma espécie que não existe, os filhotes são de algum tipo de gavião que provavelmente não existe, também, e o ninho parece ser de um beija-flor (não de papagaio nem de gavião). Aliás, papagaios não constroem ninhos; eles nidificam em ocos de árvores e outras cavidades naturais. E essa postura de proteger os filhotes da chuva com as asas não existe na natureza, segundo o especialista Luís Fábio Silveira, curador de ornitologia do Museu de Zoologia da USP, com quem conversei antes de escrever esse texto. “Tá tudo errado nessa porcaria”, resumiu ele.
“Mas e daí? É só uma imagem fofinha que vai alegrar o dia das pessoas. Que mal isso pode causar?” Se fosse apenas esse vídeo, tudo bem. O problema é que esse é apenas um entre milhões de vídeos, fotos, áudios, textos e outros conteúdos falsos que estão inundando as redes sociais em uma escala cada vez maior e com uma qualidade cada vez melhor — ou seja, cada vez mais difíceis de serem identificados como falsos. O meu Instagram está repleto deles, incluindo dezenas de variações desse vídeo da mamãe papagaio protegendo os filhotes da chuva, além de muitos vídeos de monstros marinhos que não existem, de polvos e peixes gigantes que não existem, de filhotes de urso polar subindo a bordo de embarcações para abraçar as pessoas como se fossem cachorros, de robôs humanoides fazendo coisas impressionantes que ainda não são capazes de fazer, e por aí vai.
Um vídeo postado recentemente por um perfil de ativismo contra a poluição plástica mostra um pinguim com um anel plástico enroscado no pescoço sendo resgatado por um moço sorridente, que se aproxima dele com um peixe na mão e retira o anel. A cena termina com o pinguim pulando de alegria e acenando para as câmeras ao lado do homem como se estivesse num show de circo. Bonitinho, mas mentiroso. Não há qualquer aviso na imagem ou na legenda de que se trata de um vídeo gerado por IA. O problema da poluição plástica é real, e gravíssimo (como descrevo neste podcast), mas o comportamento do pinguim é totalmente irreal. Vários usuários criticaram o uso não identificado da IA na postagem, mas o perfil rebateu dizendo que os fins justificam os meios, porque o objetivo é chamar atenção para o impacto dos plásticos na biodiversidade.
Eu discordo. No médio e longo prazo, o uso de imagens falsas para tratar de problemas reais pode ser um tiro pela culatra, à medida que vai dessensibilizar as pessoas para a real natureza do problema que se deseja enfrentar. Depois de ver milhares de vídeos fofinhos de animais sendo resgatados ou fazendo coisas incríveis nas redes sociais, será que as pessoas ainda vão se sensibilizar com imagens do mundo real, que tendem a ser menos espetaculares do que aquelas produzidas por IA? Pior ainda: será que as pessoas vão acreditar nas imagens reais? Afinal de contas, se todas aquelas outras imagens foram criadas por IA, quem garante que essa também não foi? A realidade vai parecer tão sem graça, comparada ao que se vê nas redes sociais, que ninguém mais se interessar com ela.
O ponto crítico é que a linha que separa a realidade da ficção no mundo digital está sendo completamente borrada pela IA. Já escrevi sobre isso aqui antes, mas a velocidade com que essas tecnologias estão avançando e se popularizando é realmente assustadora. Estamos próximos — se é que já não chegamos lá — de um ponto em que vai se tornar quase impossível saber se uma imagem é real ou não. Tão perigoso quanto acreditar em mentiras é deixar de acreditar na verdade. Se o papagaio daquele vídeo não existe, quem garante que aquela imagem da Amazônia em chamas também não é falsa? Quem garante que aquela geleira está realmente derretendo? Que aquele político realmente pegou aquela mala de dinheiro? E por aí vai. Nesse novo estado de esquizofrenia digital coletiva, toda e qualquer realidade de torna questionável.
Isso abre brechas enormes para a propagação de mentiras e teorias conspiratórias; e é claro que muita gente vai se aproveitar dessa confusão. Quando Kamala Harris se lançou candidata à presidência nos Estados Unidos e começou a atrair multidões para os seus comícios, por exemplo, Donald Trump alegou que as imagens dos eventos eram geradas por IA. Lógico que era mentira, mas muita gente acreditou. Quem garante que não?
Vou dar um outro exemplo preocupante. No início deste ano a Samsung lançou um novo modelo de IA integrado aos seus dispositivos, chamado Galaxy AI, que permite fazer uma série de coisas — entre elas, edição de imagens — com extrema facilidade. O comercial de lançamento mostra uma mãe utilizando a tecnologia para “editar” (adulterar, seria o termo mais correto) uma foto do seu filho em uma peça de teatro na escola. Ela move as duas crianças que estavam mais à frente do palco para as laterais e puxa o seu filho para o primeiro plano, deixando-o isolado como protagonista no centro da cena.
Assim como no caso dos passarinhos, tudo muito fofo e aparentemente inofensivo. Mas imagine só o seguinte: quando essas crianças da “geração IA” ficarem mais velhas e olharem para suas fotos de infância, como vão saber se aquelas imagens são reais ou não? Como vão saber o que realmente aconteceu? Em que lugar do palco elas realmente estavam? Imagine a dissonância cognitiva que vai se formar entre as memórias biológicas e as lembranças digitais adulteradas da história de vida das pessoas.
Agora imagine essas tecnologias de edição de imagem, cada vez mais sofisticadas e acessíveis, sendo usadas em larga escala para adulterar a realidade de milhões de fotos e vídeos que são publicados todos os dias nas redes sociais, que é onde a maior parte das pessoas convive e se relaciona com o mundo atualmente. Quando você olhar o perfil de alguém no Instagram, no TikTok ou seja lá onde for, como vai saber se aquelas imagens são reais? Se aquela pessoa realmente foi àqueles lugares que diz que foi e fez aquelas coisas que diz que fez? Em resumo: como vamos saber quem as pessoas realmente são? Como vamos saber o que realmente está acontecendo? O que aconteceu no passado? Se aquele bicho realmente existe? Se aquele problema é realmente tão grave quanto parece?
Podemos pensar no consumo de IA via redes sociais como equivalente ao consumo de alimentos ultraprocessados na nossa dieta: tudo bem comer um pouco de vez em quando, mas não exagere, para não prejudicar sua saúde (mental, nesse caso). O ponto fundamental é a rotulagem: as pessoas precisam saber o que estão consumindo. Não importa quão nobre seja a intenção — combater a poluição plástica ou gerar empatia pela biodiversidade —, esconder o fato de que um conteúdo foi gerado por IA é desonestidade. É uma mentira contada na forma de imagem.
Herton Escobar
Só tem um problema: o vídeo é uma mentira, criada 100% por inteligência artificial (IA) e totalmente desconectada da realidade. A mamãe papagaio é de uma espécie que não existe, os filhotes são de algum tipo de gavião que provavelmente não existe, também, e o ninho parece ser de um beija-flor (não de papagaio nem de gavião). Aliás, papagaios não constroem ninhos; eles nidificam em ocos de árvores e outras cavidades naturais. E essa postura de proteger os filhotes da chuva com as asas não existe na natureza, segundo o especialista Luís Fábio Silveira, curador de ornitologia do Museu de Zoologia da USP, com quem conversei antes de escrever esse texto. “Tá tudo errado nessa porcaria”, resumiu ele.
Seria menos mal se a imagem estivesse claramente identificada como IA. Algumas postagens até tinham uma notinha de rodapé, mas a maioria, não. (O Instagram tem um botão que permite adicionar um “rótulo de IA” na hora de postar; mas é algo muito discreto, e não é obrigatório.) Aposto que a maioria das pessoas que viram esse vídeo achou que ele era verdadeiro.
“Mas e daí? É só uma imagem fofinha que vai alegrar o dia das pessoas. Que mal isso pode causar?” Se fosse apenas esse vídeo, tudo bem. O problema é que esse é apenas um entre milhões de vídeos, fotos, áudios, textos e outros conteúdos falsos que estão inundando as redes sociais em uma escala cada vez maior e com uma qualidade cada vez melhor — ou seja, cada vez mais difíceis de serem identificados como falsos. O meu Instagram está repleto deles, incluindo dezenas de variações desse vídeo da mamãe papagaio protegendo os filhotes da chuva, além de muitos vídeos de monstros marinhos que não existem, de polvos e peixes gigantes que não existem, de filhotes de urso polar subindo a bordo de embarcações para abraçar as pessoas como se fossem cachorros, de robôs humanoides fazendo coisas impressionantes que ainda não são capazes de fazer, e por aí vai.
Um vídeo postado recentemente por um perfil de ativismo contra a poluição plástica mostra um pinguim com um anel plástico enroscado no pescoço sendo resgatado por um moço sorridente, que se aproxima dele com um peixe na mão e retira o anel. A cena termina com o pinguim pulando de alegria e acenando para as câmeras ao lado do homem como se estivesse num show de circo. Bonitinho, mas mentiroso. Não há qualquer aviso na imagem ou na legenda de que se trata de um vídeo gerado por IA. O problema da poluição plástica é real, e gravíssimo (como descrevo neste podcast), mas o comportamento do pinguim é totalmente irreal. Vários usuários criticaram o uso não identificado da IA na postagem, mas o perfil rebateu dizendo que os fins justificam os meios, porque o objetivo é chamar atenção para o impacto dos plásticos na biodiversidade.
Eu discordo. No médio e longo prazo, o uso de imagens falsas para tratar de problemas reais pode ser um tiro pela culatra, à medida que vai dessensibilizar as pessoas para a real natureza do problema que se deseja enfrentar. Depois de ver milhares de vídeos fofinhos de animais sendo resgatados ou fazendo coisas incríveis nas redes sociais, será que as pessoas ainda vão se sensibilizar com imagens do mundo real, que tendem a ser menos espetaculares do que aquelas produzidas por IA? Pior ainda: será que as pessoas vão acreditar nas imagens reais? Afinal de contas, se todas aquelas outras imagens foram criadas por IA, quem garante que essa também não foi? A realidade vai parecer tão sem graça, comparada ao que se vê nas redes sociais, que ninguém mais se interessar com ela.
O ponto crítico é que a linha que separa a realidade da ficção no mundo digital está sendo completamente borrada pela IA. Já escrevi sobre isso aqui antes, mas a velocidade com que essas tecnologias estão avançando e se popularizando é realmente assustadora. Estamos próximos — se é que já não chegamos lá — de um ponto em que vai se tornar quase impossível saber se uma imagem é real ou não. Tão perigoso quanto acreditar em mentiras é deixar de acreditar na verdade. Se o papagaio daquele vídeo não existe, quem garante que aquela imagem da Amazônia em chamas também não é falsa? Quem garante que aquela geleira está realmente derretendo? Que aquele político realmente pegou aquela mala de dinheiro? E por aí vai. Nesse novo estado de esquizofrenia digital coletiva, toda e qualquer realidade de torna questionável.
Isso abre brechas enormes para a propagação de mentiras e teorias conspiratórias; e é claro que muita gente vai se aproveitar dessa confusão. Quando Kamala Harris se lançou candidata à presidência nos Estados Unidos e começou a atrair multidões para os seus comícios, por exemplo, Donald Trump alegou que as imagens dos eventos eram geradas por IA. Lógico que era mentira, mas muita gente acreditou. Quem garante que não?
Vou dar um outro exemplo preocupante. No início deste ano a Samsung lançou um novo modelo de IA integrado aos seus dispositivos, chamado Galaxy AI, que permite fazer uma série de coisas — entre elas, edição de imagens — com extrema facilidade. O comercial de lançamento mostra uma mãe utilizando a tecnologia para “editar” (adulterar, seria o termo mais correto) uma foto do seu filho em uma peça de teatro na escola. Ela move as duas crianças que estavam mais à frente do palco para as laterais e puxa o seu filho para o primeiro plano, deixando-o isolado como protagonista no centro da cena.
Assim como no caso dos passarinhos, tudo muito fofo e aparentemente inofensivo. Mas imagine só o seguinte: quando essas crianças da “geração IA” ficarem mais velhas e olharem para suas fotos de infância, como vão saber se aquelas imagens são reais ou não? Como vão saber o que realmente aconteceu? Em que lugar do palco elas realmente estavam? Imagine a dissonância cognitiva que vai se formar entre as memórias biológicas e as lembranças digitais adulteradas da história de vida das pessoas.
Agora imagine essas tecnologias de edição de imagem, cada vez mais sofisticadas e acessíveis, sendo usadas em larga escala para adulterar a realidade de milhões de fotos e vídeos que são publicados todos os dias nas redes sociais, que é onde a maior parte das pessoas convive e se relaciona com o mundo atualmente. Quando você olhar o perfil de alguém no Instagram, no TikTok ou seja lá onde for, como vai saber se aquelas imagens são reais? Se aquela pessoa realmente foi àqueles lugares que diz que foi e fez aquelas coisas que diz que fez? Em resumo: como vamos saber quem as pessoas realmente são? Como vamos saber o que realmente está acontecendo? O que aconteceu no passado? Se aquele bicho realmente existe? Se aquele problema é realmente tão grave quanto parece?
Podemos pensar no consumo de IA via redes sociais como equivalente ao consumo de alimentos ultraprocessados na nossa dieta: tudo bem comer um pouco de vez em quando, mas não exagere, para não prejudicar sua saúde (mental, nesse caso). O ponto fundamental é a rotulagem: as pessoas precisam saber o que estão consumindo. Não importa quão nobre seja a intenção — combater a poluição plástica ou gerar empatia pela biodiversidade —, esconder o fato de que um conteúdo foi gerado por IA é desonestidade. É uma mentira contada na forma de imagem.
Herton Escobar
Assinar:
Postagens (Atom)