quarta-feira, 18 de outubro de 2023

O mundo em guerra

O mundo está em guerra, como sempre. O mundo tem hoje cerca de dez guerras em andamento. Todas são igualmente iguais, pela sua insensatez, crueldade e mortes. Mas algumas têm mais relevância pela sua amplitude e consequências políticas.

As três mais relevantes hoje são a Guerra entre o Hamas e Israel, sendo o Oriente Médio o berço e a origem dos conflitos de nossa civilização; a Guerra da Ucrânia, uma guerra geopolítica entre a Rússia e os Estados Unidos que domina toda a Europa, e joga por baixo a noção da relativa estabilidade da ordem mundial pós Segunda Guerra; e o possível conflito entre os Estados Unidos e a China, na luta pela hegemonia mundial deste século XXI, com a China tendendo a ultrapassar o PIB do Estados Unidos, gerando tensões que podem resultar em guerra. Este é o trio que nos amargura na visão quase apocalíptica do amanhã.

No berço de nossa civilização, Gregos e Persas se antepuseram, a Grécia mais ligada à noção de democracia, a Pérsia mais baseada no conceito do estado centralizado. Samuel Huntington, em “O choque de civilizações”, fala-nos sobre a relativa diminuição da economia ocidental e o relativo aumento da economia dos países árabes e islâmicos, em concepções antepostas. Israel com política expansionista territorial, entra em conflito contínuo com os Palestinos, ainda sem a constituição de um Estado, e com o mundo Árabe, com poucas chances de solução em não havendo negociação.


Na Europa, chega a impressionar que um país como a Ucrânia, com PIB de US$ 200 bilhões em 2021 e renda per capita de US$ 3.500, 00 dólares, hoje com o PIB diminuído para US 160 bilhões e recebendo auxílio militar de US$150 bilhões no primeiro ano do conflito, seja o palco de tamanha guerra que abala os alicerces mundiais. Em 2021, o PIB da Rússia aumentou 22%, o dos Estados Unidos 9%, o da União Europeia caiu 3,5%. Desde 1950, os Estados Unidos participaram em cerca de 30 guerras no mundo, a Rússia em seis.

No Mar da China, navios e aviões da China e dos Estados Unidos provocam-se reciprocamente, aumentando a possibilidade de conflito. De 2000 a 2021, o PIB dos Estados Unidos foi de US$ 10,3 trilhões para US$ 23,3 trilhões, a China de US$ 1,2 trilhões para US$ 17,7 trilhões. A China reivindica Taiwan, responsável por 90% da produção mundial dos supercondutores na vanguarda do conhecimento, os Estados Unidos defendem a sua autonomia. Os supercondutores são fundamentais na determinação do poder econômico e político das nações no século XXI. A luta que era antes por colônias, depois por petróleo, agora é por supercondutores.

Na música de Rita Lee, “Alô, alô Marciano, aqui quem fala é da Terra, pra variar, estamos em guerra, você não imagina a loucura, o ser humano tá na maior fissura porque, tá cada vez mais down in the high society”. O mundo é cego, e marcha para a sua possível autodestruição, na contraposição do mercado e da crise ecológica que se aproxima.

Pensamento do Dia

 


Uma breve história de Marte

Dos filmes e livros às sondas de exploração da NASA, Marte é sinônimo de fascínio e mistério. Haverá vida no planeta vermelho? O planeta Marte está sempre nas manchetes. Recentemente, foi a descoberta de água líquida fluindo na sua superfície, e mais um tanto acumulada em crateras. A lista de filmes sobre Marte ou marcianos é longa. O filme de Ridley Scott, Perdido em Marte, baseado no livro de Andy Weir, lotou cinemas pelo mundo afora. Parece que o planeta vermelho não quer ser ofuscado pela Lua, especialmente agora que o bilionário Elon Musk diz que quer colonizar o planeta com sua empresa SpaceX.
Na mitologia greco-romana, Marte é o deus da guerra, guardião dos soldados e dos fazendeiros. A conexão com a guerra pode ser traçada aos egípcios. Os gregos o chamavam de Ares, um dos deuses do Olimpo, filho de Zeus e Hera. A cor avermelhada de Marte, plenamente visível a olho nu, inspira certo temor, dando ao planeta um ar de mistério. Que tipo de criatura pode habitar um mundo que aparenta ser coberto de sangue? Com a astronomia restrita a observações a olho nu até 1609, pouco foi aprendido sobre Marte até então. Entre 1601 e 1609, o astrônomo alemão Johannes Kepler usou o planeta para deduzir que sua órbita tinha a forma de uma elipse, e não a de um círculo perfeito. Talvez a inspiração de Kepler tenha vindo do impulso guerreiro atribuído a Marte, refletido na sua órbita um tanto excêntrica (no sentido de não circular).

O astrônomo bem sabia que sua visão ruía milênios de conhecimento astronômico, e que forçaria uma nova atribuição de imperfeição aos desenhos celestes. {14} Já bem na era dos telescópios, e aproveitando a aproximação de Marte durante um período de ótima visibilidade em 1877, o astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli observou certos detalhes do relevo marciano que descreveu usando a palavra italiana “canali”. Mesmo que Schiaparelli estivesse se referindo às longas depressões e sulcos na superfície de Marte, algumas pessoas acreditaram que houvesse descoberto canais escavados, que cruzavam a superfície do planeta em padrões extremamente regulares.

Na imaginação popular, os canais logo se transformaram em vias artificiais, construídos por uma antiga e sábia civilização, dirigindo água dos polos aos centros urbanos das áreas equatoriais, castigadas por terríveis secas. Centenas de canais foram “observados” e batizados, mesmo se revelados apenas através de observações munidas de telescópios. Estranhamente, as fissuras recusavam-se a aparecer em fotografias tiradas com os mesmos telescópios. Astrônomos ofereceram várias explicações para essa situação um tanto peculiar, argumentando que técnicas fotográficas precisam de um longo período de exposição, tornando-as, assim, mais sensíveis a flutuações térmicas na atmosfera. Segundo eles, essas flutuações comprometem a qualidade das imagens fotográficas, apagando qualquer traço de existência dos canais.

Algo semelhante ocorre quando viajamos em estradas com o asfalto aquecido pelo Sol e observamos imagens distorcidas à nossa frente. Astrônomos de excelente reputação acreditaram com entusiasmo na existência dos extensos canais marcianos. Entre eles, o milionário e astrônomo amador americano Percival Lowell ficou fascinado com a possibilidade de vida inteligente em Marte. Em 1895, Lowell publicou um livro expondo suas ideias com grande convicção e autoridade. Usando sua fortuna pessoal, fundou um observatório em Flagstaff, no estado do Arizona, inicialmente dedicado exclusivamente a observar Marte. Não é por coincidência que H. G. Wells publicou seu livro A Guerra dos Mundos em 1898, um dos grandes clássicos da ficção científica, que conta a história de uma invasão marciana.


No livro, Wells usa os marcianos como metáfora para o futuro da humanidade, dominada pelos grandes impérios do final do século XIX (Austro-Húngaro, Otomano, Britânico, a América do Norte emergente...). Da mesma forma que duas espécies inteligentes não podem coexistir no mesmo planeta, uma conflagração entre os grandes impérios seria inevitável no futuro próximo. (Que se materializou, profeticamente, com a Primeira Guerra Mundial.) Os marcianos, forçados a abandonar o seu mundo, haviam criado terríveis máquinas de destruição, um aparato bélico que fazia das nossas armas brinquedos de criança. Não foi nossa inteligência ou estratégia que derrotou os invasores, mas a Natureza.

Wells, imbuído dos ensinamentos de Darwin e sua teoria da evolução, sabia que qualquer espécie, inteligente ou não, só está bem adaptada ao ambiente onde vive. Os marcianos não tinham os anticorpos necessários para se defender contra os nossos micróbios. Inspirado pelo livro de H. G. Wells, ainda mais dramático foi o programa de rádio criado e produzido em 1938 pelo genial Orson Welles, alertando os habitantes do estado de Nova Jersey para uma invasão de marcianos. A Guerra dos Mundos tornou-se “real” logo antes da Segunda Guerra Mundial. A série de transmissões, na forma de noticiários urgentes, causou verdadeiro pânico na população local.

A maioria das pessoas acreditou passivamente nos noticiários, sem questionar a existência de uma civilização tecnologicamente avançada em Marte, aparentemente com péssimas intenções com relação à Terra e seus habitantes.

Essa credibilidade só foi possível porque o planeta vermelho ocupava já um local privilegiado na psique coletiva como um mundo habitado por seres mais avançados, cuja índole destruidora causaria o nosso fim. Poucos entenderam que o que viam nos marcianos era um reflexo de nós aqui na Terra, uma espécie que, movida pela ganância e pela sede de poder, cria meios terríveis de autodestruição.

As duas versões do livro de Wells para o cinema – a primeira, de 1953, dirigida por Byron Haskin, e a segunda, de 2005, dirigida por Steven Spielberg – adaptam a narrativa para a realidade social da época. A versão de 1953 ecoa a era atômica e a Guerra Fria. Os marcianos querem aniquilar os humanos, sem, aparentemente, um motivo óbvio. Na versão de 2005, o foco é a desintegração da família e o medo da ameaça terrorista. Os monstros que vêm de Marte são os monstros que carregamos em nós mesmos.

Durante as décadas de 1960 e 1970, as várias sondas espaciais da linha Mariner e Viking provaram definitivamente que os extensos “canais marcianos” não existem. Também não existe qualquer traço de uma civilização inteligente em Marte, no presente ou no passado. Por outro lado, sabemos agora que o planeta apresenta uma geologia extremamente rica, mesmo se desértica e com temperaturas muito baixas. Vales e leitos de rios, vastos sistemas de cânions com mais de 4 mil quilômetros de extensão, enormes vulcões extintos, tudo isso indica que, no passado, Marte era um planeta muito diferente do que é hoje, com muita água e até, quem sabe, clima tropical.

Com as sondas mais recentes, que pousaram em Marte e exploraram a região vizinha ao seu local de pouso com pequenos jipes robóticos, ficou claro que o planeta é mesmo um deserto gelado, semelhante a certas regiões do Oeste americano. Seu tom avermelhado vem do acúmulo de poeira na superfície, formada por vários compostos de ferro e oxigênio. Essa poeira é levantada com frequência em terríveis tempestades de areia, que podem ser vistas até por telescópio. Apesar de alguns alarmes falsos, a vida não foi detectada em Marte. Se existe vida lá, será simples, provavelmente bacteriana.

Difícil que seja na superfície, dado que a atmosfera de Marte é muito fina, em média com menos de 1% da densidade da atmosfera terrestre: sem a proteção da atmosfera, a superfície é eficientemente esterilizada pela radiação ultravioleta oriunda do Sol. Para piorar, o gás carbônico (o que a gente exala quando respira) compõe 96% da atmosfera, tornando-a inviável para seres como nós. Com massa menor do que a Terra, em Marte o peso dos humanos seria em torno de 40% menor. Bom lugar para dietas, mas não para passar as férias. Seria uma viagem de pelo menos seis meses, sem qualquer garantia de volta. Missões recentes confirmaram a presença de água líquida em certas encostas de Marte.

Estrias escuras em terreno seco indicam a presença de água, semelhante ao que ocorre com o concreto, que escurece quando molhado. A alta quantidade de vários tipos de sais na água faz com que permaneça líquida mesmo a baixas temperaturas, no caso em torno de -30 graus Celsius. Infelizmente, essa alta salinidade também dificulta a existência de vida, semelhante ao que ocorre no Mar Morto em Israel e, mais dramaticamente, na lagoa de Don Juan, na Antártica, com salinidade 9,6 vezes mais elevada que no Mar Morto.

Mesmo que a possibilidade de a vida existir nessas condições seja baixa, só saberemos se alguma criatura pode sobreviver nessas condições extremas se tivermos a oportunidade de investigar a área diretamente. Apesar de parecer uma decisão simples, enviar uma sonda para essas regiões é um processo não só caro como complexo. O maior problema é a possibilidade de contaminação, isto é, de a própria sonda levar consigo criaturas terrestres, bactérias ou vírus. Certamente, numa questão dessa grandeza não queremos ser enganados, especialmente se a vida descoberta em Marte for idêntica à encontrada aqui, o que seria muito suspeito. Não há dúvida de que a descoberta de vida extraterrestre seria uma das maiores notícias de todos os tempos. Contemplar a existência de outras formas de vida é contemplar a natureza de nossa própria existência como seres humanos.

Até que ponto somos únicos e especiais? Sabemos hoje que apenas em nossa galáxia existem em torno de 250 bilhões de estrelas, e que a maioria delas têm planetas girando à sua volta. Devemos, também, incluir as luas, que são potencialmente plataformas para a vida. Isso significa que existem trilhões de mundos apenas em nossa galáxia, cada qual com sua própria composição e história. Se as leis da física e da química são as mesmas nesses mundos – e sabemos que são –, fica difícil imaginar que somos o único planeta com vida.

A probabilidade de vida extraterrestre é alta, mesmo se limitarmos nossa busca à Via Láctea e a criaturas semelhantes a nós, com química baseada em carbono e dependendo de água líquida. Astrônomos que trabalham nessa área – chamada de astrobiologia – especulam que teremos indicação indireta de que a vida existe em outro planeta (fora do sistema solar) em duas ou três décadas. Essa “detecção” se dará através da análise da composição da atmosfera do planeta, que, otimisticamente, teria gases associados à presença de vida, como oxigênio e ozônio. Vale lembrar, no entanto, que detectar vida não é o mesmo que detectar vida inteligente. Existe uma diferença enorme entre as duas coisas, a vida inteligente sendo certamente muito mais rara. (Veja ensaio anterior, “A questão alienígena”.)

A vida existe na Terra há pelo menos 3,5 bilhões de anos. Em números arredondados, durante os primeiros 3 bilhões de anos, a vida aqui consistia apenas em seres unicelulares. A complexidade dos dinossauros veio muito depois. Nós estamos aqui apenas há 200 mil anos, resultado de uma série de mutações genéticas e acidentes cósmicos. A vida não é como uma semente, que brota e vai dar numa grande árvore. A vida não tem um plano final. A existência de inteligência é a exceção e não a regra. Essa revelação da ciência moderna põe nosso medo dos marcianos num outro patamar, decididamente o da ficção científica. Voltando à obra de H. G. Wells, é melhor tomá-la como metáfora dos perigos que nossa espécie confronta no presente e no futuro próximo. Numa era em que a automação cega e a distância entre nós e o resto da vida em nosso planeta aumentam impunemente, a raridade da vida deveria ressoar com uma nova identidade para a humanidade, guardiões da Natureza num Universo profundamente hostil à vida. É hora de repensar nossa importância e raridade, tomando o destino da vida e do nosso planeta em nossas mãos.
Marcelo Gleiser, "O caldeirão azul"

Ensaio sobre a surdez

Um motorista parado no sinal descobre subitamente que perdeu a visão. Assim começa o "Ensaio sobre a Cegueira", do escritor português José Saramago. Um a um, os habitantes da cidade percebem que já não podem mais ver. Como muitos agora não podem mais ouvir.

No romance de 1995, a “treva branca” se espalha de forma incontrolável. Como se a lembrar a responsabilidade dos que ainda podem ver, quando muitos dos demais habitantes da cidade se acostumam à recente cegueira.

Se ainda estivesse por aqui, diante de duas guerras e da cacofonia das redes sociais, Saramago poderia escrever um novo ensaio, mas desta vez sobre a surdez. Ou sobre a responsabilidade dos que ainda ouvem quando se espalha a surdez – não como epidemia, mas como opção.

A inspiração poderia bater-lhe à porta por meio das imagens do sofrimento de jovens russos e ucranianos, israelenses e palestinos. Homem de esquerda por toda a vida, ele teria suas preferências políticas. Mas não deixaria de perceber como esse sofrimento comum nos revela tão humanos.

Hoje, além de opcional, a surdez é seletiva. A transmissão instantânea de imagens das guerras é rapidamente seguida pela divulgação igualmente instantânea de opiniões e julgamentos em apressadas redes sociais.

Quando a imagem de uma jovem pessoa atingida pela guerra coincide com a posição política de um candidato a influenciador, esse candidato rapidamente a divulga, acompanhada das mais ácidas legendas.

Se a imagem é a de uma igualmente jovem pessoa atingida pelas armas do lado pelo qual se nutre simpatia, opta-se por não a retransmitir. Ouve-se o choro da pessoa que está de seu lado. E não se ouve o lamento de alguém que sofre do outro.


A surdez seletiva já chegou a debates universitários e os interrompeu com sua intolerância. Qualquer palavra fora de lugar já será suficiente para motivar um julgamento sumário. E, quando se decreta que alguém se encontra do lado oposto, não se ouvem mais seus argumentos.

Há décadas a rivalidade entre israelenses e palestinos motiva paixões em todo o mundo. Desde que se decidiu permitir a criação de um Estado judaico naquela região, após o holocausto da Segunda Guerra Mundial, abriu-se um fosso político.

Sem o estabelecimento igualmente de um Estado palestino, têm alertado as mais sensatas vozes ao longo das últimas décadas, não haverá estabilidade na região.

Depois de muitas guerras, rebeliões e revoltas ao longo do século 20, a situação – ainda que tensa como sempre – parecia razoavelmente sob controle. Até que o mais cruel e violento ataque terrorista do grupo Hamas mostrou que nada mais seria como antes.

Os israelenses, até então divididos pelo governo radical de extrema direita de Benjamin Netanyahu, logo se uniram em emergência nacional para organizar uma resposta ao Hamas. E o mundo inteiro passou a temer as consequências de um iminente ataque israelense a Gaza.

Enquanto os generais de Israel planejam seu contra-ataque, o planeta é inundado com sons e imagens de palestinos em fuga. Da mesma forma como já havia sido invadido, dias antes, por sons e imagens do assassinato de jovens que dançavam em uma festa em Israel.

A guerra nos novos campos de batalha é logo seguida por uma guerra disso que nos habituamos a chamar de narrativas.

Nas redes sociais os sons e imagens de sofrimento são convertidos em propaganda política. Se o sofrimento é de alguém de um campo de simpatias, logo acusa-se o campo adversário.

Mas não se demonstra nas mesmas redes empatia com o sofrimento de pessoas comuns, ainda que crianças ou idosos, do lado que se considera inimigo.

Assim corremos todos em direção a uma desumanização. Uma tendência que já marcou diversas sociedades ao longo dos séculos antes de grandes conflitos. Vale tudo em nome de alguma causa.

Os sinais que nos chegam do Oriente Médio não são promissores. Ao contrário, indicam a possibilidade de uma guerra longa que, na pior das hipóteses, poderá atrair novos e perigosos atores ao longo dos próximos meses.

Até aqui só parece claro que dificilmente qualquer lado conseguirá total sucesso por meios militares. Sem uma ampla negociação não haverá paz duradoura.

Por isso as palavras neste momento importam tanto. E por isso os adeptos da surdez seletiva precisam estar atentos. A própria estabilidade global pode estar em risco.

Um esboço de possível declaração do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas a respeito do conflito já chegou às mãos do presidente Luís Inácio Lula da Silva. Grandes discussões estão à frente.

O acaso deu ao Brasil a responsabilidade de dirigir o conselho em um momento de grave crise. E a oportunidade de estimular os representantes de cada país ali representado a ouvirem uns aos outros para que se mantenham abertas as portas da negociação.

Ver fotos e vídeos de guerra

Ainda que tente, não consigo parar de ver fotos e vídeos de guerra. Não sei por que tenho feito isso, mesmo sentindo tanto desconforto. Talvez esteja tentando entender o que nunca poderá ser entendido. Talvez esteja tentando humanizar as notícias, dar a elas rostos e histórias, ainda que, paradoxalmente, veja esses mesmos rostos na velocidade constrangedora de um scroll. Ou talvez só esteja tentando aliviar a angústia dos impotentes com a movimentação débil de um dedo indicador.

Fui para a minha estante buscar ajuda. Lá estava Susan Sontag, com seu “Diante da dor dos outros”. Nessa obra, a autora comenta que durante muito tempo as pessoas acreditaram que, se o horror dos conflitos fosse vívido e real o bastante aos olhos do grande público, as guerras cessariam.

Sontag cita como exemplo uma tentativa feita por Ernst Friedrich, em 1924, com a obra “Guerra contra a Guerra!”. Este livro de fotos (à venda por um punhado de dólares na Amazon), lançado logo depois da Primeira Guerra, foi concebido para ser uma verdadeira terapia de choque, mostrando ao público fotos impactantes do campo de batalha e do seu entorno.

Focado em construir com imagens uma narrativa linear e persuasiva, o livro começa com fotos de soldadinhos de brinquedo (alguma dúvida de que o belicismo tem gênero? Até ontem dávamos aos meninos armas de plástico).

Segue com fotos de igrejas e casas destruídas, vilarejos arruinados, carros destroçados, enforcamentos, prostitutas seminuas em bordéis militares, soldados e civis mortos, corpos de crianças e, por fim, sepulturas. Tudo isso com legendas, por vezes cáusticas, em quatro idiomas.


A parte mais forte da edição fica no meio dessa narrativa, em uma seção nomeada “Faces da Guerra”, com 24 closes de soldados com os rostos deformados por cicatrizes —hoje essas imagens estão a um Google de distância de qualquer pessoa e seguem sendo extremamente perturbadoras.

Após o lançamento, o libelo antibeliscista foi denunciado por veteranos de guerra e organizações patrióticas e recolhido de diversas livrarias. Ainda assim, foi celebrado em alguns países, com dez edições na Alemanha e traduções em diversas línguas, fazendo com que muitos pacifistas acreditassem que sua circulação teria uma influência decisiva na opinião pública no sentido de evitar futuros conflitos. Alguns anos depois, estourava a Segunda Guerra.

Estamos falando de uma publicação que foi distribuída apenas em uma parte do mundo. De qualquer forma, parece haver nessa tentativa frustrada de conscientização alguma universalidade.

Desde o ano em que “Guerra contra Guerra!” foi lançado, a produção de imagens deu um salto. Se antes as fotos eram poucas, reveladas em papel filme, impressas em edições de alcance limitado e atreladas a algum custo, agora vemos imagens produzidas em tempo real, a câmera muitas vezes na mão dos civis durante o ataque, o quadro tremido por fugas e explosões, o rosto dos narradores se comunicando de forma veemente ou desesperada a um palmo do nosso, com dezenas, centenas ou milhares de comentários e replicações. Que influência a produção dessas imagens dolorosas vem tendo na tomada de decisões dos últimos conflitos? Acredito que ainda não seja possível saber.

De qualquer forma, parece não haver horror e explicitude capazes de frear os infernos que desde sempre o homem inventa para si.