quinta-feira, 9 de abril de 2020

Ciência e política

Com a mesma ênfase que defendeu no passado o uso da malfadada “pílula do câncer”, apesar de não ter formação em medicina, o presidente Jair Bolsonaro vem propondo o uso da hidroxicloroquina como o remédio mais eficaz para conter a pandemia do novo coronavírus. “Há 40 dias venho falando sobre isso. Sempre busquei tratar da vida das pessoas em 1.° lugar, mas também se (sic) preocupando em preservar empregos. Fiz, ao longo desse tempo, contato com dezenas de médicos e chefes de Estados de outros países”, disse ele nessa quarta-feira, após criticar pelo Twitter dois conhecidos médicos que se recusaram a divulgar o que os curou da covid-19.


Além de sugerir que tomaram remédios com base na hidroxicloroquina, Bolsonaro alegou que eles se recusaram a prestar essa informação por assessorarem o governador João Doria, seu adversário político. “Esse segredo não combina com o Juramento de Hipócrates que fizeram. Que Deus ilumine esses dois profissionais, de modo que revelem para o mundo que existe um promissor remédio no Brasil”, concluiu Bolsonaro.

A insistência de Bolsonaro em apresentar a hidroxicloroquina como “remédio promissor” dá a medida do modo como vem se comportando no combate à pandemia da covid-19, privilegiando seus interesses políticos. Ao recomendar o uso desse medicamento “promissor” baseado em seus “contatos com médicos e chefes de Estado”, mostra que não conhece o que é a ciência nem como se desenvolve o trabalho científico. Deixa claro que não sabe que a ciência trabalha com erros e acertos e que a busca de respostas costuma se dar pela elaboração de hipóteses e formulação de novas perguntas.

Todas as vezes em que surgem novas doenças e epidemias, a ciência oferece cenários e sugere medidas de controle enquanto os pesquisadores se esforçam para isolar o vírus em laboratório para compreender a doença e desenvolver vacinas e tratamentos. Esse processo é complexo, exigindo respeito a protocolos, publicações de artigos em revistas especializadas e intensos debates entre pesquisadores, até chegar a um consenso na comunidade científica. O tempo da ciência, pois, é incompatível com o tempo da política.

Na ciência, as pesquisas têm de ser públicas, para que possam ser discutidas, contestadas e aprofundadas. Elas só conseguem avançar, convertendo suas descobertas em bem comum para a humanidade, com base em fundamentos empíricos. Já na política costumam prevalecer decisões açodadas, tomadas com enviesamento ideológico e relevando verdades científicas consolidadas.

Se a relação entre ciência e política já é tensa em tempos normais, nas áreas de ciências biológicas e de saúde essa tensão é ainda maior em tempos de pandemia. Entre outros motivos porque, enquanto os governantes tendem a pensar apenas em sua popularidade e seus projetos eleiçoeiros, os cientistas têm de deixar de lado indagações que fazem em períodos de normalidade para buscar novas fontes de recursos e desenvolver às pressas novos projetos de pesquisa. Como revelam números da Web of Science, compilados pelo professor Peter Schulz, da Unicamp, essas tensões estiveram presentes em todas as vezes que surgiram epidemias relacionadas a cepas mais antigas do coronavírus, desde 2000. Isso porque, ao oferecer informações atualizadas e conhecimento de ponta, a ciência apontou a necessidade de políticas públicas que não estavam entre as prioridades dos governantes. Muitas vezes, além disso, essas tensões são exponenciadas pela tendência de dirigentes populistas de se apropriarem de resultados preliminares de pesquisas para convertê-las em dogmas usados para desqualificar adversários políticos.

Entre nós, infelizmente, enquanto os cientistas continuam cumprindo seu papel, conscientes de que a divulgação de eventuais descobertas neste momento precisa ser criteriosa, Bolsonaro contesta o ministro da Saúde. Critica médicos que integram a equipe de seus adversários. E recorre a outros de sua confiança, para que façam afirmações sobre as quais ainda não há consenso científico.

Pensamento do Dia


O coronavírus acordou o Brasil

Até onde irá Bolsonaro? Ou até onde o Brasil vai suportar Bolsonaro? Vivemos a crise mais grave do último meio século, e pior, não temos na Presidência da República um líder, mas sim produto de um processo eleitoral atípico, o de 2018, que levou Jair Bolsonaro ao principal posto do Executivo federal. No seu primeiro ano de mandato cometeu inúmeros equívocos, tanto na política interna, como na economia ou nas relações exteriores. O presidente atacou sistematicamente o Estado Democrático de Direito, mas acabou recebendo respostas tímidas. Entusiasmado frente à frágil resistência encontrada, achou que poderia fazer o que bem desejasse, pois, a sociedade estava anestesiada. Errou, ainda bem – ainda bem para o Brasil. Hoje o país identifica nele o grande problema, superior ao coronavírus.


Por paradoxal que seja, foi necessário chegar ao Brasil a pandemia para que a sociedade tomasse ciência de que não era mais possível ignorar a incompetência, a irresponsabilidade, a inépcia, o reacionarismo de Jair Bolsonaro. Durante meses ele fez com que passássemos vergonha, o Brasil virou motivo de chacota internacional, perdemos a respeitabilidade no campo da política externa. Sua política fez do Itamaraty um mero puxadinho da Casa Branca. A economia ficou estagnada, o discurso supostamente liberal de Paulo Guedes, de transformar os graves problemas nacionais em questões banais, que seriam resolvidas pela privatização e pelo livre mercado, deixariam Stuart Mill envergonhado. A ciência foi rebaixada e a educação foi tomada por incapazes idiotizados à serviço de um indivíduo que se autoproclama filósofo, isto quando encerrou seus estudos na antiga primeira série do curso ginasial. Os direitos humanos foram vilipendiados e as políticas sociais foram desqualificadas, rastaqueras assumiram o poder e transformaram a ignorância em saber, como se vivêssemos, no Brasil, o “1984” de George Orwell.

Foi necessário o coronavírus para o gigante acordar. Agora a tarefa é impedir que o desastre se espalhe. Infelizmente teremos de conviver com milhares de mortos e com a recessão econômica, mas podemos evitar males maiores se nos unirmos. As autoridades da saúde pública estão trabalhando bem e a maioria dos governadores estão seriamente comprometidos em minimizar os terríveis efeitos econômicos. A população entendeu que juntos podemos muito. Vamos sair maiores da crise do que entramos. Mas temos uma tarefa essencial a cumprir: Bolsonaro não pode continuar na Presidência da República.

Vai jogar no lixo?

 A curva estaria muito pior, teríamos mais mortes sem o isolamento. Mas temos que desassociar um achatamento da curva com a ideia de que está pronto para voltar para a rua. As pessoas confundiram. O governo atuou rápido e de maneira correta. Então, a população joga isso no lixo! Vai para o calçadão caminhar!
Edmar Santos, secretário de Saúde (RJ)

Bolsonaro está atrás de culpados para salvar a própria pele

Um presidente da República pode muito, mas não pode tudo. Entretanto, por dispor de um poderoso aparelho de coleta de informações, ele pode não saber tudo, mas sabe muito mais do que qualquer outra pessoa no país ou fora daqui.

Ao jornalista Luiz Datena, da Rede Bandeirantes de Televisão, sem que ele nada lhe tivesse perguntado sobre isso, Jair Messias Bolsonaro disse, sem mais nem menos, e depois mudou de assunto: “Não é hora de derrubar presidente”. Como?

Jamais um presidente brasileiro disse algo parecido a respeito de si próprio. O que ele sabe que não sabemos? Existe alguma trama para derrubá-lo? Quem está por trás dela? Cercado por militares de confiança, como ele pode ter medo de ser deposto?

Na melhor das hipóteses foi mais uma manifestação da paranoia de Bolsonaro que o acompanha desde o seu tempo de deputado. À época, em muitas ocasiões, ao sair da Câmara, ele se agachava ao lado do seu carro à procura de uma possível bomba.

Bolsonaro entende de explosivos. Planejou detonar alguns dentro de quarteis quando era um simples soldado, a reclamar sempre do valor do soldo. Foi por isso que acabou processado e expurgado do Exército, acusado de indisciplina e conduta antiética.


Já como presidente eleito e empossado, pelo menos uma vez ele ajoelhou-se para conferir se havia uma bomba debaixo do carro que o transportaria do Palácio da Alvorada para o Palácio do Planalto. Morre de medo de drones e vive olhando para o céu.

Na hipótese mais provável, a advertência disparada por Bolsonaro durante a entrevista trai a preocupação com os possíveis efeitos sobre o seu mandato da desastrosa maneira como tem conduzido até aqui o combate à pandemia que mudará o mundo para sempre.

Pois como fez questão de afirmar o ministro Luiz Henrique Mandetta, Jair Messias Bolsonaro é quem está no comando. A julgar por sucessivas pesquisas nacionais de opinião pública, ele tem mais atrapalhado do que ajudado a derrotar o vírus.

Bolsonaro ouviu do deputado Osmar Terra (PMDB-RS), candidato à vaga de Mandetta, que o vírus causará a morte de muita gente, principalmente de velhos, e que não há o que fazer. A contaminação só diminuirá quando muitos forem contaminados.

A taxa de letalidade da nova peste, ou seja, a proporção das mortes registradas em comparação com o número de casos confirmados, deu um salto de 42% nas últimas 24 horas. Era de 3,5% em 1ª de abril – 7 mortos em 200 casos. Agora, 5% – 10 mortos em 200.

Em 24 horas, o número de mortos aumentou em 16%, um novo recorde. Passou para 800, o equivalente à lotação completa de 4 Airbus 320. Ou três vezes mais do que o número de mortos pelo rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais.

O vírus começou a ceifar vidas em favelas do Rio. Na Rocinha, onde 150 mil pessoas se amontoam em minúsculas casas e circulam por vias estreitas, foram dois óbitos. Mais quatro em outras comunidades. O prefeito decretou o Estado de Calamidade.

Bolsonaro está à procura de culpados para salvar sua pele. Os governadores são um dos seus alvos – e voltou a distanciar-se das medidas restritivas tomadas por eles na 5ª fala à Nação que fez desde que chamou a pandemia de gripezinha, resfriadinho.

Sem coragem para atacar diretamente o confinamento social apoiado por Mandetta e adotado no resto do mundo, estimulou o retorno ao trabalho porque é preciso também salvar a economia. Não arredou pé de nenhuma de suas ideias, apenas baixou o tom.
Como não bastasse, tornou a prescrever o uso da Cloroquina como se ela fosse capaz de curar infectados. O médico Roberto Kalil, do hospital Sírio Libanês, em São Paulo, tomou um coquetel de remédios para se curar – entre eles a Cloroquina.

Mas nem ele nem seu pneumologista garantem que a droga o livrou da morte. Por sinal, o pneumologista foi contra o uso da droga por falta de provas de que ela seja eficaz contra o vírus. Kalil contou que tomou o remédio para não “se arrepender depois”.

Por que a Cloroquina não está sendo usada em outros países – nem mesmo nos Estados Unidos onde o presidente Donald Trump é seu maior garoto propaganda? Bolsonaro tem evitado a imprensa para não ter que responder a essa e a outras perguntas.

O que sobrará da ideia inicial

Ao fim desta pandemia, pouca coisa vai sobrar da agenda com a qual o ministro Paulo Guedes chegou ao governo. As reformas foram engavetadas, o plano Mansueto foi deixado de lado por outro que socorre os estados na emergência, a empresa que está para ser privatizada ajudou a fazer o caminho para o pagamento do auxílio emergencial, a proposta de zerar o déficit público se transformará no maior déficit da nossa história.

Ontem, o governo, de um lado, a Câmara e os governadores, de outro, brigavam em torno de quanto transferir aos estados e municípios neste momento. O chamado Plano Mansueto era uma excelente ideia para um outro mundo, e certamente voltará a ser. Ele induz os estados e municípios a se ajustarem e buscarem notas de crédito melhores e os incentiva com recursos e avais conforme a nota alcançada. Mas como falar em ajuste num momento em que despencam as arrecadações de ICMS e ISS? Agora, a Câmara decidiu aprovar projeto que facilita as transferências para a sustentação da receita dos estados e municípios e suspende a cobrança das dívidas com o Tesouro.

O deputado Rodrigo Maia explicou ontem que, se deixasse o Plano Mansueto, ele seria desvirtuado, porque estavam sendo incluídas emendas com propostas de gastos de longo prazo:

– O Plano Mansueto é correto, vai ter que ser enfrentado, mas neste momento todos os estados vivem a mesma angústia, que é a necessidade de receitas para enfrentar a crise.

A pandemia mudou completamente tudo no mundo, mas o fato é que o projeto do governo já não ia bem. O que houve de privatização foi a venda de participações ou blocos de ações feita por algumas empresas e bancos públicos. A abertura da economia também teve pouco avanço. O projeto liberal patinou no primeiro ano de governo. Agora, devido às circunstâncias, ele tem que ser deixado de lado, e economistas preparados para fazer um programa têm que fazer o inverso.

A versão do governo, dita em várias entrevistas, é que o país estava decolando quando foi abatido pela crise. Não é verdade. O primeiro trimestre já não vinha dando bons sinais de recuperação da economia. O comércio caiu 1,4% em janeiro e subiu menos em fevereiro, 1,2%. O setor de serviços vinha de duas quedas no final do ano passado, subiu apenas 0,4% em janeiro e voltou a cair 1% em fevereiro. Na indústria, as duas altas dos meses de janeiro e fevereiro não recuperaram as perdas de novembro e dezembro. Olhando apenas para fevereiro, último mês antes da pandemia, o Ibre/FGV projetou alta de apenas 0,1% no seu Índice de Atividade Econômica (IAE).

Na entrevista concedida ontem pela área econômica foi dito que eles estavam se preparando desde dezembro para esta crise. Isso está bem distante dos fatos. A verdade é que até o começo de março o governo continuava defendendo apenas a aprovação das reformas. Perguntei a um integrante graduado da equipe econômica, no dia 5 de março, que resposta seria dada à crise do coronavírus e ouvi que havia apenas três infectados e que o Brasil era uma economia fechada que seria menos impactada. Naquele mesmo dia, o número subiria para oito. E ontem já havia 800 mortos.

Ontem, em entrevista coletiva, o secretário Adolfo Sachida sustentava que o Brasil fora o mais rápido a responder, do ponto de vista da economia, e o secretário Waldery afirmou que é o segundo emergente que mais está gastando, atrás apenas do Chile. Isso não é um campeonato de despesa. O que é preciso é fazer o dinheiro realmente chegar. Nesta quinta-feira é que começará de fato a acontecer o pagamento da primeira parte do auxílio emergencial. Anunciar medidas não é o mesmo que realizá-las. É preciso reduzir o tempo dedicado à reescrever a história para se empenhar mais em garantir a execução das medidas.

O banco BNP Paribas estima que o deficit primário este ano poderá chegar a 7,3% do PIB, com uma combinação de aumento de gastos e queda de arrecadação. Ao final desta crise, a dívida bruta poderá alcançar um patamar recorde, de 90% do PIB. Já o UBS tem números menos piores. O deficit este ano pode ir a 7%, com endividamento de 86% no ano que vem. Mas ele acredita que até em 2021 o governo teria um forte deficit primário, de 4% do PIB.

A conta será salgada. O mais importante agora é implantar o que vem sendo anunciado. E no momento seguinte preparar o plano da reconstrução da economia e dos parâmetros fiscais, para o dia em que este pesadelo passar.

Imagem do Dia

A prefeitura de Tuchín, em Córdoba (Colômbia)
prende quem desrespeita quarentena

Vacância de poder

Jair Messias Bolsonaro já não governa o País. Está a reboque das decisões. Tutelado por forças institucionais, inclusive militares, que determinam a ele o que e como fazer — alinhamento a governadores, foco nas medidas econômicas e menos estardalhaço circense, essa última orientação difícil de cumprir dada sua natural vocação ao papel de palerma descompensado. Não são meros conselhos, mas alertas que ele vem recebendo agora diariamente, sob pena de ser apeado da cadeira o quanto antes. Congresso, Judiciário, governadores, prefeitos, OMS, políticos em geral, além das Forças Armadas, já iniciaram uma reação em cadeia contra o Planalto. O vice-presidente, general Hamilton Mourão, habilitou-se ao papel de bombeiro e se credencia, cada dia mais, à condição de líder no comando. Em clara reprovação às palavras de ordem do capitão, alinhou-se àqueles que rebatem em público os desatinos do chefe. O ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello encaminhou à Procuradoria-Geral da República (PGR) pedido de afastamento de Bolsonaro. Sua petição, protocolada na Corte no último dia 25, vem se somar a outros cinco requerimentos no mesmo sentido. No Parlamento, o impedimento do chefe da Nação, por atos e palavras que caracterizam infrações em série à “lei de responsabilidade social”, virou voz corrente. Trata-se agora de acertar quando e como fazê-lo. A preservação da democracia é o pilar que sustenta o movimento. Fecha-se o cerco contra a desordem voluntariosa de Messias. É preciso resgatar a estabilidade maculada por quem tem apostado na ruptura e no confronto — inclusive com integrantes e subordinados do próprio governo — para buscar soluções autoritárias. Jair Bolsonaro, que nunca deixou de flertar com a ditadura, elogiar notórios torturadores e adotar a tática de converter em inimigos, traidores, qualquer um que atravesse o seu caminho, persegue, é fato, o inconfessável projeto de poder totalitário. Indagado recentemente em um programa de televisão se estaria disposto a dar um golpe, evitou negar de maneira categórica e saiu-se com o enigmático enunciado do “quem quer dar um golpe não vai falar que vai dar”. Ao contrariar a unanimidade nacional e do planeta no monumental desafio do confinamento para conter a doença, e assim minimizar perdas humanas e econômicas, Bolsonaro o faz de caso pensado. Aposta no caos para consagrar o maquiavélico ardil de projetar-se como salvador de uma pátria em ruínas.

Ao final e ao cabo, imagina jogar no colo dos adversários a culpa pela recessão que avança a galope no lombo da covid-19. Tenha certeza: ele não está preocupado com a normalidade do mercado, muito menos com a ameaça à vida de quem quer que seja. Ao falar em interromper o isolamento por decreto (e foi alertado pela Justiça que não conseguiria levar adiante a ideia) e alegar que “infelizmente, algumas mortes ocorrerão, paciência!”, o mito das falanges milicianas move peças do tabuleiro, à sua maneira trôpega, levado tão somente pela obsessão cega da reeleição. Irresponsabilidade é a palavra que lhe cabe. Declarações como a de uma “mera gripezinha, que brevemente passará” ou a de que “é preciso enfrentar o vírus como homem, pô, e não como moleque”, superam a classificação de arroubos disparados ao léu. Fazem parte de um mosaico de demagogias, um script calculado, onde o argumento econômico serve apenas de instrumento para concretizar as ambições pessoais. Seriam os “moleques” as autoridades que, teoricamente, atrapalham o roteiro de estultices para asseverar 2022. Já o “homem”, ele, atleta e mito, destemido, sai às ruas, desrespeitando as regras e pondo em ameaça os próprios seguidores, porque é o herói redentor blindado, capaz de denunciar a existência de uma “histeria”, sem apresentar um único argumento técnico para ir na contramão das medidas tomadas no planeta. Dias atrás, na manobra mais arriscada, antes mesmo do desastrado pronunciamento em cadeia de rádio e TV onde incitava o rompimento da quarentena, Bolsonaro tentou cerrar fileiras com a caserna para conquistar, quem sabe, o aval a uma perigosa aventura de atropelo à Constituição.

Foi pensando nisso que falou em “flexibilizar” as regras de isolamento. Adiantando-se a ele, e assim sinalizando que os quartéis não compactuariam com a quebra da ordem, o comandante Edson Leal Pujol postou um vídeo nas redes sociais do Exército falando que os militares estavam a serviço da mobilização nacional contra o coronavírus. Foi um balde de água fria no intento do capitão. Em poucas horas, o vídeo alcançava 500 mil visualizações, em especial entre membros da tropa, formada por recrutas de baixa renda preocupados em atender as medidas sanitárias deliberadas pelas autoridades. Bolsonaro não se deu por vencido e, naquela mesma noite da divulgação do vídeo de Pujol, insistiu em aparecer fazendo o comunicado elaborado com a ajuda dos filhos. Os ministros militares do Palácio do Planalto desaconselharam o pronunciamento em tom provocativo e evitaram participar da sua feitura e gravação. O presidente não recuou. Foi adiante, não medindo consequências. Novamente, por opção própria, ficava mais uma vez sozinho e ridicularizado nos devaneios. Diante de tantos tropeços, hoje ele parece governar apenas no seu ambiente digital, habitado pela corriola de seguidores fanáticos. Ao tencionar relações com todos os demais poderes, aliados e mesmo apoiadores, perdeu rapidamente sustentação e não é levado a sério em nenhum círculo de Brasília. Governa como rainha da Inglaterra, sem influência e com baixa capacidade decisória. Tentou uma derradeira empreitada com uma campanha publicitária de mau gosto, elaborada às pressas pela Secom, na qual entoava o mantra de “O Brasil Não Pode Parar”. Queimou mais de R$ 4,8 milhões nas esquetes – no momento em que a estrutura médico/hospitalar necessita vitalmente de recursos — e buscou distribuí-los nas redes sociais, via robôs.

Foi logo tolhido pela Justiça, que proibiu a circulação da campanha. Humilhação maior ainda estava por vir. O Facebook, o Instagram e o Twitter, em simultâneo, decidiram retirar do ar, como forma de censura, alguns de seus posts, por distorcerem orientações oficiais de segurança sanitária consagradas no mundo. O capitão acabou por virar uma ameaça. O sisudo jornal britânico “The Guardian” apontou em editorial que Bolsonaro representa atualmente um “perigo para os brasileiros”. A revista americana “The Atlantic” o classificou como “o líder mundial da negação do coronavírus”. O semanário “The Economist” deu a ele a alcunha de “Bolsonero”, em alusão ao polêmico imperador que mandou incendiar Roma, enquanto o “The Washington Post” pediu abertamente em artigo o seu impeachment. Virar chacota global não parece ser um problema. Não pense que ele se incomoda com isso. No estilo tosco e desenfreado, que lhe é característico, deve estar até achando boa a notoriedade, mesmo que na condição de pária do mundo. Desalento e vergonha destruindo a autoestima nacional. O mais grave no espetáculo bizarro de desvarios do mandatário é que ele, decerto, se converteu numa ameaça pública, afrontando às orientações de especialistas de saúde e pondo em risco à vida daqueles que eventualmente pensam em seguir os seus conselhos. Ao instigar a desobediência civil contra o isolamento, Bolsonaro demonstrou que precisa ser contido o quanto antes pelas forças republicanas. Extrapola os poderes de um chefe de Estado, se comporta como líder de seita e seus crimes atravessam a esfera política para alcançar o plano de atentado à humanidade. Credenciais mais do que suficientes para encarar não apenas um processo de impeachment, já dado como inevitável mais cedo ou mais tarde, como também ações nas cortes internacionais, de Haia e mesmo da ONU, onde já vem sendo denunciado. A expectativa é que, daqui por diante, um núcleo de governabilidade seja montado para a travessia desse período turbulento, enquanto se aguarda a sua retirada.

Chacota na Presidência

O presidente de uma nação não pode confrontar a ciência e o bem-estar de seus cidadãos. Além disso, ele está minando a própria popularidade e causando divisões dentro da base de apoio à agenda de reformas econômicas no Congresso Nacional, o que pode conduzi-lo ao impeachment. No plano internacional, ele virou motivo de chacota
Ian Bremmer, presidente e fundador da Eurasia Group, considerada a principal consultoria de risco político do mundo

Nau sem comando

Coesão, perseverança e equilíbrio são fatores fundamentais para o Brasil enfrentar a pandemia do coronavírus. Ao presidente competiria usar a autoridade que a Constituição lhe confere para liderar os brasileiros nessa dura travessia. A missão de comandar é indelegável, quanto mais em tempos de guerra. O Covid-19 pode provocar a morte de 110 mil brasileiros nos próximos meses e a recessão bate à nossa porta. O Brasil, portanto, não precisa que se instale uma crise de autoridade em um quadro tão dantesco.

Infelizmente já está posta, como evidencia o demite-não-demite do ministro da Saúde. O comportamento errático de Jair Bolsonaro, sua falta de foco na defesa da vida e da sobrevivência das pessoas passam para a sociedade a imagem de um presidente emparedado pelos outros dois poderes e por ministros moderados que ora atuam como bombeiros, ora para reduzir danos.

O mais comezinho direito de um presidente é o de nomear e demitir. O de Bolsonaro foi posto em xeque em função de suas tentativas atabalhoadas de livrar-se do ministro que lhe faz sombra. Não que Luiz Henrique Mandetta seja insubstituível ou que sua condução no combate ao coronavírus seja isenta de críticas.


Mas só se demite um general em campo de batalha quando sua estratégia pode levar à derrota ou à desagregação de suas forças. Não é que vem acontecendo com o desempenho de Mandetta, cuja estratégia encontra-se respaldada pela Organização Mundial da Saúde. O ministro acerta quando se pauta pela ciência. É recomendável que não desperdice energias em uma “guerra de estrelas”.

O efeito mais perverso da crise de autoridade é a existência de um governo desarticulado. Ou melhor, de um governo desgovernado. É como se as ações dos diversos ministérios não tivessem relação entre si e inexistisse uma coordenação para dar coerência e eficácia a ação governamental. Não se pede ao presidente que seja o braço operativo dessa coordenação, mas a missão de dar um norte deveria ser dele e de mais ninguém.

Há um conjunto de necessidades que exigem uma ação articulada e transversal. Os desafios são muitos e as carências imensas.

Como fazer para suprir a falta de EPIs ou reorientar a produção nacional para uma “economia de guerra”, capaz de responder por exemplo à demanda por respiradores mecânicos, são questões sem respostas. Também não se sente um esforço conjunto do governo federal para criar novos leitos e UTIs, bem como para avanços de pesquisas em busca de remédios e vacina para o coronavírus.

O general Braga Neto foi indicado para coordenar e dar sentido orgânico à ação de todas as pastas. Teoricamente é capacitado para a missão, por sua experiência como planejador, mas é visível que falta ao governo um Pedro Parente. Mais ainda falta um presidente como Fernando Henrique Cardoso, capaz de tornar menores as crises que adentram o Palácio do Planalto.

A quebra da autoridade presidencial traz consigo o germe da anarquia. O exemplo mais deletério vem do ministro da Educação, Abraham Weintraub, sem a menor noção do papel institucional de um ministro de Estado. Irresponsavelmente, contrariou os interesses nacionais com sua mensagem racista em relação aos chineses.

A China é o maior produtor mundial dos insumos médicos tão necessários para nosso sistema de saúde não colapsar. É nosso principal comercial, seu mercado é estratégico para a soja brasileira, que sofre concorrência agressiva dos Estados Unidos. Pois bem, enquanto a ministra da Agricultura, Tereza Cristina Dias, e o vice presidente da República, Hamilton Mourão, atuam para preservar os interesses brasileiros, Weintraub, por motivos ideológicos, opera para implodir as relações com a China. De que lado está Bolsonaro neste embate? Seu silêncio sepulcral é sintomático e preocupante.

Em jogo não está apenas a autoridade da figura Bolsonaro. Está a autoridade da instituição Presidência da República. Restaurá-la é fundamental, se quisermos vencer a guerra contra o coronavírus.

Não será reconstruída, contudo, à base do “prendo e arrebento” do general Figueiredo. Ou por uma canetada que jogue fora o esforço da sociedade e o bom trabalho realizado pela pasta da Saúde. Exigirá espírito de liderança, resiliência, autorregulação, inteligência emocional, requisitos ausentes no presidente.

A despeito de o leme estar em mãos trêmulas, vamos ter de nos reinventar para atravessar a tempestade do coronavírus. E triplicar esforços para evitar que a nau afunde.
Hubert Alquéres

Malditas redes

Além de facilitar de maneira extraordinária as comunicações planetárias, as redes sociais deram voz a quem não as tinha, ou que não conseguiam expandi-la de maneira a alcançar mais do que seu círculo íntimo. Foi uma extraordinária revolução que mudou a forma das pessoas pensarem e agirem e transformou a indústria. Mais diretamente as indústrias das comunicações e das telecomunicações, mas todas as outras sofreram consequências, muitas de maneira positiva. No Brasil, apesar de reveses por abusos contra a livre concorrência e pela disseminação de mentiras, tudo ia relativamente bem, até chegarem Jair Bolsonaro, seus filhos e o gabinete do ódio.

A onda global de fake news que causa forte impacto sobre as redes, sobretudo na Europa, produzindo um enorme dano às suas imagens, não pode ser comparada ao que se viu no Brasil destes últimos dias. Em todo o mundo as pessoas passaram a buscar informações sobre o coronavírus em fontes confiáveis, nos veículos profissionais de notícia, com medo de se contaminarem pelas fakes disseminadas. Aqui, a avalanche de mentiras é tão grande e contínua que as redes acabaram sendo desmoralizadas. O efeito dessa onda é de tal maneira devastador que até mesmo um post do presidente da República foi retirado do ar pelo Facebook por ser mentiroso, mas apenas depois de causar enorme estrago.


Membros de grupos de WhatsApp raramente recebem alguma coisa de primeira mão. Quando não é uma mensagem pessoal, quase tudo chega por redirecionamento. Fora as piadas, as orações e as sacanagens, o que mais se vê hoje em dia são campanhas contra o confinamento. Mesmo não se conseguindo identificar o autor material da obra, sabe-se perfeitamente quem teve a ideia e a quem ela serve. Os objetos da sua ira são quase sempre os mesmos, com destaque para a mídia. Geralmente são ataques rasos e burros, mas ainda assim há militantes cegos que os distribuem.

Além da imprensa e de partidos de oposição a Bolsonaro, esse ódio alcança também os poderes Legislativo e Judiciário. A mais nova peça distribuída é a que indaga por que deputados e senadores não abrem mão de seus salários e suas vantagens por exercício de função e redirecionam esse dinheiro para o combate ao vírus. É ridículo, mas tem gente que acredita, sem fazer os devidos cálculos, que o volume de recursos (de alguns milhões de reais) que seria alcançado com a medida exótica poderia resolver a guerra (de muitos bilhões de reais) contra o flagelo.

Mais uma vez, não precisa ser gênio para saber quem produziu essa pérola e quais os instrumentos usados para a sua distribuição. São os de sempre, os que culpam Congresso, Supremo e imprensa pelo fracasso extraordinário de um dos piores e mais absurdos presidentes da História do Brasil. Como todo o material é distribuído por uma rede eficientíssima de robôs, mais cedo ou mais tarde essas barbaridades vão acabar em seu celular, encaminhados por membro desatento de um de seus grupos.

É verdade que de um lado as redes têm altíssimo valor nessa pandemia, sendo usadas pelos entes oficiais da saúde para se comunicar e por empresas para se conectar e atender aos seus clientes. Por outro lado, elas têm sido instrumento para difundir contrainformações que podem resultar até em mortes. O fato é que por isso as pessoas começam a se desligar. Pode ser difícil, para alguns será como mergulhar no mar numa noite escura. Mas um pouco mais de cuidado com o que se lê e com o que se compartilha não fará mal a ninguém. Em alguns casos, é melhor cair fora mesmo.

Post Scriptum
Talvez não explique por que os Estados Unidos são líderes de casos e mortes por coronavírus, mas uma visita a qualquer aplicativo de voos em tempo real, como o “Aviões ao Vivo”, pode dar uma boa pista. No Brasil, ontem, às 12h34m, havia 18 aviões voando. Na Índia, quatro aviões ocupavam o espaço aéreo. Na Itália, havia dois, na França, sete. E nove sobrevoavam a Inglaterra. Nos Estados Unidos, era impossível contar, porque somavam centenas.
Ascânio Seleme