quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Pensamento do Dia

 


O entretenimento como religião

Por graça ou interesse, as igrejas se valem dos meios de comunicação para ganhar fiéis. Sabemos disso há coisa de cem anos. Foi nos Estados Unidos, pelas ondas do rádio, que a prática se tornou um expediente assíduo, ainda na primeira metade do século 20. Na década de 1960, os televangelizadores, à imagem e semelhança de Billy Graham, cresceram e se multiplicaram em escalas miraculosas. O cristianismo de raízes protestantes e feições evangélicas se apossou de um filão inteiro das redes de TV, num empuxo que se replicou mundo afora. Então, o linguajar plangente, a cenografia ambientada em templos vastos, o figurino em traje passeio completo e a coreografia expressionista fincaram seus púlpitos em plagas longínquas – algumas verdadeiramente remotas, como as brasileiras. Por aqui, quando baixa o horário nobre, pregadores oram e peroram em quase todos os canais abertos. Todas as religiões, ou virtualmente todas, requisitam os préstimos e os auxílios das tecnologias midiáticas em prol da fé. O divino é um campeão de audiência. O demônio também – depende do ponto de vista do freguês.


Mas disso tudo já sabemos, e não é de hoje. O que não sabemos e teimamos em não saber é que, no instante em que invocaram as energias gentis do entretenimento para arrebatar assembleias maiores, as igrejas selaram um pacto, se não com o satanás em pessoa, com entidades que desconheciam e que podiam devorá-las por dentro. Tanto podiam que devoraram.

O resultado está aí, diante dos nossos olhos incrédulos. Não foi o espetáculo televisivo que atendeu com diligência às demandas das múltiplas profissões de fé – estas é que serviram, sem se dar conta, aos desígnios do espetáculo. Quem tomou vulto ao longo das décadas não foi a caridade, não foi o amor ao próximo, não foi o recolhimento pio, não foi a fraternidade, não foi o retiro espiritual, não foi o voto de pobreza – foi, isto sim, o transe do showbiz, foi o êxtase das receitas publicitárias, foi a indústria do sagrado lucrativo, foi o mercado do pastoreio próspero e galante.

Não importa o tema da programação, importa somente a forma da diversão catártica – a religiosidade está na forma, não no conteúdo. Você pode achar que estamos em meio ao politeísmo pluralista de credos distintos que convivem entre si num ambiente ecumênico. Você pode acreditar que os megaeventos na cidade comprovam o que temos chamado de diversidade. Você pode até argumentar que a Marcha para Jesus lança mensagens opostas às da Parada Gay, e vice-versa. No entanto, por trás do aparente “multiculturalismo”, imperam as leis ocultas do espetáculo, que a tudo igualam, padronizam e uniformizam. Olhe e comprove. Na sua forma, a Parada Gay e a Marcha para Jesus são, mais do que equivalentes, idênticas: ambas se espelham como gêmeas siamesas e simétricas. As duas, supondo tirar proveito das turbinas do entretenimento, ofertam a essas turbinas, em sacrifício, o combustível precioso das almas fervorosas e dos corpos ferventes.

O entretenimento é o altar dos altares: não é uma ferramenta pronta para entregar as encomendas que lhe chegam das seitas – ele é, antes, a forma social da religião, de qualquer religião possível no nosso tempo. Toda espécie de religação – seja como vínculo identitário, seja como laço comunitário – só se realiza se passar pela mediação da malha comunicacional orientada para o mercado e apenas para o mercado. É como empresa privada que uma igreja se faz ativar pelos meios de comunicação.

As religiões não têm o poder de impor nenhuma liturgia às telas eletrônicas – estas é que plasmam sua liturgia vaga sobre o ser etéreo das religiões. Isso significa que, quando fala a língua do rádio, da TV ou da internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet.

Fundamentalista, o entretenimento rege os seres humanos com a força de um monoteísmo sem deus. Mesmo quando não trata de santos ou de orixás, mesmo quando não fala sobre Jesus ou sobre Jeová, mesmo quando só se ocupa de mercadorias banais, de atrizes sorridentes, de cantoras estridentes e de jogadores de futebol, o entretenimento impera com seus cânones draconianos (a sujeição à imagem, por exemplo), seus hábitos regulares (as togas dos ministros do STF são envergadas como se fossem a capa do Batman), seus ritos rígidos (os celulares de luzes acesas ondulando nos estádios) e seus códigos aparentemente profanos, mas dogmáticos (vigaristas fazendo coraçãozinho com as duas mãos juntas).

O cardápio dos sentimentos e o contorno dos afetos foram consolidados pela indústria da diversão. Ela definiu o sentido do amor, da justiça, da beleza, da comiseração e do ódio. O sujeito que vê em Donald Trump um herói destemido projeta nele o que aprendeu nos filmes de Bruce Willis. Apenas isso.

A religião do entretenimento fez do público uma plateia fanática, para a qual a democracia é só mais uma atração. Não adianta pedir que a plateia pense sobre o que faz. Na doutrina que ela abraçou com devoção, o pensamento é o maior dos pecados mortais. Talvez seja o único.

Líderes autoritários voltam como zumbis vingativos após derrotas

Quando Viktor Orbán regressou ao poder na Hungria em maio de 2010, ninguém atribuiu enorme significado ao acontecimento. É comum, nomeadamente em regimes parlamentares, a reeleição de políticos que tenham sido derrotados numa eleição anterior.

Orbán fora antes primeiro-ministro por um mandato, entre 1998 e 2002, e poucos fora da Hungria conheciam o discurso amargo que ele fizera ao perder as eleições no fim desse mandato. "A nação não pode estar na oposição!", disse na ocasião, deixando claro que, para ele, apenas o seu partido representava a verdadeira Hungria e que qualquer outro partido que estivesse no poder em seu lugar seria composto por traidores e, no fundo, usurpadores.


Toda a gente achou até normal que Orbán tivesse conquistado um pouco menos de metade dos votos —tendo em conta que tinha havido um escândalo com o governo socialista anterior— e não se preocupou demasiado com o fato de esses votos terem dado direito a dois terços dos deputados, permitindo a Orbán mudar a Constituição e votar leis de valor reforçado a seu bel-prazer.

Os primeiros sinais de alarme tocaram no segundo semestre de 2010, quando Orbán fez aprovar três leis de controle da mídia que foram imediatamente consideradas das mais restritivas da Europa —incluindo a criação de uma nova autoridade capaz de impor multas que poderiam atirar para fora do mercado os títulos de imprensa cuja cobertura fosse considerada desequilibrada.

Essas leis foram seguidas por uma nova Constituição, que por sua vez foi seguida por inúmeras alterações legais e institucionais, todas num sentido de concentração de poder. Orbán tinha voltado com foco na vingança —e com um plano. E a sua tomada do poder foi célere.

Quando visitei Budapeste numa delegação do Parlamento Europeu, em setembro de 2012, todos os partidos de oposição nos alertaram para mudanças nas leis eleitorais que nem nos briefings mais atualizados apareciam. Pudera: a nova lei eleitoral tinha sido introduzida na sexta-feira anterior para ser votada (e aprovada, como foi) na semana seguinte.

A partir daí, seria praticamente impossível a Orbán perder eleições —ou mesmo não ganhá-las com uma quase permanente e muito conveniente maioria de dois terços. A partir de 2018, as eleições na Hungria deixaram de ser consideradas "livres e justas", e a partir de 2019, o país deixou de ser considerado uma "democracia plena" pela Freedom House.

O caso de Orbán é apenas um dos vários em que líderes autoritários se tornam ainda mais vingativos e repressivos quando regressam ao poder após uma derrota eleitoral. São outros casos o de Binyamin Netanyahu, que em Israel saiu do poder em 1999 e voltou em 2009; Recep Tayyip Erdogan, na Turquia, que saiu de primeiro-ministro para presidente em 2014; e até Vladimir Putin, que deixou de ser presidente em 2008 para voltar em 2012.

Veremos o que acontece com Donald Trump, que tentou dar um golpe para não sair em 2021 e vai regressar agora.

Mas o padrão é claro: líderes autoritários quando perdem eleições e regressam depois ao poder são mais perigosos, vingativos e organizados. É um padrão pelo menos claro o bastante para que todos os outros países em risco de lhes acontecer o mesmo possam começar a tirar apontamentos.

Correndo para trás das calças de Trump

Foi notável como, assim que soube da vitória de Donald Trump, na semana passada, Jair Bolsonaro se transformou. Deixou de ser o homem que os serviçais flagravam chorando pelos cantos, a cada passo das investigações que o deixam mais perto de ser preso, e voltou a ser o velho bazófio e arrogante de seu palanque presidencial. Seu primeiro ato foi convidar-se para a posse de Trump e se julgar no direito de ter de volta o passaporte para viajar. "O STF", leia-se Alexandre de Moraes, "não terá a ousadia de negar. Quem vai contrariar o homem mais poderoso do mundo?", disse.


É a ideia que Bolsonaro faz do Brasil: um país tão babão diante de uma potência quanto ele, que se acapacha aos pés de alguém que considera seu superior —como se representasse alguma coisa para esse alguém. Lembra uma sequência do clássico "Casablanca", filme de 1943, em que Peter Lorre, fazendo um personagem viscoso e insignificante, pergunta a um inatingível Humphrey Bogart: "Você me despreza, não é?". E Bogart, sem sequer olhar para ele: "Se eu pensasse em você, provavelmente desprezaria". Há alguns anos, Bolsonaro viveu esse diálogo com Trump na Flórida. Ao gemer para Trump "eu te amo!", ouviu de volta: "Prazer em te ver".

Tal subserviência de Bolsonaro é uma ameaça até à soberania nacional, como se provou na sua reunião em 2022 com os embaixadores estrangeiros, que convocou para denunciar supostas fraudes do nosso sistema eleitoral. O que queria com aquilo? Desmoralizar a democracia brasileira aos olhos de quem, para ele, poderia interferir nela.

Bolsonaro é um covarde. Correr para trás das calças de Trump não o tornará reelegível nem o livrará da Polícia Federal, nos processos às vésperas de conclusão por desvio de joias da Presidência e tentativa de golpe de Estado. As grades o esperam.

Em 2017, outro ex-presidente brasileiro foi processado. Compareceu a todos os interrogatórios, foi condenado e teve a prisão decretada. No dia em que foram buscá-lo, não resistiu à prisão nem tentou fugir. Ficou à espera dos agentes. Não precisou ser conduzido à força. Portou-se como um homem.

Os Magãos

Trump transformou-se no grande profeta da nova religião. Alguns dos seus fiéis tratam-no mesmo como o filho de Deus. O presidente-eleito é muito mais do que um líder político carismático pois tornou-se ele mesmo num novo culto para milhões de americanos.

Trump cometeu a proeza de conseguir afastar a direita religiosa evangélica do evangelho, das suas comunidades de fé e da Bíblia, tudo princípios até agora inegociáveis neste segmento religioso e que seria impensável deixar cair.

Só que este abandono tem um preço. Ao afastar os evangélicos da moralidade bíblica e fazer com que o sigam religiosamente, Trump toma o lugar da figura central da fé cristã, Jesus de Nazaré. Ao abandonarem o evangelho e a ética cristã os evangélicos substituíram o amor ao próximo, ao estrangeiro, ao necessitado e ao enfermo pelo ressentimento e sentimentos negativos aos quais ele apela constantemente.


Mas também substituíram a alegria da comunhão cristã pela liturgia MAGA (Make America Great Again), pelo que, em vez se continuarem a ser cristãos, ou seja, centrados em Cristo, agora serão magãos, isto é, centrados na ilusão de recuperar milagrosamente a grandeza perdida dos EUA. Além do mais deixaram de ir à igreja por que o seu messias também nunca vai, o que lhe interessa pois assim pode manipulá-los à vontade, distantes que ficam do capital espiritual e comunitário daí decorrente.

Por outro lado, as igrejas evangélicas nos EUA têm vindo a reduzir a sua assistência devido ao secularismo e outros fenómenos sociais a ele associados, por que as novas gerações já não aceitam a politização das suas lideranças nem o conservadorismo de algumas das suas posições, mas também pelo movimento geral de maior individualismo presente na sociedade americana.

Uma apoiante envergava recentemente uma T-shirt num evento da campanha republicana em Wildwood, Nova Jersey, que dizia: “Deus, armas & Trump”. “Deus fez Trump” declara a sua rede social, a Truth Social. O político é assim elevado à condição de profeta e ungido de Deus que está a edificar a sua igreja. Daí resulta que os fiéis já não necessitam de se manter nas suas comunidades de fé e muito menos precisam dos seus pastores, até por que eles já tinham dado a sua bênção ao novo profeta de forma explícita e entusiástica, iludidos que foram pelas promessas de conquista do poder político e judicial, bastando para isso apenas apoiar o novo profeta.

Não só não ganharam nada com isso, como quando se quiserem arrepender será tarde demais. Mesmo em relação ao aborto, com a revogação de Roe, as coisas ainda terão piorado devido ao aumento no número de interrupções voluntárias de gravidez devido à presente insegurança.

Os líderes religiosos quiseram ganhar vantagem política mas não esperavam que Trump se apresentasse aos fiéis como o novo Cristo, o ungido de Deus. Uma coisa era ser uma espécie de Ciro moderno, o imperador pagão que facilitou a vida aos judeus exilados na Babilónia para que regressassem e reconstruíssem os muros de Jerusalém, as suas casas e o templo, coisa diferente seria ele próprio se auto-erigir em messias, ele que é uma espécie de anticristo santificado pela direita religiosa.

É que ao pisar, pelo seu discurso e exemplo de vida, a ética e os valores cristãos, Trump concede aos fiéis o direito de também eles passarem a desprezá-los. De facto, agora já não é mais necessário seguir Jesus, uma personagem que a lógica trumpiana classificaria imediatamente como falhado (loser). Em vez disso os seus discípulos são atraídos pela lógica ilusória e o discurso inconsequente de vencedor que ele protagoniza.

O Maganismo tornou-se assim a mais recente religião americana, em linha com a tradição dos Estados Unidos como alfobre de inúmeras propostas religiosas sob a capa do cristianismo.

Receia-se que se repita agora nos EUA um fenómeno semelhante ao da velha Europa do pós-guerra, quando a fé cristã sofreu duramente as consequências do apoio de vastos sectores religiosos aos extremismos emergentes no período entre guerras, incluindo o nazismo alemão e o fascismo italiano. Desde aí nunca mais a fé cristã voltou a erguer-se ao nível anterior, embora devido também a outros factores.

Com o 13/11, a anistia para os golpistas do 8/1 poderá ir pelo ralo

Como sempre mais rápida no gatilho, a extrema-direita saiu na frente da construção de uma narrativa para explicar as explosões de ontem à noite, em Brasília, na Praça dos Três Poderes, palco em 8 de janeiro de 2023 da tentativa frustrada de um golpe de Estado.

Francisco Wanderley Luiz, o autor das explosões, foi chamado de “maluco” por Bolsonaro. Logo apareceu um deputado, Jorge Gootten (Republicanos-SC), conterrâneo de Francisco, que disse que ele aparentava “sérios problemas mentais”.

Desde quando? Segundo Gootten, desde que se separou da mulher, há dois ou três meses, e veio morar em Brasília. Não há relatos de que pirou a mais tempo. Há relatos abundantes, escritos por ele mesmo, sobre suas ações como um radical de direita.


Daí foi um salto para que Francisco nas redes sociais fosse apontado como o “Adélio Bispo da direita”. Adélio esfaqueou Bolsonaro em Juiz de Fora. Em dois ou três inquéritos, a Polícia Federal concluiu que Adélio era doente mental.

Até hoje, para Bolsonaro, Adélio era um militante de esquerda que o esfaqueou por encomenda e não sozinho. Francisco seguramente teria agido por conta própria, em decorrência da doença que sofria. É conveniente para a extrema-direita desvincular-se de Francisco.

De Roma, onde se encontra, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), disse que Francisco, “pelas informações da polícia, trata-se de um suicida”. A vice de Ibaneis, Celina Leão (PP), referiu-se a Francisco como “um lobo solitário”.

Àquela altura, o corpo de Francisco sequer fora removido do local onde ele morreu, em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal. Cuidadosa, a polícia confirmava que o carro repleto de explosivos era de Francisco, mas que o corpo poderia não ser. Era.

“Um homem morreu ao se explodir”, estampou um jornal de larga circulação com base no que declarou Ibaneis. Francisco pode não ter se suicidado, e sim ter morrido pela explosão de uma bomba que arremessou contra o prédio do Supremo.

Ou pode ter morrido por bala disparada por seguranças do prédio que ao avistarem correram na sua direção. Investigações em curso é que dirão de fato o que aconteceu. O certo é que no mínimo a anistia para os golpistas do 8 de janeiro ficou mais distante.

E isso é muito ruim para Bolsonaro que esperava beneficiar-se dela. O ministro Alexandre de Moraes, a quem caberá o comando das investigações sobre o 13 de novembro, a esta hora deve estar lambendo os beiços. Não só ele.