Mas disso tudo já sabemos, e não é de hoje. O que não sabemos e teimamos em não saber é que, no instante em que invocaram as energias gentis do entretenimento para arrebatar assembleias maiores, as igrejas selaram um pacto, se não com o satanás em pessoa, com entidades que desconheciam e que podiam devorá-las por dentro. Tanto podiam que devoraram.
O resultado está aí, diante dos nossos olhos incrédulos. Não foi o espetáculo televisivo que atendeu com diligência às demandas das múltiplas profissões de fé – estas é que serviram, sem se dar conta, aos desígnios do espetáculo. Quem tomou vulto ao longo das décadas não foi a caridade, não foi o amor ao próximo, não foi o recolhimento pio, não foi a fraternidade, não foi o retiro espiritual, não foi o voto de pobreza – foi, isto sim, o transe do showbiz, foi o êxtase das receitas publicitárias, foi a indústria do sagrado lucrativo, foi o mercado do pastoreio próspero e galante.
Não importa o tema da programação, importa somente a forma da diversão catártica – a religiosidade está na forma, não no conteúdo. Você pode achar que estamos em meio ao politeísmo pluralista de credos distintos que convivem entre si num ambiente ecumênico. Você pode acreditar que os megaeventos na cidade comprovam o que temos chamado de diversidade. Você pode até argumentar que a Marcha para Jesus lança mensagens opostas às da Parada Gay, e vice-versa. No entanto, por trás do aparente “multiculturalismo”, imperam as leis ocultas do espetáculo, que a tudo igualam, padronizam e uniformizam. Olhe e comprove. Na sua forma, a Parada Gay e a Marcha para Jesus são, mais do que equivalentes, idênticas: ambas se espelham como gêmeas siamesas e simétricas. As duas, supondo tirar proveito das turbinas do entretenimento, ofertam a essas turbinas, em sacrifício, o combustível precioso das almas fervorosas e dos corpos ferventes.
O entretenimento é o altar dos altares: não é uma ferramenta pronta para entregar as encomendas que lhe chegam das seitas – ele é, antes, a forma social da religião, de qualquer religião possível no nosso tempo. Toda espécie de religação – seja como vínculo identitário, seja como laço comunitário – só se realiza se passar pela mediação da malha comunicacional orientada para o mercado e apenas para o mercado. É como empresa privada que uma igreja se faz ativar pelos meios de comunicação.
As religiões não têm o poder de impor nenhuma liturgia às telas eletrônicas – estas é que plasmam sua liturgia vaga sobre o ser etéreo das religiões. Isso significa que, quando fala a língua do rádio, da TV ou da internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet.
Fundamentalista, o entretenimento rege os seres humanos com a força de um monoteísmo sem deus. Mesmo quando não trata de santos ou de orixás, mesmo quando não fala sobre Jesus ou sobre Jeová, mesmo quando só se ocupa de mercadorias banais, de atrizes sorridentes, de cantoras estridentes e de jogadores de futebol, o entretenimento impera com seus cânones draconianos (a sujeição à imagem, por exemplo), seus hábitos regulares (as togas dos ministros do STF são envergadas como se fossem a capa do Batman), seus ritos rígidos (os celulares de luzes acesas ondulando nos estádios) e seus códigos aparentemente profanos, mas dogmáticos (vigaristas fazendo coraçãozinho com as duas mãos juntas).
O cardápio dos sentimentos e o contorno dos afetos foram consolidados pela indústria da diversão. Ela definiu o sentido do amor, da justiça, da beleza, da comiseração e do ódio. O sujeito que vê em Donald Trump um herói destemido projeta nele o que aprendeu nos filmes de Bruce Willis. Apenas isso.
A religião do entretenimento fez do público uma plateia fanática, para a qual a democracia é só mais uma atração. Não adianta pedir que a plateia pense sobre o que faz. Na doutrina que ela abraçou com devoção, o pensamento é o maior dos pecados mortais. Talvez seja o único.
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