domingo, 5 de setembro de 2021

Pensamento do Dia

 


O Louco Sagrado

A carta O Louco é a última do Tarô— a de número 22—, mas também é considerada a carta 0 (zero), ou seja, pode ser o início e/ou o fim do baralho. O Louco não tem numeração certa; como um coringa, entra na linha da jogada e a interrompe, deixando tudo em suspenso e abrindo um novo horizonte, completamente indefinido. Segundo os esotéricos, essa persona não é nada ponderada, enfrenta os seus desafios sem planejar. No jogo de Tarô, O Louco tanto pode ser considerado uma carta benéfica, porque revela a necessidade de se arriscar, quanto também pode pôr tudo a perder, porque não pondera seus atos nem avalia as circunstâncias. O Louco é sócio da imprudência, da falta de paciência e das precipitações. Tudo a ver com o presidente Jair Messias Bolsonaro.

A eleição do atual presidente da República foi uma cartada eleitoral do antipetismo exacerbado, de políticos, militares, servidores públicos, empresários e da classe média mais conservadora e empobrecida. As consequências agora estão aí: catástrofe sanitária, fracasso econômico, crise política, mais desigualdades sociais e um pogrom cultural. Mas também é um fenômeno antropológico, que precisa ser estudado para além das análises políticas e econômicas, porque sua existência tem a ver com a nossa cultura e as características mais profundas do nosso povo, com tradições de origens ibéricas medievais.

Nosso sebastianismo, por exemplo: a busca de um salvador da pátria, inspirada em Dom Sebastião I, que desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. Sem herdeiros, a crise do trono levou Portugal à perda da independência para a Espanha, com a União Ibérica, e ao nascimento da lenda de que, numa manhã de nevoeiro, D. Sebastião voltaria à pátria para libertá-la. As cartas de Tarô surgiram mais ou menos nessa época, entre os séculos XV e XVI no norte da Itália, e foram criadas para um jogo praticado por nobres e senhores das casas mais tradicionais da Europa continental. Hoje, são muito usadas por esotéricos aqui no Brasil, para uso divinatórios, cujos significados são derivados principalmente da Cabala, a vertente mística do judaísmo.


Nossa memória coletiva ancestral pode ser ativada por símbolos, que funcionam como ilustrações para os anseios da alma humana, segundo o psicólogo Carl Gustav Jung, no estudo dos Arquétipos. O Tarô é uma espécie de história em quadrinhos sobre os nossos dramas. O Louco do Tarô é uma representação do “Louco Sagrado”, cujo estereótipo remonta à época do Apóstolo Paulo, em Coríntios, ao conclamar seus seguidores a “serem loucos por amor a Cristo”, como agora fazem o presidente Jair Bolsonaro e seus mais fanáticos partidários.

Na Idade Média, a patética figura do eremita tolo e indefeso, apesar de pouco inteligente, ganhou força popular porque era moralmente virtuoso ou puro. O “Louco Sagrado” era uma representação mítica de uma visão alternativa de mundo, como o Dom Quixote de Miguel de Cervantes, no Renascimento; uma imagem que, depois, viria a ser muito recorrente nas comédias de teatro, cinema e televisão, como as figuras de Carlitos, do genial Carlos Chaplin, e os Três Patetas.

Foi a propósito do “patético” nos meios de comunicação de massa que o filósofo alemão Theodor Adorno, em Mínima moralia (Editora Azougue), escreveu que tão errado quanto crer na existência do “Louco Sagrado”, é imaginar que podemos fazer qualquer julgamento baseados apenas na nossa razão, ou seja, de forma fria e racional. Fazer julgamentos criteriosos, equilibrados, abandonando a emoção é tão improvável quanto fazer um julgamento justo sem o uso da inteligência. Segundo Adorno, “quando for eliminado o último traço de emoção de nosso pensamento, não restará nada para pensarmos”.

Desde a década de 1990, neurologistas têm mapeado o cérebro e conseguido demonstrar com exatidão os processos de razão, de emoção e, consequentemente, o processo de decidir e julgar. Novos equipamentos permitem conhecer com mais detalhes a dinâmica cerebral, tornando possível mensurar a complementaridade entre as sensações e os raciocínios lógicos, as duas faces daquilo que nos torna humanos. No futuro próximo, o presidente Jair Bolsonaro será objeto de estudos de toda ordem, inclusive de natureza psicológica. Seu papel transgressor é incompatível com a liturgia do cargo que exerce e os parâmetros da Constituição de 1988, daí o isolamento político a que chegou, em relação à maioria da opinião pública e ao establishment nacional, que o apoiou em 2018.

Entretanto, o seu carisma e caneta cheia de tinta, em razão da Presidência, demonstram poder capaz de gerar grandes incertezas sobre o futuro, como O Louco do Tarô. O presidente da República encarna para certos segmentos da população o Louco Sagrado indispensável aos movimentos messiânicos. É como se tivéssemos uma espécie de Antônio Conselheiro, o líder de Canudos, na Presidência da República. As manifestações do dia 7 de setembro, não se fala de outra coisa, servirão de parâmetros de adesão a essa distopia que estamos vivendo. Seus fanáticos seguidores estão levando muito a sério o Messias de seu nome.

Provável intenção de Bolsonaro é situação conflituosa para exterminar democracia

Tudo pode acontecer no 7 de Setembro entre a mera reprise das manifestações bolsonaristas e, no outro extremo, eclosões de alta gravidade.

As ocorrências podem ser tão mais variadas quanto maior o número, que se anuncia alto, de cidades com manifestações programadas.

Em todo esse colar de imprevisões, já têm lugares assegurados três ingredientes solidários: o patético, a mediocridade e o vergonhoso.

É possível, mas sem indício nítido, que os pretendentes ao golpe obtenham o que lhes tem sido a carência impeditiva. Os militares bolsonaristas precisam de um pretexto, sem o qual sobram dificuldades até para conter a oficialidade restante, quanto mais para sustentar-se ante reações externas e o mal-estar interno.

Na atual situação do país, tudo deve ser pensado, creio, a partir desse problema político e técnico.


A agitação de Bolsonaro em Brasília será na parte da manhã. Como programa estar na onda paulista a meio da tarde, só por perda do controle haverá de manhã, em Brasília, ocorrências que o retenham aí. O risco forte chegaria à tarde. De encontro ao dispositivo de defesa que o Supremo e o Congresso consigam montar.

Sem confiar muito, é verdade, para outra vez enfrentar a situação patética de dois Poderes da República a proteger-se do governante que empossaram e sustentam no outro Poder.

As condições circunstanciais para um golpe já no 7 de Setembro precisariam de ações muito traumáticas do bolsonarismo, em especial nas ditas manifestações de São Paulo e Brasília.

E isso não se limita a arruaças. A provável intenção de Bolsonaro é iniciar uma situação conflituosa que, desenvolvendo-se, dê aos bolsonaristas militares o pretexto para exterminar a democracia "em defesa da democracia".

É o roteiro Trump, consta que elaborado pelo fascista Stefen Bannon, revisitado pelo discípulo Eduardo Bolsonaro no mês passado.

Trump discursou mandando os apoiadores para o Capitólio com a missão, puxada por incitadores, de deflagrar ali as circunstâncias impróprias para a instalação de um governo inexperiente, em organização, dali a duas semanas.

Se adiada a posse de Biden, que a campanha "Posse dia 20" inviabilizou, estaria dado o grande passo para a "solução pacificadora": anular a eleição contestada.

Aqui, Bolsonaro começou os ataques à eleição ainda na campanha, o que poderia ser um preparativo a arruaça e a intervenção militar em reação à esperada derrota.

Bolsonaro venceu, mas deixou, para posterior interpretação, os primeiros e inequívocos sinais de que sua candidatura veio de uma articulação externa. Assim como está indiciado sobre a Lava Jato, curitibana nas aparências.

No golpismo de Trump e do caudatário Bolsonaro, a convulsão pode ser vista como o trampolim para o golpe, sendo menos provável converter-se em golpe, propriamente.

Não falta quem anteveja neste 7 de Setembro já o começo da guerra civil. Isso exigiria alguma base armada no lado democrata, que não a tem (por ora?).

O dispositivo militar e policial de defesa da ordem constitucional já mostrou de que lado está: a rigor, é o lado em que esteve sempre que a ordem constitucional, os valores democráticos e os direitos civis foram envenenados —e logo sucumbiram.

Faltam militares e policiais autênticos. Nas instâncias civis, entre os encarregados de representar o Estado de Direito prevalecem a mediocridade, a venalidade política, a corrupção.

No patronato, o acúmulo de riqueza inútil é obsessivo e a indiferença pelos meios é o comum. Para esses segmentos, o país e suas multidões não têm interesse, é indiferente haver democracia ou autoritarismo, avanço ou retrocesso econômico, emprego ou pobreza: eles ganham sempre.

Por mais de dois anos e meio o Brasil vê, inerte, a construção de um golpe. Por criminosos e asseclas. Golpe que o inviabilizará talvez para sempre. Metade, ou mais, da população medianamente informada está aturdida. O país, parado, à espera.

É vergonhoso.

Dia de qual pátria?

“Uma pessoa sem memória ou é criança ou é amnésica. Um país sem memória não é criança nem é amnésico — nem sequer país é.” A citação não é de nenhum sábio da Antiguidade. Saiu da verve sempre inteligente de Mary Astor, a atriz de Hollywood que imortalizou “O falcão maltês” nos anos 1930. Quando somada a outra de autoria incerta, mas falsamente atribuída a Platão — “pode-se facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro: a verdadeira tragédia da vida é quando homens têm medo da luz”—, temos o Dia da Pátria planejado para esta terça -feira.

O Brasil que Jair Bolsonaro exibirá no 7 de Setembro deve marchar e incensar o “mito”, não honrar a memória do país. Para tanto, deve esquecer as nações indígenas que em 2021 ainda precisam bater às portas da História e do Supremo Tribunal Federal para não ser esquecidas. Tampouco se verá, na marcha, referência aos mais de 580 mil brasileiros que morreram de Covid-19 sem uma só palavra de compaixão do presidente. A ideia é deletar, esquecer e tentar reescrever o que é inconveniente na História do Brasil de hoje e de outrora.

O presidente também se enquadra na categoria “homem com medo da luz”, mas não só da luz do conhecimento. O medo maior é do clarão de investigações que mapeia a holding do clã Bolsonaro para surrupiar o Erário através da prática das “rachadinhas”, nome inocente do crime de recolhimento de parte dos salários de assessores parlamentares contratados para esse fim. De pai para filhos, de filho para mãe, o cipoal de práticas subterrâneas suspeitas a cada dia adquire mais visibilidade.


Ainda nesta semana, em entrevista a Guilherme Amado e equipe do site Metrópoles, mais um ex-empregado da família veio a público com denúncias da rachadinha atribuída a Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Bolsonaro e mãe de Jair Renan, o filho Zero Quatro do presidente. Os detalhes narrados por Marcelo Luiz Nogueira dos Santos são sórdidos e vingativos, além de não comprovados. Mas, ao não pedir anonimato e deixar-se fotografar para a entrevista, o denunciante indica sentir-se seguro, talvez pelo que tenha deixado de falar. De todo modo, em esfera mais sólida, as investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro, com foco em Carlos e Flávio, e as incursões da CPI da Covid em Brasília, que sem querer esbarrou numa liaison talvez dangereuse entre o lobista-mor de Brasília Marconny Faria e o Zero Quatro, prosseguem seu curso.

É essa a tormenta bíblica de Jair Bolsonaro, com outros tantos fios desencapados a apontar para o presidente. O 7 de Setembro nos moldes planejados lhe é necessário para manter acesa a ideia de que “os nossos”, como diz o general Augusto Heleno, são o Brasil. Não são, nem à força. O presidente pode relinchar patriotismo em Uberlândia, decretar a supremacia de fuzis sobre o feijão, mas nada além de um confronto aberto consegue apaziguá-lo. Sua linha de atuação segue o catecismo de mandantes a perigo: levar seus seguidores a também optar pelo desconhecimento. É a tática do nada perguntar, apenas afirmar. No caso da pandemia, são as perguntas que o presidente não fez que determinaram a mortandade de brasileiros indefesos. Só que o “privilégio” de não fazer perguntas é reservado àqueles que disso se beneficiam, aponta a cientista social britânica Jana Bacevic. “Para os mais vulneráveis e explorados”, diz ela, “os efeitos da Covid não são um tema evitável, e sim uma realidade inescapável”.

Com o mundo em emergência de sustentabilidade da vida, o aquecimento global a gritar na nossa cara, o milhão de espécies animais a perigo, a contaminação de águas e solos, o êxodo forçado de massas à deriva, a insegurança alimentar e as desigualdades obscenas da humanidade — nada disso parece frequentar os medos de Jair Bolsonaro. Seu foco imediato é o 7 de Setembro, fora ou dentro das quatro linhas da Constituição. Por via das dúvidas, o Departamento de Estado enviou um alerta a todos os cidadãos americanos residentes no Brasil para que mantenham low profile na terça-feira, evitem as áreas de manifestações e mantenham cautela se estiverem inadvertidamente próximos a protestos —“mesmo manifestações planejadas para ser pacíficas podem virar confrontos”.

Qualquer pessoa, ensina um grande poeta do século passado, pode aprender a pensar, a acreditar, a saber; mas nenhum ser humano pode ser ensinado a sentir. Por quê? Porque sempre que você pensa, ou crê, ou aprende algo, você é a soma de muitas outras pessoas; no momento de sentir, você é apenas quem você é. Será que Jair Bolsonaro sabe quem é?