quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Brasil mais verde

 


Na pandemia, obrigados a ser fortes

Perdendo a enésima oportunidade de ficar calado, Bolsonaro chegou não faz muito a desdenhar dos que ficam em casa para se proteger da pandemia. "É para os fracos", decretou, quando já passavam de 135 mil os mortos pela Covid-19. Na realidade, os "fortes", expostos diariamente ao novo coronavírus, são muitos —e muito diversos em estilo e condições de vida.

A grande maioria é formada por aqueles para os quais o isolamento não é opção, por lhes faltarem renda, moradia adequada, acesso a saneamento e água potável. São os milhões de pobres, predominantemente negros, que vivem nas periferias ou nos centros degradados de nossas cidades.

É difícil saber ao certo como vêm passando e de que modo têm reagido à pandemia. O pouco que se conhece de sua dor e de sua força deve-se à Rede de Pesquisa Solidária, que reúne mais de uma centena de estudiosos de diferentes formações e filiações acadêmicas, engajados em levantar dados que ajudem a melhorar a ação dos governos durante e depois da pandemia.

Um grupo de membros dessa rede, coordenado pela socióloga Graziela Castello, vem coletando periodicamente informações junto a lideranças comunitárias de várias capitais brasileiras sobre os principais problemas enfrentados pelas populações mais vulneráveis.


O que angustia antes de tudo os ativistas das comunidades são as famílias que passam fome, uma ameaça sempre presente. Segue-se a perda do emprego ou do trabalho e da renda. Depois, a dificuldade de acesso a serviços públicos como educação, justiça e atendimento funerário; finalmente, a expansão do contágio e a dificuldade de conseguir a adesão das pessoas às medidas de proteção.

Os mesmos temas aparecem nos relatos de três ativistas participantes do evento "A pandemia nas favelas", organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso e disponível no YouTube. Eles contam como líderes e entidades comunitárias se mobilizaram para suprir carências de toda ordem. Distribuíram cestas básicas, material de higiene, máscaras; organizaram atividades para gerar renda e fizeram podcasts para difundir informações úteis sobre a pandemia; auxiliaram os agentes comunitários de saúde e saíram em busca de espaços para o isolamento dos doentes e proteção dos mais velhos.

Dor, luto e incerteza —mas também solidariedade, força e inovação— aparecem nos depoimentos dos participantes do encontro, assim como naqueles coletados pela Rede Solidária. São experiências que poderiam inspirar parcerias inovadoras e políticas públicas mais adequadas a um país onde o isolamento não é para quem quer, porém para quem pode.

A impressão é de um governo perdido

Na segunda-feira passada, na presença do presidente Jair Bolsonaro, do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), o senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator da proposta orçamentária para 2021, anunciou a criação do novo programa social do governo, que chamou de Renda Cidadã. Ele informou que o governo iria limitar o pagamento de precatórios judiciais e, com os recursos que sobrariam, financiar o programa. Ontem, o ministro Paulo Guedes surpreendeu o país ao afirmar que nada daquilo valeu. Chegou a sugerir que nunca se pensou em tal coisa.

O anúncio de Bittar, no Palácio do Planalto, está gravado e pode ser facilmente acessado na internet. O mais impressionante é que, no dia seguinte, o próprio Bittar e o líder Ricardo Barros reafirmaram a decisão e negaram que o governo pudesse recuar de sua proposta, mesmo com a forte reação contrária dos mercados.

A avaliação unânime dos analistas foi de que o governo estava propondo uma “pedalada fiscal”, com a postergação do pagamento dos precatórios. Iria transferir uma dívida, que todo ano a Justiça manda pagar, para ser quitada pelas futuras gerações.

Guedes aproveitou ontem a entrevista de divulgação dos dados do Caged, que mostraram uma forte criação de empregos com carteira assinada em agosto, para alterar inteiramente o discurso oficial sobre os precatórios. “Sabemos que precatórios são dívidas líquidas e certas, transitadas em julgado. Ninguém vai botar em risco a liquidação de dívidas do governo. Vamos pagar tudo”, disse, demonstrando uma certa exaltação. “Estamos aqui para honrar compromissos. Compromisso fiscal, de dívida”, acrescentou.

O ministro afirmou que sua preocupação era com o “crescimento explosivo” da despesa com o pagamento de precatórios nos últimos anos. Segundo informou, esse gasto era de R$ 10 bilhões a R$ 12 bilhões no governo Dilma Rousseff e a projeção para 2021 é de R$ 55,5 bilhões. “Estamos examinando [os precatórios] estritamente com foco em controle das despesas.”

Guedes reafirmou, no entanto, sua intenção de apresentar um novo programa social para amparar os “invisíveis”, que foram descobertos pelo governo com o auxílio emergencial. Segundo ele, são 40 milhões de pessoas que precisam de ajuda a partir de janeiro, quando o auxílio emergencial acabar. Guedes voltou a afirmar que é preciso promover uma aterrissagem suave, quando isso ocorrer.

Ele disse que nunca pensou em utilizar parte do dinheiro que seria usado para pagar os precatórios para financiar o Renda Brasil. Foi com esse nome que o ministro se referiu ao novo programa social do governo Bolsonaro, e não Renda Cidadã, empregado por Bittar. “Uma despesa permanente precisa ser financiada com uma receita permanente. Não pode ser financiada por um puxadinho, por um ajuste”, afirmou.

O problema, portanto, está do mesmo tamanho. Ou seja, como o novo programa do governo, qualquer que seja o seu nome, será financiado a partir de janeiro do próximo ano?



É importante relembrar que todas as sugestões apresentadas pela área econômica foram vetadas pelo presidente Bolsonaro. A ideia inicial, com a qual a equipe de Guedes trabalhou desde o início, era eliminar os programas sociais considerados ineficientes, ou seja, que não estão atingindo as pessoas mais necessitadas da sociedade, e direcionar os recursos para os mais carentes e para os trabalhadores informais.

A primeira proposta levada ao presidente foi a de acabar com o abono salarial, que concede até um salário mínimo por ano para o trabalhador que ganha até dois pisos por mês. Bolsonaro rejeitou a proposta publicamente, dizendo que não iria tirar dos pobres para dar para os paupérrimos. Aquele foi um banho de água fria na equipe de Guedes, pois o fim do abono abriria um espaço de R$ 20 bilhões para turbinar o Renda Brasil.

Depois, o presidente rejeitou também o fim do seguro-defeso, que é concedido aos pescadores artesanais no período da desova dos peixes. O secretário da Pesca, Jorge Seif Junior, ao lado de Bolsonaro em sua live semanal, chegou a dizer que o fim do seguro-defeso era “fake news”.

Em seguida foi a vez de o secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, ser desautorizado pelo presidente da República. Em entrevista ao Valor, Waldery defendeu a desindexação de benefício previdenciários, ou seja, suspender pelo prazo de dois anos a correção monetária do valor das aposentadorias e pensões. O secretário estimou que a medida reduziria as despesas da União em R$ 17 bilhões em 2021 e em R$ 41,5 bilhões em 2022.

Com a repercussão das palavras de Waldery, o presidente usou as redes sociais para dizer que uma proposta como aquela só podia ser feita por alguém que não tem coração e anunciou que daria “cartão vermelho” para quem insistisse no assunto. Bolsonaro disse também que não queria ouvir falar em Renda Brasil até 2022. Ele mudou de ideia no dia seguinte, ao autorizar o relator das PEC Emergencial e do Pacto Federativo, senador Marcio Bittar, a incluir em seu substitutivo a criação de um novo programa social.

Depois da forte reação dos mercados e da própria sociedade à “pedalada fiscal” dos precatórios, o ministro Guedes informou ontem que o governo não vai financiar o Renda Brasil com parte dos recursos que seriam utilizado para pagar precatórios. O ministro disse, no entanto, que o programa será criado para fazer a “aterrissagem suave” do auxílio emergencial.

A impressão que está passando ao público é de um governo perdido. Com um presidente que não aceita as sugestões apresentadas por seu ministro da Economia e um bate cabeça da área técnica com os líderes políticos que apoiam o governo. Há também as intrigas entre ministros. Ontem, por exemplo, Guedes afirmou que tinha gente dentro do governo querendo “estourar o teto de gastos em R$ 60 bilhões a R$ 70 bilhões”. E que sua intenção é não deixar que isso aconteça.

Estamos confortáveis com o tempo de reação do setor público à crise?

Thiago conta que “não são aulas por vídeo”. Diz que é só uma interação. “A gente fala mais de cultura, racismo, bullying, coisas assim.” Isabela explica que o problema é a internet. “O sinal é fraco. Não tem aula, só atividade remota. No fim não entendia mais nada, desisti.”

Nas últimas semanas, li o que pude sobre nossa educação pública na pandemia. Me fixei nos relatos. Histórias dos alunos brigando com celulares que não funcionam e emails do colégio que não respondem. E dos alunos, em especial no ensino médio, que vão desistindo.

Os especialistas dizem que a evasão vai aumentar. Demétrio Magnoli cunhou um termo algo assustador: teremos a geração covid. Ela nos lembrará por muito tempo sobre como este ano triste foi também um ano irresponsável.

Alguns sugerem cancelar o ano letivo, quem sabe aprovar todo mundo, começar tudo no ano que vem. Os sindicatos fazem o jogo do nirvana. Aula tem que ser presencial, mas presencial não dá. Só depois da vacina. Então não tem jeito, não é mesmo?

Se a gente observar mais a fundo vai ver aí nossos dois Brasis. Logo no início da pandemia, o mundo das escolas privadas migrou para o espaço digital. Os professores se adaptaram com algum treinamento e o ano seguiu. Com perda de qualidade, que é a regra nisso tudo, mas seguiu.

Enquanto isso, a máquina estatal emperrou. A Pnad Covid mostrou 16,1% dos alunos ainda sem aula, em agosto. Uma enorme parcela com acesso muito precário a atividades, aulas sem interação, sem aferição do que se está ou não aprendendo.

Nosso debate público rapidamente decretou que o problema era a “desigualdade”. Os alunos mais ricos têm acesso à internet, os mais pobres, não. Tudo explicado? Na minha visão, coisa nenhuma.

A desigualdade é um dado estrutural da realidade brasileira. Há muito sabemos sobre a disparidade de acesso à tecnologia. E é óbvio que isso pesa na capacidade das famílias se adaptarem, orientarem os filhos, segurarem a barra numa situação difícil.

Não é exatamente para lidar com isso que existe a educação pública? Estudo recente do Ipea calculou em R$ 3,9 bilhões o custo para corrigir o déficit de acesso digital e a equipamentos. Informação e recursos não são o problema. O ponto é: estamos confortáveis com a velocidade de reação do setor público?

Fui conversar com dirigentes educacionais nos estados. Os problemas são óbvios. Falta acesso a redes, conexões instáveis, aplicativos difíceis de usar. As escolas fazem o mínimo, falta preparo aos professores para o ensino remoto.

Um deles foi direto: o problema é que o sistema não tem pressa. Quando tem orçamento, é difícil comprar equipamentos. Quando compra, é difícil treinar as pessoas. No final, a frase reveladora: “O setor privado fez isso porque tem interesse. Se não tem aula, os pais simplesmente tiram os filhos”.

E o setor público, perguntei, não tem interesse? Pergunta inútil. Se não tiver aula, os pais irão trocar de escola? E irão reclamar para quem? Alguém está realmente preocupado com isso e vai assumir a responsabilidade?

Eis o lado trágico da questão. Temos um sistema de “não culpados”. Os professores não têm culpa por causa do risco e por não terem controle algum do processo; os diretores dependem das secretarias, não controlam o orçamento, sistemas de compras ou a contratação de pessoal.

Os secretários também estão de mãos atadas. Pouco recurso, burocracia, os sindicatos resistem e não podem demitir quem é improdutivo. Por fim sobra o Ministério da Educação, mas o ministro já esclareceu que o problema também não é dele, que a responsabilidade é dos estados e municípios.

Todos reunidos concluiriam, desconfio, que a culpa é “disso tudo que está aí”, como gostava de dizer Leonel Brizola. Que esse papo de eficiência é coisa de neoliberal e que era mesmo impossível converter o drama da pandemia em um trabalho coordenado de inclusão digital.

Melhor tapar o sol com a peneira e pôr a culpa é na desigualdade. Ela mesma, que a inércia estrutural do setor público fará aumentar, como nunca, neste ano triste de 2020.
Fernando Schüler

Campanha contra Carol Solberg une governismo, hipocrisia e burrice

A atleta Carol Solberg foi denunciada ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva por gritar “Fora Bolsonaro” após um jogo de vôlei de praia. O caso mostra que a hipocrisia e o governismo continuam a ditar as regras no mundo do esporte.

A perseguição foi iniciada pela Confederação Brasileira de Voleibol. A entidade divulgou uma “nota de repúdio” e prometeu tomar “todas as medidas cabíveis” contra a jogadora, que já estava sob ataque das milícias virtuais. Por dizer o que pensa, ela foi acusada de violar a “atitude ética que os atletas devem sempre zelar” (sic).

Curiosamente, a confederação não se incomodou quando os jogadores Wallace e Maurício Souza manifestaram apoio a Bolsonaro com a camisa da seleção. Às vésperas da eleição de 2018, a dupla fez o número 17 com os dedos após uma partida do Mundial. Na época, a CBV afirmou que “acredita na liberdade de expressão”.

A Comissão Nacional de Atletas do Vôlei de Praia, que deveria defender Carol, preferiu aderir ao linchamento. O grupo é chefiado pelo campeão olímpico Emanuel Rego, que ocupou cargo no governo até junho.

Os ataques chegaram ao ápice na segunda-feira, quando o procurador Wagner Dantas pediu que Carol seja condenada a multa de R$ 100 mil e suspensão por seis torneios. Na CBN, o jornalista Juca Kfouri lembrou que o STJD nunca julgou cartolas acusados de corrupção, como Ricardo Teixeira e Carlos Arthur Nuzman.

Dantas afirmou que o protesto pôs em risco o patrocínio do Banco do Brasil ao vôlei, iniciado em 1991. Isso mostra como o aparelhamento das instituições está sendo naturalizado no país de Bolsonaro. O procurador admitiu que o governo pode interferir nos contratos de um banco público em retaliação a uma atleta que criticou o presidente. Numa democracia saudável, este seria o verdadeiro escândalo.

A campanha tem um objetivo claro: impedir novas manifestações contra o capitão. Atletas são cidadãos, têm título de eleitor e não devem ser proibidos de falar sobre política. Além de ineficaz, a tentativa de censura é burra. O cerco a Carol só amplificou o seu grito nas areias de Saquarema.

Pensamento do Dia

 


A clareza resolve crises e a transparência salva vidas

As declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros e do Presidente da República em resposta ao embaixador dos EUA foram exemplares, tanto pela rapidez como pela clareza da mensagem. Quando o homem que em Lisboa representa a administração norte-americana – não por ser um diplomata de carreira, mas apenas como recompensa pelos serviços prestados no apoio e no financiamento da campanha presidencial de Donald Trump, em 2016 – tem o desplante de exigir, numa espécie de ultimato, numa entrevista ao jornal Expresso, que Portugal deveria afastar os chineses da futura rede 5G, bem como, entre outras coisas, de uma eventual gestão do Porto de Sines, tanto Augusto Santos Silva como Marcelo Rebelo de Sousa (e uso aqui a ordem cronológica das declarações e não a da hierarquia de Estado) foram de uma assertividade cristalina: em matéria de soberania nacional, Portugal decide por si próprio e não admite interferências de ninguém.

Ambos sublinharam que, nessa matéria, o País tem o direito e o dever de escolher o seu caminho, no quadro da sua História e do seu contexto político e geográfico, mas sem aceitar pressões de aliados ou de parceiros comerciais, resolvendo, num instante e sem rodeios, uma eventual crise diplomática. É disto que precisamos mais vezes: declarações claras, concretas, sem direito a segundas interpretações e que, por isso mesmo, são esclarecedoras e não criam qualquer equívoco ou mal-entendido na opinião pública.

Mais: são declarações que, pela sua clareza, marcam também um rumo para o futuro. Indicam os princípios norteadores e as respetivas linhas vermelhas, de uma forma simples e direta – e serão, por isso, várias vezes lembradas, não tenho dúvida, nos decisivos tempos que se avizinham. O confronto entre os EUA e a China vai, com toda a probabilidade, agravar-se nos próximos anos, seja qual for o próximo inquilino da Casa Branca, e Portugal voltará a ser alvo de pressões, de qualquer dos lados.


É desse bom exemplo de respostas que começamos a precisar urgentemente face à pandemia. Por uma razão simples: é a única forma de se conseguir criar um clima que permita ter a comunidade consciente do que se deve ou não fazer e a compreender, sem grandes dúvidas, as medidas que precisam de ser tomadas.

Um estudo publicado na revista científica The Lancet sobre as ações de vários governos face à pandemia, em diversas regiões do mundo, identificou os fatores que, pela experiência registada até agora, são determinantes para se poder manter a sociedade em funcionamento sem se ser obrigado a recorrer, novamente, a confinamentos com resultados económicos trágicos. Um dos principais fatores a que os autores do estudo chegaram foi o da necessidade de se gerar um clima de confiança na população, antes de se avançar para novas medidas restritivas ou de reabertura. Segundo afirmam, só há uma forma para se criar esse clima: com partilha de informação constante, baseada em dados fiáveis e relevantes. Ou seja: transparência absoluta, tanto sobre a evolução de novos casos como sobre os focos de contágio e as respostas do sistema de saúde.

É preciso também que as pessoas compreendam a razão por que as medidas são tomadas, com informação clara e transparente, para se evitar, por exemplo, que ninguém perceba porque pode haver público numa tourada mas não num estádio de futebol. Ou até, no limite, porque pode haver assistência num estádio durante um concerto, mas não num jogo…

Sem informação transparente, dizem os autores do estudo, as pessoas tendem a não respeitar as regras porque, simplesmente, não acreditam nelas. Ao mesmo tempo que a transparência também ajuda a eliminar regras desnecessárias, porque rapidamente se percebe que não fazem sentido. E, no fim, a confiança ajuda a salvar vidas.

Brasil, um país sequestrado

Caros brasileiros,

Antes da "era Bolsonaro", explicar o Brasil para estrangeiros muitas vezes se resumia numa frase só: o Brasil é mais do que samba e futebol. Vinte e um meses depois da posse de Jair Bolsonaro, eu mudaria a frase para: "O Brasil é mais do que Bolsonaro".

Parece que não há outro assunto. Não importa se é na mídia brasileira, na imprensa alemã ou internacional: só dá Bolsonaro. Senti o desafio na própria pele. Das 40 colunas minhas publicadas desde janeiro de 2019, 16 tratam da política dele.

Refletindo sobre esse fenômeno, me lembrei da "síndrome de Estocolmo". Parece que Bolsonaro, com a sua agenda política, sequestrou mentalmente o país. E uma grande parte da população brasileira se identifica com sua figura atormentadora e criou certa relação de afeto com ele.

O termo "síndrome de Estocolmo" vem de um incidente em 1973 na capital sueca, quando um assaltante de banco fez quatro pessoas reféns e exigiu a libertação de um criminoso conhecido. Nas entrevistas depois do sequestro, que terminou sem mortos e feridos, para surpresa dos pesquisadores, os reféns demonstraram simpatia pelo sequestrador.

Segundo o então psicólogo da polícia sueca Nils Bejerot (1921-1988), que deu o nome a essa síndrome, a atitude faz parte de uma estratégia de sobrevivência das vítimas. Na esperança de que seu tempo de sofrimento diminua, por exemplo, elas criticam a polícia por negociações prolongadas. Na perspectiva dos reféns, se tivesse aceitado logo as exigências do sequestrador, já estariam livres.



Assim, as vítimas começam a apoiar as exigências do sequestrador. Essa submissão o faz se sentir cada vez mais poderoso. Cria-se um pacto entre o contraventor e as suas vítimas. Subconscientemente sabem que dependem dele, como uma criança indefesa que precisa da mãe para sobreviver, mesmo sendo maltratada por ela.

Vejo muitos paralelos com o Brasil atual, que parece estar preso a um governo que sequestrou o país. O cenário de florestas em chamas e valas comuns com vítimas da covid-19 é tão desastroso que a esperança irracional de muitos por uma saída recai justamente em um dos responsáveis por essa situação.

Enquanto a situação se agrava cada vez mais, Bolsonaro mostra seu lado atencioso e, com o auxílio emergencial para milhões de brasileiros, "trata bem" os seus reféns. A estratégia funcionou: a aprovação dele cresce e faz qualquer tentativa de libertação impensável.

Um sequestro pode demorar horas, dias, semanas, meses e até anos. Às vezes, os reféns são libertados por militares ou tropas de elites, como foi o caso do "Landshut", um avião da Lufthansa com 91 passageiros que ficou durante cinco dias, entre 13 e 18 de outubro de 1977, nas mãos de terroristas palestinos. Ou da política colombiana Íngrid Betancourt, que ficou seis anos no poder dos guerrilheiros das Farc.

Em muitos casos, os sequestradores recebem a quantia de resgate exigida e, depois disso, soltam os reféns. Em outros, desistem e se rendem. Às vezes, os próprios reféns descobrem uma maneira de se libertar. Ou eles mesmo conseguem fugir do cativeiro.

Parece que essa última é a estratégia preferida dos brasileiros. Segundo estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil vem subindo no ranking dos países que mais enviam migrantes para economias mais ricas. É também graças a eles que continuo acreditando que o Brasil é mais que Bolsonaro.

Eça de Queiroz e os políticos

Eu li Eça de Queiroz (1845-1900). Atravessei com gosto “O crime do Padre Amaro”, “Os Maias” e “O Primo Basílio”.

Tomei essas obras como espelhos do viés português de dar sentido à vida. Um grande pessimismo, um toque profundo de autorrejeição; um mal-estar sem arrependimentos ou punições, relativamente às transgressões e aos tabus perpetrados pelos protagonistas, como é o caso do rompimento do voto de castidade, da indução ao aborto e do abandono da vítima em “O crime do Padre Amaro”; e da paixão incestuosa dos irmãos nos “Maias”. Nesses livros, e em especial no “Primo Basílio”, há também a reversão não intencional e irônica de atos realizados com óbvias intenções.

Traço de um grande escritor e, ousaria dizer, da dimensão que, na ficção europeia, surge ao avesso do pensamento acadêmico, um pensamento em que os determinismos evolucionistas são dominantes e definitivos. O pensamento revolucionário de Comte, Darwin, Marx, Morgan e Engels, vale notar, situa-se no mesmo horizonte histórico dessas obras de Eça de Queiroz.

Na ficção, apreciamos as tramas, mas não sabemos o resultado em que seus personagens se meteram; ao passo que, nos evolucionismos de cunho biológico ou histórico, tudo seria previsto. O que é transgressão na literatura seria revolução ou etapa na sociologia, na economia e na ciência política. Enquanto os romances podem terminar no vácuo de uma ausência de sentido, as teorias socio-históricas anunciam a evolução da Humanidade...

Voltando ao Eça, “O Primo Basílio” foi o livro que mais me impressionou, não somente pelo triângulo adúltero entre Basílio, Luísa e o marido, Jorge; mas pela irônica redefinição dos elos entre Luísa (como dona da casa) e a sua empregada, Juliana, que, interceptando um bilhete trocado entre Basílio e Luísa, inverte o seu papel e obriga a patroa a fazer serviços domésticos. Há uma dupla inversão: a de Luísa, Basílio e Jorge; e a de Juliana, Luísa e Jorge. Uma dubiedade fundada em elos morais semelhantes aos do padre traidor dos votos de castidade e, nos Maias, aos do incesto de Carlos com sua irmã.

Votos e tabus são rompidos, indicando uma dubiedade que confunde códigos da casa com os da rua. Na obra de Eça, os políticos lusos nada devem aos nossos em má-fé e duplicidade moral. Faz parte da aguda visão de Eça essa confusão moral do lado pessoal com a dimensão coletiva dos cargos que ocupam.


Estamos sofrendo isso à exaustão no Brasil e no Rio de Janeiro, onde um sujeito é eleito num dia e impichado no outro. Vivemos também a intolerância de um presidente da República irascível, que recusa a pergunta de um jornalista ameaçando (esquecido da dignidade do seu cargo) arrebentar-lhe a boca.

É impossível saber o que Eça de Queiroz diria desse nosso mundo ultracontaminado.

Uma frase a ele atribuída — segundo a qual políticos e fraldas devem ser periodicamente trocados pelas mesmas razões — aplica-se como uma luva a este Brasil que, infelizmente, Bolsonaro não deixa que fique acima dele.

Há inúmeros políticos na obra de Eça de Queiroz. O mais popular é o Conselheiro Acácio — que, com seus discursos “acacianos”, formais e banais, ao lado de sua pompa narcisista, surge às pencas no Planalto e nos seus lamaçais. A melhor fabulação do escritor luso sobre a natureza desses tipos, sobre caráter ambíguo, “malandro” e esperto dos políticos vai nesta parábola:

O florista foi ao barbeiro. Após o corte, perguntou o valor do serviço, e o barbeiro respondeu:

— Não posso aceitar seu dinheiro porque estou prestando serviço comunitário esta semana.

O florista ficou feliz e foi embora.

No dia seguinte, quando o barbeiro abriu a barbearia, havia um buquê com uma dúzia de rosas na porta e uma nota de agradecimento do florista.

Mais tarde, no mesmo dia, veio um padeiro. Após o corte, ao pagar, o barbeiro disse:

— Não posso aceitar seu dinheiro porque estou prestando serviço comunitário esta semana.

O padeiro ficou feliz e foi embora.

No dia seguinte, quando o barbeiro abriu a barbearia, havia um cesto com pães e doces na porta e uma nota de agradecimento do padeiro.

Naquele terceiro dia, veio um deputado para um corte de cabelo. Novamente, ao pedir para pagar, o barbeiro disse:

— Não posso aceitar seu dinheiro porque estou prestando serviço comunitário esta semana.

O deputado ficou feliz e foi embora. No dia seguinte, quando o barbeiro veio abrir sua barbearia, havia uma dúzia de deputados fazendo fila para cortar cabelo.

Essa é a diferença entre os cidadãos e os políticos.
Roberto DaMatta