sábado, 11 de abril de 2020

O mundo não pode voltar à 'normalidade'

Não são poucos os religiosos que apontam a ressurreição de Cristo como sendo o principal pilar da Igreja. Sem ela, argumentam, a fé cristã simplesmente não existe. Alguns chegam a apontar a Páscoa como um evento mais central na vida do cristianismo que o próprio Natal.

Mas, ao longo dos séculos, o Natal foi reinventado. O historiador Stephen Nissenbaum, em sua obra The Battle for Christmas: A Social and Cultural History of Our Most Cherished Holiday, relata como a festa de final de ano foi secularizada e transformada praticamente em um feriado burguês. A festa ainda passou a se desenvolver de mãos dadas com um “novo” fenômeno: a ascensão de uma classe média a partir do século 19 e a celebração da infância.

Ainda que os tetos de supermercados sejam tomados por ovos de chocolate, a realidade é que a Páscoa e seu sentido de ressurreição não tiveram o mesmo destino do Natal. Em compensação, elas mantiveram o significado teológico preservado.

Neste ano, tal evento religioso ocorre em igrejas vazias, salvo em alguns rincões de radicais que se recusam a acreditar na ciência. O vazio não ocorre pela falta de fé, transferidas para redes sociais e grupos de WhatsApp. Mas por culpa de uma pandemia que levou religiosos e agnósticos a buscar um sentido para o momento de transição no planeta.

Enquanto bilhões de pessoas estão confinadas, governos buscam formas para sair da crise e retomar a normalidade. Descobrimos que existe um enorme vácuo de liderança e que, mesmo na crise definidora de nossa geração, políticos mergulham na busca por poder e influência global.


Lenta e descoordenada, a comunidade internacional eventualmente conseguirá chegar a um plano de ação. Provavelmente tardio. A incapacidade de agir de uma maneira mais eficiente custará muitas vidas. Já são mais de 100.000 mortos.

Mais cedo ou mais tarde, a retomada virá e pacotes avaliados em mais de 5 trilhões de dólares já foram anunciados por governos para resgatar suas economias e, em alguns casos, seus trabalhadores. A meta de todos: voltar à normalidade.

Mas será que convém ao mundo retornar a tal situação pré-pandemia?

A “normalidade" consistia em aceitar que cerca de 4 bilhões de pessoas não estavam cobertas por quaisquer medidas de proteção social.

A “normalidade” significava que 821 milhões de pessoas ―aproximadamente uma em cada nove pessoas no mundo― estavam subnutridas. Depois de anos de queda, a curva da fome voltou a aumentar no mundo desde 2015.

19,9 milhões de crianças não receberam vacinas durante o primeiro ano de vida. Em 40% dos países do mundo, existiam menos de 10 médicos por cada 10.000 pessoas.

Apenas 60% das pessoas em todo o mundo contavam com uma pia, com sabão e água, em casa. Ou seja, 3 bilhões de pessoas viviam sem instalações básicas para simplesmente lavar as mãos em casa.

Um terço de todas as escolas primárias carecia de água potável, saneamento e serviços de higiene. Uma em cada quatro centros de saúde no mundo não tinha água.

Como ousam, portanto, falar em voltar à normalidade?

Pacotes para sair ao resgate de milhões de pessoas serão necessários. Mas não darão conta de transformar às condições de base que deram, justamente, uma avenida para que a pandemia tomasse a dimensão que ganhou.

Abreviando a vida de milhares de pessoas e se transformando num espelho de um modelo de mundo esgotado, a morte anunciada em forma de números revelou a profunda vulneralibilidade do planeta. Ninguém mais pode dizer que tem um sistema de saúde sólido. Ninguém.

O inimigo invisível nos exige fazer perguntas incômodas. Não vamos precisar de pacotes de resgate. Mas um plano de ressurreição, que exigirá a humildade de líderes, planos, dinheiro e novas prioridades. Vai exigir coordenação entre países rivais, partidos rivais, ideologias rivais.

Enfim, um novo pacto social, capaz de conduzir o mundo a um compromisso para reduzir suas desigualdades. Caso contrário, estaremos apenas estabelecendo uma nova base para a próxima pandemia.

“Os seus mortos viverão. Os cadáveres do meu povo se levantarão”, diz um dos versículos do Livro de Isaias. “E a terra deixará que os impotentes na morte voltem a viver”.

Os impotentes na morte são os bilhões de seres humanos que, ainda que vivos, estão num limbo existencial permanente. Uma prisão perpétua, onde a única liberdade que têm é a de morrer.

Não há como aceitar voltar à “normalidade”.
Jamil Chade

Precisamos falar sobre a renda básica permanente

Há poucos dias, foi sancionada a lei que institui a renda básica emergencial (RBE) de R$ 600 por mês, a serem pagos durante 3 meses prorrogáveis. Como eu já havia escrito neste espaço, a RBE tem por objetivo atender pessoas que não poderiam permanecer em casa para se proteger da epidemia caso não houvesse um programa de governo que as sustentasse durante o período de necessário distanciamento social. Embora a RBE em forma atual seja um benefício temporário, há muitos motivos para torná-la permanente.

O Brasil é um país espantoso. Segundo dados do IBGE, cerca de 50% dos trabalhadores com carteira assinada recebem entre um e dois salários mínimos, enquanto 80% recebem menos de dois salários mínimos. Apenas 10% dos trabalhadores formais ganham mais de R$ 3 mil por mês. De acordo com cálculos feitos por Marcelo Medeiros, metade da população brasileira vive com menos de R$ 1.000 por mês. Estamos falando de cerca de 100 milhões de pessoas que recebem tão somente cerca de um salário mínimo mensal per capita.


Agora, considerem: de acordo com o IBGE, 70% dos redimentos das famíllias de baixíssima renda são destinados a alimentação, transporte e moradia. Ou seja, a maior parte do fluxo mensal dessas pessoas é usada para a subsistência mais básica. Não estão incluídos gastos com vestuário, medicamentos ou itens de necessidade básica para cuidados pessoais. Essas pessoas vivem sem qualquer colchão de segurança, o que significa que, se o chefe de família adoece ou se há algum gasto extraordinário no mês, não há espaço no orçamento mensal para absorver o ocorrido.

Reflitam por um momento sobre isso. Em nosso país há cerca de 100 milhões de indivíduos que vivem na mais precária condição econômica, algo que muitos de nós não têm a capacidade de contemplar. Imaginem a diferença que faria na vida dessas pessoas receber uma transferência de renda sem qualquer condicionante todo mês. A renda básica permanente, pensada desse modo, é mais do que uma ajuda econômica, um assistencialismo. Ela confere dignidade.

Há quem se oponha à renda básica permanente argumentando que ela seria um desestímulo ao trabalho. Entendo o argumento se estamos tratando de pessoas com renda mais elevada do que o montante módico que mencionei anteriormente. Contudo, nem mesmo esse argumento encontra respaldo na literatura acadêmica existente. De acordo com vários estudos, o efeito de programas de transferência de renda sobre os incentivos ao trabalho são, na melhor das hipóteses, ambíguos. No caso brasileiro, quem em sã consciência realmente acredita que alguém que já vive com tão pouco vai deixar de trabalhar porque passou a receber um complemento do governo? A ideia é quase estapafúrdia.

Portanto, vamos ao outro lado da questão: quanto custaria esse benefício incondicional para os cofres públicos? Se 100 milhões de pessoas recebessem uma renda básica de R$ 600 mensais, o montante total no ano alcançaria cerca de 10 pontos percentuais do PIB, valor bastante alto. Com R$ 500 mensais, ou metade do salário mínimo, o custo cai para 8 pontos percentuais do PIB. Com R$ 350 mensais, ou um terço do salário mínimo, o custo seria de pouco mais de 5,5 pontos percentuais do PIB. Evidentemente, parte do gasto com a renda básica é revertido para os cofres públicos na forma de receitas mais altas provenientes de um impulso ao consumo. Afinal, são as pessoas de renda mais baixa que consomem mais como proporção da renda — o que os economistas chamam de propensão marginal a consumir.

Essa população não apenas sofrerá os efeitos mais diretos da epidemia e da crise econômica, mas tais efeitos serão prolongados dadas as curvas epidemiológicas e o curso da doença cujos dados estamos a observar. Mas a defesa da renda básica permanente transcende a crise humanitária que atravessamos.

De uma ótica mais pragmática, a renda básica permanente contribui para a estabilidade da economia e a cidadania na democracia. Já da perspectiva dos valores que compartilhamos, é uma questão de justiça, inclusão e liberdade nesse país tão profundamente desigual que é o Brasil. Chegou o momento de tratar desse tema com a importância e o senso de urgência que ele sempre mereceu.
Monica de Bolle

11.04.01 d.c.

Falar do quê?, eis a questão. De coisas sérias, consequentes, duras, quiçá úteis e até edificantes ou adoçar a boca do leitor com o mel de fait divers escapistas? Remoer a deprimente arenga sanitária martelada ininterruptamente pela TV ou buscar um ponto de fuga lenitivo e psicologicamente profilático?

Sintetizando a questão em dois filmes sobre enfrentamento ao nazismo: vamos de Kanal ou de A Noviça Rebelde?

(Kanal, informo a leigos e desmemoriados, é um filme tenebroso do polonês Andrzej Wajda, sobre a resistência de seus patrícios à invasão nazista. É quase todo ambientado nos esgotos de Varsóvia. Já a fuga da família Trapp, como até as vacas do Tirol sabem, deu-se através das verdejantes colinas de Salzburgo.)

Como as colinas pós-pandêmicas tão cedo não irão revivescer ao som da música, kanalizemos nossa pauta. Ao esgoto, moçada.

Quem chegar vivo ao final da pestilência em curso poderá testemunhar algo que até recentemente parecia ainda um tanto longínquo, embora visível no horizonte: a morte da agenda de austeridade econômica, a vítima mais alvissareira do novo coronavírus.

Mas não se empolguem. A dívida pública de todos os países deverá atingir níveis assustadores, as economias mais frágeis, esse eterno grupo de risco, verão suas desigualdades aumentarem.


Pelos depoimentos que tenho lido, já é quase consenso que aquele mundo que até algumas semanas atrás desfrutávamos, com menos e mais dificuldades, algumas superáveis, deixou de existir. Desapareceu. E não mais voltará.

A nostalgia encurtou seus prazos; saudade não tem mais idade. Neste primeiro ano da Era Coronavírus, Ano 1 d.c., até crianças já suspiram pelo carnaval de 2020. Ou pelo Natal de 2019.

Sinto-me como se tivesse mudado para outro planeta, cujos habitantes não se interagem, não se confraternizam, não se tocam, onde todos desconfiam e se repelem mutuamente. Até quando seremos (ou nos sentiremos) todos leprosos?

Vejo fotos e filmes em que as pessoas conversam, cumprimentam-se, abraçam-se e dividem a mesma mesa ou o mesmo sofá, e, do alto (no meu caso, nove andares) da minha também pobre experiência quarentenal, me pergunto: qual mundo nos é mais estranho, este que estamos vivenciando ou aquele que, para o nosso bem, teremos de esquecer?

Nunca pensei que um dia fosse experimentar na vida real o que tão marcadamente me intrigou ao ver, em criança, O Dia em que a Terra Parou, a versão original, dirigida por Robert Wise. Como seria se nosso planeta fosse, como no filme, inteiramente paralisado por uma força superior, no caso, a mente de um ET benigno, chamado Klaatu? Todos os aparelhos elétricos são súbita e misteriosamente desligados, exceto os de hospitais e aviões em voo, resultando num breve mas incisivo apagão global, para que os terráqueos aprendam a viver em harmonia, em paz permanente. Não aprendemos.

A espaçonave que até nós trazia Klaatu e seu fiel robô Gort aterrissava em Washington, e como em 1951 a Guerra Fria já estava amornando, tomaram-na por um disco voador soviético, despachado do Kremlin para destruir a América e o resto do Ocidente. As xenófobas imputações feitas à China, nas últimas semanas, por conta do novo coronavírus, aqui e lá fora, seguiram portanto um padrão de idiotia paranoica e anticomunismo fuleiro coberto de mofo.

A covid-19 é um Klaatu em forma de microrganismo; quem sabe não iremos tirar proveitosas lições de sua disseminação. Já aprendemos a revalorizar a solidariedade, o papel da imprensa e o heroico SUS; pouca coisa não foi. Mas ainda é pouco.

Das mil e uma ideias implementadas para amenizar o claustro pandêmico e desentediar a mídia impressa, uma das mais fagueiras foi a série Janelas Para o Mundo que um consórcio de jornais europeus, encabeçado pelo alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung e o italiano Corriere della Sera, bolou com a participação de escritores e filósofos europeus. Cada convidado conta o que tem visto de sua janela ou nela tem corvejado sobre a vida, os últimos acontecimentos e o que mais lhe aprouver.

Residente em Milão, Antonio Scurati, o festejado autor da mais recente biografia de Mussolini, M, o Filho do Século, testemunha de sua finestra o que ele define como o fim de uma era, “a era do mais longo e distraído período de paz e prosperidade desfrutado na história da humanidade”. É com tristeza e uma pitada de ironia que ele acompanha e narra a transformação da cidade mais rica, privilegiada e evoluída da Itália, polo mundial da moda e do design, em capital mundial da contaminação virótica.

Pouco importa que Nova York já a tenha ultrapassado nesse ranking sinistro. Scurati não mora em Manhattan, é milanês adotivo. A Milão que ele descreve – com seus ricaços fazendo fila para comprar um pão ordinário na mercearia de imigrantes que antes olhavam com desprezo, mas hoje é a única em funcionamento nas vizinhanças – me pareceu a que vimos em A Noite, de Antonioni, metamorfoseando-se na proletária periferia que De Sica retratou em Milagre em Milão.

A um metro de distância um dos outros, “ao mesmo tempo ameaçadores e ameaçados”, os ricaços na fila do pão formam uma felliniana farândola de mascarados. Suas improvisadas máscaras em nada lembram as dos carnavais venezianos. São precárias gazes meio desfiadas, que pendem de rostos transtornados pela “melancolia mole dos restos de uma era acabada”, arremata Scurati.

Da minha janela eu ainda vejo o Corcovado e o Redentor, que lindo. É um consolo. Boa sorte a todos.

Pensamento do Dia


Jim Jones tupiniquim

O presidente Jair Bolsonaro está cavando um abismo a seus pés lutando contra a realidade trágica da Covid-19. Não há saída honrosa para ele diante da perspectiva de recessão econômica - o ministro da Economia Paulo Guedes já teme um PIB negativo de 4%, há bancos prevendo até 6% - e de um dramático número de mortes, que já está na casa do milhar antes de um mês de quarentena. 

As demonstrações diárias de irresponsabilidade acintosa vão ganhando perigosos ares de desequilíbrio comportamental que, em vez de aumentar suas chances de concorrer à reeleição, vão lhe retirando essa possibilidade, reduzindo seu apoio a um grupo de fanáticos. 

A mais recente pesquisa DataFolha mostra que 17% dos eleitores que votaram em Bolsonaro no segundo turno estão arrependidos, o que quer dizer que cerca de 10 milhões de pessoas o abandonaram, fazendo com que tivesse hoje, teoricamente, menos votos do que obteve no primeiro turno. 

Não quer dizer, porém, que todos os que não se declararam arrependidos estejam contentes com o governo Bolsonaro. Muitos, certamente, não se arrependeram porque consideram que o principal papel de seu voto foi derrotar o PT. 



Pesquisas de opinião pública mostram que Bolsonaro mantém um apoio em torno de 30% da população, o mesmo índice que o PT costumava ter antes de chegar ao poder, igual ao percentual de votos que o candidato petista Fernando Haddad obteve no primeiro turno. 

Não há indicações de que o PT tenha mantido seu nível de apoio de lá para cá, e o desgaste de Bolsonaro é nítido. Por isso a polarização contra o PT é bom, teoricamente, para os dois, mas especialmente para Bolsonaro se ele já não tivesse provado que não é apenas um antipetista, mas um desequilibrado, técnica e emocionalmente incapaz de enfrentar crises como a que atravessamos, e moralmente corrupto. 

Não acredito que o PT tenha, nesses anos recentes, recuperado a imagem de honestidade e credibilidade que conseguiu introjetar no eleitorado, e acho, portanto, que uma repetição da polarização dificilmente acontecerá. Os extremos já se mostraram incapazes de dar uma solução para o país.

O desgaste de Bolsonaro só se acentuará nos próximos anos, já que ele é incapaz de ser outra pessoa. Já era assim antes da campanha, mas era o que tinham os que queriam alijar o PT. O centro político foi incapaz de apresentar uma alternativa ao eleitor de centro-direita que demonstrasse viabilidade eleitoral, diante da radicalização que tomou conta da eleição. 

Abre-se um caminho largo até 2022 para candidatos de centro se firmarem no cenário político nacional, e os governadores, que são protagonistas dessa guerra contra a Covid-19, podem colher resultados positivos, como já demonstram as pesquisas de opinião e as redes sociais. Por isso, a cada vez que surge um político que se destaque, passa a ser potencial candidato a presidente: é assim com Mandetta, é assim com Moro. 

O comportamento do presidente Bolsonaro, ao sair às ruas em Brasília, é acintoso, atitude que não pode ser vista como normal. Por causa desse comportamento, nossa política de isolamento social está começando a afrouxar, a ser rompida por grupos incentivados pelo presidente. 

Não é assim que a economia vai melhorar, e esse afrouxamento provocará mais mortes, mais sofrimento. Não é à toa que a embaixada alemã está recomendando a seus cidadãos que regressem ao seu país. 

Bolsonaro será responsabilizado pessoalmente pelo aumento das mortes. Não é possível ter um presidente que estimula a população a se arriscar numa pandemia, como um líder místico levando seus seguidores para o suicídio coletivo. Bolsonaro, nosso Jim Jones tupiniquim, será o PT da próxima eleição, aquele a quem será preciso afastar do poder.

Medicina BBB

Estamos na época da medicina BBB, feita por votação. Medicina e pesquisa de rede social. Você não consegue mais não dar cloroquina para um paciente meio grave. A família pressiona e, se você não der, no dia seguinte você não é mais o médico
Luiz Vicente Rizzo, diretor superintendente de pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein

Os bolsonaros da China

Na França de 1860, um médico vai sair para fazer um parto. Limpa a caspa das lapelas com as mãos, pega os instrumentos e, ao jogá-los na maleta, um deles cai ao chão. O médico o recolhe e o atira na maleta. Sua paciente morrerá ao dar à luz, vítima não da "febre do parto", como se dizia, mas dos germes provocados pela falta de higiene no procedimento. Os médicos da época sequer lavavam as mãos para trabalhar.

Assim começa o filme "A História de Louis Pasteur", de 1936, do subestimado William Dieterle, que rendeu a Paul Muni o Oscar pela interpretação de Pasteur. Embora fosse um filme da Warner, especializada em gângsteres, as armas em cena eram os microscópios, não as metralhadoras. A história mostra Pasteur sofrendo dura oposição dos médicos, para quem sua teoria dos micróbios como causa das doenças era um delírio. Eles fazem o governo proibi-lo de pesquisar e só vão lhe dar razão 20 anos depois, quando a França já estava quase dizimada.


Na vida real, Pasteur não foi assim tão perseguido, nem descobriu sozinho a cura para as infecções. Mas essa história antecipa a vivida 160 anos depois por um médico chinês: o dr. Li Wenliang, o primeiro a alertar, a 30 de dezembro último, sobre a iminência de uma epidemia. Wenliang descobrira sete pacientes com sintomas de um novo coronavírus no hospital onde trabalhava, em Wuhan.

As autoridades policiais e médicas da China o acusaram de "propagar boatos" e "perturbar a ordem social" e o obrigaram a se desmentir. Mas, a 12 de janeiro, o próprio Wenliang caiu infectado. Internou-se e morreu três semanas depois. Se seu alerta tivesse sido ouvido no começo, talvez milhares de vidas ainda pudessem ser poupadas.

Hoje, o dr. Li Wenliang é um herói na China. Já os bolsonaros locais --e eles são os mesmos em toda parte--, que negaram a gravidade da denúncia, serão esquecidos, para lástima dos tribunais da humanidade.

Ruy Castro

Bolsonaro, o exterminador do futuro de muita gente

Em que parte do mundo já se viu um chefe de Estado sair a passear em plena pandemia de um vírus desconhecido que mata a roldo? Em que parte se viu um abraçar pessoas podendo ser contaminado por elas ou então contaminá-las?

Onde já se viu um chefe de Estado desacreditar medidas de restrição social baixadas por governadores e prefeitos e endossadas pelo Ministério da Saúde do seu próprio governo? Os poucos que tentaram recuaram logo em seguida.

Pois é o que tem feito o presidente Jair Bolsonaro desde que voltou dos Estados Unidos há pouco mais de um mês trazendo uma dezena de acompanhantes infectados pelo coronovírus e que, uma vez no Brasil, infectaram uma dezena ou mais de pessoas.

Em um país onde o presidente da República manda muito, embora nem tanto quanto desejaria, ele é a primeira referência dos governados. Natural que seja. O que diz é ouvido e repetido, e o que faz libera a população para que faça também.

Bolsonaro sabe disso, mas quando é conveniente finge não saber e banca o inocente. Se estimula os brasileiros a abandonarem o confinamento e a retornarem às ruas, parte deles o segue. Não é possível que ignore os efeitos perversos de sua atitude.


Há mais de um mês que o ministro Luiz Henrique Mandetta rendeu-se à orientação da Organização Mundial da Saúde acolhida por todos os países assolados pelo vírus: fique em casa. Circule o mínimo possível. Deixe para depois tudo o que possa.

O chefe de Mandetta faz o contrário. No último dia 15, recepcionou em frente ao Palácio do Planalto manifestantes ali reunidos para pedir o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Tocou com as mãos em mais de 250 deles.

Anteontem, foi a uma padaria de Brasília tomar um refrigerante e comer um doce. Bem recebido por uns, hostilizado por outros, provocou aglomerações, apertou a mão de admiradores e foi embora assim que bateram as primeiras panelas.

Fez pior ontem. Depois de uma escala no Hospital das Forças Armadas, saiu direto para uma farmácia, atraindo gente. Visitou um dos filhos que aniversariava. E ao sair do prédio com o nariz escorrendo, limpou-o com o braço e apertou mãos.

O que pretende com isso? É uma pergunta que ele não responde, e quando o faz tergiversa. O que ele consegue com isso? Que as pessoas, e não só as que o cumprimentam, se exponham ao risco de se contaminar e de morrer.

Age como uma espécie de exterminador do futuro de milhões de brasileiros. Não é muito diferente do pastor americano James Warren “Jim Jones”, fundador e líder da seita Templo dos Povos, que em novembro de 1978 promoveu um suicídio em massa.

No início dos anos 60 do século passado, Jim Jones esteve no Brasil porque julgava Belo Horizonte um dos lugares mais seguros do mundo se houvesse uma guerra nuclear. Mudou-se mais tarde para o Rio onde trabalhou durante alguns anos com favelados.

Mas foi em Jonestown, capital da Guiana, que se sentindo ameaçado, convenceu seus devotos a se matarem. Primeiro os pais mataram os filhos, envenenando-os com cianureto. Depois beberam o veneno. Ao todo, morreram 918 pessoas.

Bolsonaro ainda não mandou que ninguém tomasse veneno. Manda que não levem a sério um vírus que já matou até ontem mais de mil brasileiros e infectou quase 20 mil. No mundo, em 100 dias, matou 100 mil pessoas. E, por aqui, o estrago mal começou.

Merkel e rainha Elizabeth mostram como se faz

1. Falar sem rodeios

Há não muito tempo, eu recebi uma mensagem invejosa de um amigo em Washington: "O discurso de Angela Merkel, de que 60% de nós vamos pegar o vírus, a transformou automaticamente numa heroína para mim."

No início da crise, a chanceler federal alemã se dirigiu diretamente aos alemães – como ela nunca havia feito, com exceção das saudações de Ano Novo – para explicar como o governo iria protegê-los diante daquilo que ela descreveu como o maior desafio que o país enfrentava desde a Segunda Guerra Mundial.

De forma simples e objetiva, e não só naquele discurso, mas também em podcasts e entrevistas à imprensa, ela relatou os fatos como eles eram, explicou conceitos como "achatar a curva" e discorreu detalhadamente sobre temas tão banais como lavar as mãos e fornecimento de papel higiênico.

No seu discurso aos britânicos, no domingo passado, a rainha Elizabeth 2ª começou reconhecendo o estado de perturbação e preocupação e as dificuldades financeiras que a nação enfrenta.

Assim como a chanceler federal alemã, e em forte contraste com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ela não deu garantias falsas nem alegações tranquilizantes sobre potenciais remédios ou estratégias de saída.

Quando os cidadãos dispõem de fatos, eles podem tomar decisões sobre como reduzir os erros, tanto de forma individual como coletiva. Quando líderes confundem, negam e iludem, eles transformam um risco potencialmente controlável num perigo incalculável, semeando o medo e a passividade.


2. Empatia e exemplo

Nem a chanceler federal alemã nem a rainha britânica são conhecidas por sua afetuosidade e conexão com as pessoas. Porém, seus discursos foram tanto mais convincentes por causa do tom de comedimento e sobriedade.

A rainha relembrou sua primeira transmissão aos jovens evacuados, no auge dos ataques nazistas a Londres, em 1940, ao falar sobre o doloroso sentimento de separação dos entes queridos – um sentimento conhecido de muitos britânicos no momento.

A chanceler assegurou aos seus ouvintes que, na condição de alemã-oriental, para quem a liberdade de ir e vir é um direito duramente conquistado, ela está plenamente consciente de que a suspensão da vida em público é uma forte agressão.

Ambas expressaram agradecimento em termos claros e profundos a todos aqueles que colocam em risco a própria saúde e a da sua família para manter serviços essenciais.

As duas também deram exemplo.

A rainha e o príncipe Philip iniciaram seu autoisolamento em 19 de março.

No início do isolamento social, quando pessoas em pânico começaram a estocar, Merkel visitou um supermercado e foi fotografada com uma sacola com alguns poucos produtos, incluindo apenas um pacote de papel higiênico (e várias garrafas de vinho). Em seguida, ela entrou em quarentena após receber uma vacina de um médico que, logo depois, testou positivo.

Depois de três testes negativos de covid-19, ela retornou na semana passada à chancelaria federal e falou abertamente sobre como as duas semanas de isolamento foram difíceis.

Trump dedica elogios e gratidão principalmente a si mesmo e – de vez em quando – aos titãs corporativos de que ele se cerca em seus relatos diários. Ele desdenha de assessores médicos na cara deles, transforma críticos em bodes expiatórios e flagrantemente desobedece práticas de higiene como usar uma máscara respiratória. Mesmo quando declarou uma emergência nacional, ele distribuiu tapinhas nas costas e estendeu a mão para outras pessoas.

Apenas uma diferença de estilo? Os americanos se tranquilizam com gestos exagerados de autoadulação, enquanto os europeus preferem sobriedade? Não acho.

Transparência, empatia para com os atingidos e não apontar o dedo para outros são práticas padrões de comunicação em tempos de crise e visam transmitir credibilidade e confiança. Quando cidadãos recebem pedidos para se submeter a fortes agressões à sua liberdade, a confiança é talvez o mais forte impulsionador da observância.

3. Dignidade

O que a chanceler federal alemã e a rainha britânica possuem e transmitem e que o presidente dos EUA não tem é dignidade. Por que dignidade é importante? Pelo mesmo motivo que os fatos são importantes e a empatia e o exemplo impulsionam: a dignidade é contagiosa, ela catalisa uma resposta.

Se os líderes se comportam com disciplina e comunicam com respeito, eles impulsionam os cidadãos a agir. Isso tem benefícios subjetivos para aqueles que estão inseguros e temerosos, assim como consequências objetivas para a gestão da crise. Seja achatar a curva agora, seja reconstruir nossa economia depois, superar a pandemia requer que todos nós ajamos pelo interesse da sociedade.

Se as pessoas seguirem apenas seus próprios interesses, elas vão retardar ou até mesmo reverter a recuperação. O bem comum não é sempre claro e evidente. É necessário uma liderança convicta para explicar o objetivo e os meios.

Felizes são as sociedades que têm líderes assim em tempos como estes.

Pra frente, Brasil!


O ministro, o chefe do ministro e a pandemia de ‘fake news’

Na terça-feira o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, deu mais uma de suas coletivas diárias. Mostrou-se olímpico, seguro de seu papel e de seu cargo. Mandetta tem hoje mais estabilidade do que Jair Bolsonaro. O presidente pode demiti-lo – os generais não deixam.

A impotência presidencial tem um quê de conto de bruxas. O presidente vai fazer a barba de manhã e pergunta ao reflexo de si mesmo: “Espelho, espelho meu, existe algum ministro mais querido do que eu?”. O espelho responde, dá o nome e o endereço, mas Bolsonaro, corroído de ciúme, não tem poder para expulsá-lo da pasta. Está reduzido ao papel de presidente-café-com-leite-muito-embora-bravateiro. Sai enfezado do Palácio da Alvorada e se põe a berrar sobre a crueldade ministricida de sua caneta, uma senhora canetona, que é maior do que a caneta dos outros (ele e sua obsessão com símbolos fálicos).

Palavras ao vento. Contra Mandetta a caneta do narcisista que desconhece a beleza vale menos do que uma aspirina. O sereno ministro da Saúde sabe disso e, por saber, tripudia. Na terça-feira, em sua coletiva, disparou recados ácidos – ainda que elegantes – contra o chefe que não o chefia. Entre outros venenos, amaldiçoou as fake news (gênero narrativo adorado pelo café-com-leite) e as redes sociais (o ambiente predileto do estadista avesso à máquina estatal).


“As fake news, esse final de semana, fizeram um gráfico igual àqueles gráficos da epidemia”, diagnosticou o ministro. “Fake news foi o que mais subiu, subiu bem mais que o número de casos (de covid-19).”

Mandetta aproveitou para denunciar que circulam perfis falsos como se fossem dele e avisou com total explicitude: “Não sou de mídia social, não gosto; gosto do mundo real. Vou trabalhar essa epidemia no mundo real. O que eu tiver que falar, não acreditem em nada que não seja falado aqui (nas coletivas diárias, diante das câmeras de TV). (...) Eu não posto nada, eu não comento nada, eu não faço nada nesse mundo virtual”.

O que ele está dizendo, em suma, é que adota o estilo oposto ao do chefe que não é chefe. Este, abduzido pelas fantasmagorias imaginárias do seu conto de bruxas, acha que governa pelo Twitter, pelas lives e pelo histrionismo de suas milícias virtuais. Em sua fantasia de filme de terror, alimenta-se da bajulação dos seus fiéis fascistinhas de WhatsApp, que sabotam o isolamento e insultam os chineses com ofensas racistas. Bolsonaro substitui a burocracia governamental pelos urros virtuais dos seguidores e acredita que assim deixa para trás a “velha política”.

O resultado prático de seu delírio é muito simples e palpável: em cada um de seus atos acentua a dissolução dos regramentos da administração pública em favor da dinâmica dos “engajamentos”, das “curtidas” e do irracionalismo das redes. Para ele, os algoritmos opacos dos conglomerados globais que monopolizaram as comunicações na era digital são a mais perfeita tradução da vontade do povo. Sim, é uma sandice, mas é nessa sandice que ele acredita. O triunfo de sua crença acarretará a derrocada do Estado, da República, da política e da democracia. Bolsonaro gosta de fake news porque vê o Estado, o governo, a República, a política e a democracia como um embuste a ser destruído. Ele e as fake news nasceram um para o outro. Nasceram um do outro.

Razoável, o ministro da Saúde rejeita as doideiras do presidente e veste o colete do SUS para apostar no caminho inverso. Com razão, parece entender que as fake news concentram uma ameaça tão ou mais grave do que a pandemia. O poder público fica anulado se não puder contar com informações baseadas na ciência e se essas informações não servirem de base para o debate público e para a orientação das pessoas e da sociedade. Sem fontes confiáveis e um sistema organizado de comunicação, não há governança para a crise.

A indústria das fake news – que hoje no Brasil está a serviço do bolsonarismo – opera para minar a confiança do público nas autoridades, na política, na universidade, na ciência e na imprensa. No longo prazo, essa indústria fabrica fanatismo e clamor por uma tirania de extrema direita no Brasil. No curtíssimo prazo, amplifica o número das mortes que virão com o coronavírus e agrava a recessão econômica que virá depois. Isso mesmo. Em sua narrativa perversa, as fake news do bolsonarismo dizem defender a economia e os empregos, mas, ao patrocinarem a explosão do número de casos e o colapso do sistema de saúde, produzirão a desagregação social, com violência e criminalidade ainda mais generalizadas, e isso tornará mais improvável qualquer recuperação econômica.

Será difícil enfrentar essa indústria, que conta com o apoio esgoelado do presidente-café-com-leite. Ele tem pouco poder (não consegue nem falar grosso com o ministro da Saúde), mas a indústria em que ele joga suas fichas tem uma capacidade gigantesca de produzir estragos. E, por enquanto, não há vacina contra a usina de fraudes desinformativas com que o presidente e suas falanges robóticas vêm infestando a sociedade brasileira.

Água, sabão, álcool em gel e muita fé em Deus

O que será que leva Jair Messias Bolsonaro a se comportar como um moleque ignorante e rebelde? Quem será que o convenceu a agir desse modo e quais as razões apresentadas que fizeram com que ele seguisse essas pífias orientações?
Há quem acredite que são seus filhos, os três zeros. Não acredito nisso. BolsoNero é raso e muito pouco informado, mas não é completamente burro e com toda certeza já percebeu que seus filhos só lhe armam problemas, e problemas cada vez mais graves.

A crise com a China, que por pouco não se transformou num caso diplomático que poderia arrasar com o Brasil, foi criada por um dos zeros, aquele que só tem um foco: a embaixada brasileira em Washington DC. Os outros dois zeros vivem ou se esquivando da força da Lei ou exercendo a mais agradável das atividades: um emprego público, com um bom salário, mas sem presença e sem o suor de seu rosto... Se nós, público, já percebemos que seus filhos são seu enguiço, não acredito que o BolsoNero ainda não tenha sentido o tranco.

A foto do BolsoNero numa padaria na Asa Norte de Brasília, abraçado a um freguês do estabelecimento, é de arrepiar! Será que ele não teme chegar em casa e infectar sua mulher, sua filha e sua enteada? Ou o motorista de seu carro? Será que os brasileiros puseram no Palácio do Planalto um cara sem alma?


Não acreditar que o isolamento social é a única forma que o mundo tem de vencer essa pandemia é a mais inacreditável estupidez. Será que ele, ou algum dos zeros, não lê jornais estrangeiros? Não souberam que os países que não exerceram a quarentena, logo depois dessa péssima ideia, arrependeram-se amargamente? Não leram ou ouviram, por exemplo, o angustiado pedido de desculpas do prefeito de Milão? Não sofreram ao saber do número de mortos na Itália? Não doeu ver um dos mais belos países do mundo destroçado por tantas mortes, a ponto de serem proibidas as cerimônias de adeus tão caras ao espírito italiano?

Vou dar ao BolsoNero o benefício da dúvida. Vai ver só dói nele o que vem das terras de Trump. Pode ser. Afinal, são almas gêmeas. Cada um de nós tem seus afetos, não é? Chorei ao ver o papa Francisco rezando uma missa sozinho, absolutamente só, na imensidão da Praça de São Pedro. Vai ver BolsoNero chorou ao ver o Times Square vazio. Pode ser. É triste mesmo ver aquele grande e rico espaço vazio. Mas a comparação com Trump parou aí: Trump sentiu o murro que a pandemia lhe deu e vem pedindo ao povo americano que não desrespeite a quarentena.

É evidente que a economia mundial vai sofrer com essa doença maligna. Mas nós sabemos como o Homem é capaz de se reerguer. Em 1960, quinze anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, fui à Europa pela primeira vez Vi países com economias pujantes, um comércio riquíssimo e cidades absolutamente deslumbrantes.

A Europa teve a ajuda do Plano Marshall, é verdade. E nós, se os zeros pararem de brigar com o mundo todo e ignorarem o indigitado Olavo de Carvalho, também saberemos recuperar nossas forças e recriar nosso Brasil. Talvez mais forte e mais organizado. Se formos pacientes e só abandonarmos a quarentena quando o vírus já estiver dominado. Temos que ser pacientes, controlados e principalmente, saber votar nas próximas eleições. Com a mão bem lavada e desinfetada com álcool gel. Sem esquecer de pedir ajuda a Deus!

O que virá depois?

Nada é definitivo, exceto a consciência da inevitabilidade da morte. “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Crenças, convicções, certezas, ideologias, dogmas podem ser abalados pela evolução natural das coisas, pelo avanço da civilização e do conhecimento. Só o fantasma da morte nos traz a noção exata da transitoriedade da vida e da fragilidade de tudo que julgamos inabalável. Diante da morte, abandonamos a superficialidade das aparências e mergulhamos na essência da existência humana.

Diante de nossas fragilidades reveladas, talvez o melhor refúgio seja no terreno da arte, que nasce da sensibilidade humana. Nosso grande poeta itabirano escreveu certa vez: “Por que nascemos para amar, se vamos morrer? Por que morrer, se amamos? Por que falta sentido ao sentido de viver, amar, morrer?”. Nos escritos de Guimarães está lá: “Viver é um negócio muito perigoso”, “A gente morre para provar que viveu”. Um grande amigo meu gosta sempre de lembrar Clarice Lispector: “e bem sei que cada dia, é um dia roubado da morte”.


Na semana passada lancei a pergunta: depois da tempestade, virá a bonança? E concluí que tudo vai depender do aprendizado que fizermos na crise. Perguntei: será que vamos repensar nosso estilo de vida? Vamos contrapor vidas a empregos ou entender que o trabalho é uma ferramenta para uma vida feliz? Teremos uma nova percepção da natureza humana única em escala global para além de fronteiras, governos e nações? Seremos mais solidários ou egoístas? Entenderemos que diante da ameaça da morte, as distâncias entre ricos e pobres, poderosos e cidadãos comuns, se encurtam? Afinal, até o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, luta para sobreviver numa UTI. Seremos menos arrogantes e mais humildes politicamente para construirmos o diálogo necessário e os consensos em torno da solução dos verdadeiros problemas que atingem a população? Finalmente, vamos valorizar na medida certa o sistema de saúde, seja o público ou o privado?

Mas outras lições são possíveis. Com o aprendizado da quarentena, as formas de trabalho poderão avançar, criando mais espaço para o “ócio criativo”. Pensaremos nisso? As famílias, para o bem ou para o mal, estão tendo uma convivência muito maior, se conhecendo melhor, resgatando hábitos arquivados pela insanidade de nosso ritmo frenético neste mundo tão carente de resignificação. Será que os pais ficarão menos no trabalho e na internet, e curtirão e brincarão mais com seus filhos?

A hibernação involuntária, ditada por um vírus, certamente determinará uma queda expressiva das mortes no trânsito e as resultantes da violência. Será que aprenderemos um pouco sobre gentileza e respeito nas ruas e nas estradas ou pensaremos duas vezes antes de usar uma arma de fogo? As maiores e mais poluídas cidades do mundo estão registrando queda na poluição urbana. Será que após a crise revalorizaremos a questão da sustentabilidade ambiental?

Será que jovens e idosos terão um convívio mais harmônico, para além do choque de gerações, em homenagem ao padre italiano, Giuseppe Berardelli, que morreu ao abrir mão de um respirador em favor de uma pessoa mais jovem?

Hoje sentimos como nos é essencial o universo lúdico das artes e do esporte. Como nos fazem falta os gols de domingo, as cestas da NBA, a Olimpíada adiada, a ida à ópera ou ao show de rock ou de MPB, o teatro ou a novela interrompida. Será que olharemos a partir de agora nossos geniais desportistas e artistas com mais gratidão, respeito e admiração? E a ciência? Ficamos torcendo para que sejam descobertos logo uma vacina ou um remédio contra o coronavírus. Valorizaremos mais, muito além da estúpida politização da questão da cloroquina, os investimentos em ciência e tecnologia?

Como disse Bertrand Russel: “O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, e as pessoas idiotas cheias de certezas”. O que virá depois? Só o aprendizado dirá.

Covid-19

Karolis Strautniekas
Para lembrar os que se foram
e jamais irão voltar
calemo-nos agora
e calados fiquemos
um minuto que seja
ou tanto quanto
nós possamos ficar.

Raul Drewnick

100 milhões!

Desigualdade virou palavrão desde a chegada ao Palácio do Planalto do atual ocupante. Jair Bolsonaro não deve tê-lo pronunciado nenhuma vez na vida e, ao escutá-lo, deve achar repugnante como “golden shower”, de cujo significado se inteirou num passado Carnaval. Entre a prole o sentimento é igual, ou maior. Fale-se em desigualdade ao Carluxo e ele considerará o interlocutor mais comunista do que o João Doria. Eduardo postará nas redes que desigualdade é o outro nome do “vírus chinês”. E Flávio, o primogênito? Atribui-se a Goebbels, ultimamente tão popular no Brasil, a frase: “Fale-se em cultura, e eu puxo meu revólver”. Flávio diria: “Fale-se em desigualdade, e eu chamo o Queiroz e o Adriano”. No entanto, veio a pandemia do coronavírus e...


O mercado financeiro gosta da imagem cunhada por Warren Buffett para as horas de imprevisibilidade. “Quando a maré baixa, fica-se sabendo quem está nadando nu”, disse o megainvestidor. Pois veio a pandemia da Covid-19 e o Brasil exibiu-se peladinho, com suas hordas de catadores de lixo, acrobatas de cruzamento, flanelinhas, moradores de rua, vendedores de pano de chão, vendedores de bala, camelôs, boias-frias, mendigos. Sem falar nas diaristas, entregadores de pizza, motoristas de Uber, nas manicures, pescadores, ajudantes de pedreiro, garis. E sem se esquecer das domésticas sem registro, dos garçons sem salário, dos beneficiários do Bolsa Família, dos manobristas (ou manobreiros, conforme a região do país), das professoras do sertão que ganham meio salário mínimo, dos tocadores de biroscas nas favelas. Não bastasse o pesadelo da pandemia, nasceu para o Brasil um pesadelo dentro do pesadelo: e quando, e se, o vírus espalhar-se pelas comunidades pobres, imensas, superpovoadas, apertadas e mal servidas de serviços públicos?</p>

É uma trapaça do destino que, por cortesia do coronavírus, esse Brasil, com a força de um monstro que se desenterra da caverna, onde sobrevivia invisível, tenha batido de cara bem com esse governo. Entre a coleção de infâmias saídas da boca presidencial na presente crise, em continuação às infâmias ditas antes, uma das mais cruéis foi: “O brasileiro tem de ser estudado, não pega nada, o cara fica pulando no rio ali junto com o esgoto e o cara não pega nada”. Travestida de elogio ao brasileiro, a fala se traduz num antológico elogio da falta de saneamento básico. No entanto, com toda a sua alienada insensibilidade, o governo Bolsonaro, empurrado pelo Congresso, teve de reconhecer que será preciso prestar um auxílio emergencial a um contingente de brasileiros que, segundo projeções, poderia chegar a 100 milhões. 100 milhões!</p>

<p>É uma segunda trapaça do destino, uma piada em tempos de tragédia, que esse encargo hercúleo tenha caído no colo de uma equipe econômica guiada pela elegante ideologia do Estado mínimo. E é uma terceira prova de como o destino pode ser brincalhão que o Brasil dos 100 milhões, ao ser dimensionado e catalogado, receba o reconhecimento oficial justamente de um governo ao qual repugna falar em desigualdade. Entra verão e sai verão, o Brasil dos pobres e miseráveis aparece nos noticiários da TV. É constituído daqueles que, nas enchentes, têm suas moradias arrasadas. “Perdi tudo” é a frase que mais se ouve, dita entre restos de sofá e imprestáveis geladeiras. Boa parte dos brasileiros que integram os 100 milhões acompanha a cena anestesiada.

É bom que, sob a pressão das circunstâncias, o governo tenha dado números e peso ao Brasil dos desassistidos, esse Brasil que tem ares de pedaço piorado da Índia, porque sem saber inglês e sem as expectativas do desenvolvimento acelerado, ou de extensão um pouco melhor da África, porque sem (por enquanto) o ebola e a aids epidêmica. Melhor será se o auxílio deixar de ser emergencial e, passada a epidemia, tornar-se um colchão permanente de renda mínima (não é que o Suplicy tinha razão?). E ainda melhor se for acompanhado de maior carga de impostos sobre os ricos e seriedade na gestão dessa maior das alavancas de promoção social que é a educação, hoje entregue a um bobo insano. O cientista político Fernando Schüler defendeu a “renda básica universal” num recente artigo na Folha de S. Paulo. Atenção, Jair, Flávio, Carluxo e Eduardo: Schüler não é comunista. É um liberal, crítico da esquerda. Schüler escreveu que a eliminação da miséria é “o desafio ético do nosso tempo”, e concluiu: “É esta a nossa fronteira civilizatória, assim como foi, no século XIX, o fim da escravidão”.