domingo, 7 de junho de 2020

Ruas vazias falam mais alto

Grupos pequenos filmados bem de pertinho para parecer multidões, carreatas com buzinaços ao lado de hospitais, plateia na rampa do Palácio do Planalto entre abraços, beijos e selfies com o “mito”. Xingamentos e agressões físicas a jornalistas. Fora STF, Fora Congresso, Intervenção Militar Já, bandeiras de Israel e da Ucrânia. Todos os domingos o presidente Jair Bolsonaro tem se lambuzado com mimos desse tipo de seus fiéis. Agora, ele inverte tudo: ferozes, antidemocratas e “marginais” são os outros.

Provocadas sem se saber ao certo por qual lado, as cenas de violência no primeiro domingo em que os movimentos pró-democracia decidiram ir às ruas, soaram como um round extra depois do gongo final para um Bolsonaro abatido por todos os lados. De pronto, pediu para os seus fanáticos evitarem os domingos, sabendo, claro, que isso não ocorreria. Aposta tudo no caos.

O palco de encomenda – e infiltrados para tal não estão descartados - é quebra-quebra, atiradores de pedras, destruição, gás lacrimogênio.

Nada melhor para o presidente do que a briga de rua para desanuviar as tensões recentes provocadas pelos dois processos em curso na Suprema Corte. Um sobre a sua confessa tentativa de interferir na Polícia Federal, motivo da demissão do ex-juiz Sérgio Moro do Ministério da Justiça, e outro, mais aflitivo, que esmiúça seus filhos, empresários e políticos amigos unidos em redes de notícias falsas. E ainda pelo TSE, que nessa semana inicia julgamento de impugnação da chapa que o elegeu por motivo similar: o uso de dinheiro ilícito de empresas nessas redes para fermentar mentiras.

Uma pancadaria entre torcidas permite ainda apontar os contras como “terroristas”, o que fez e continuará fazendo Bolsonaro vibrar. Pode até, nos delírios do presidente, dar um empurrão a uma sonhada intervenção armada (militar ou não) em nome da ordem.

>A conceituação muito particular e avessa que o presidente faz de liberdade, só válida para os seus apoiadores, e de democracia, que na cartilha dele inclui desobediência civil, impedem o desdenho a tal desvario. Muito menos o esforço para agradar as corporações militares, em especial as polícias estaduais sob comando dos governadores, cuja insubordinação já foi incentivada pelo presidente.

Soma-se à rota do perigo a obsessão por armar a população – “eu quero todo mundo armado” –, que na semana passada teve um toque a mais no reforço à milicianos, com a decisão do presidente de liberar ao público fuzis 5.56 e 7.62, até então de uso exclusivo das Forças Armadas.

Mais do que tudo, a guerra das ruas ajuda a embaçar o foco no ponto que mais impacta negativamente o seu governo: o pouco caso com a pandemia.

Rechaçado até pelo ídolo Donald Trump, que condenou a forma de o Brasil agir diante da multiplicação de infectados e mortos, Bolsonaro sentiu os efeitos danosos do vírus. Não sob o país, mas no seu perfil no Twitter, essa sim, sua verdadeira preocupação.

Depois de a Fundação Getúlio Vargas apontar ou aumento de críticas e a queda seguidores devido ao coronavírus, Bolsonaro até tentou se consertar na inauguração do primeiro hospital de campanha federal, em Águas Lindas, Goiás. “Do fundo do coração, torço para que pouca gente venha para cá, que é sinal de que não precisa de atendimento”.

Pronto. Uma única e rápida menção ao flagelo que já matou mais de 35 mil brasileiros. Em seguida, voltou ao discurso de sempre: reabertura o comércio, facilidades para importação de armas, renovação de carteira de aviador, suspensão da troca de tacógrafos e de chip nas bombas de combustível. Tudo, menos o essencial: o combate à pandemia.

Como se vê, há motivos de sobra para que as ruas em balbúrdia sejam desejadas pelo bolsonarismo.

Não há espaço mais democrático do que as ruas. Elas foram determinantes para alcançar o sufrágio universal, avançar na conquista por direitos civis, liberdades de expressão e comportamento. Seu grito derruba e forja governos, cria e destrói ditaduras, ceva guerras e paz.

No Brasil, de estopim para o golpe militar de 1964 elas se vestiram para a campanha pelas Diretas Já. Desiludidas, depuseram dois presidentes da República eleitos pelo voto que motivara tanta luta. E voltaram a falar alto nas jornadas de junho de 2013.

A democracia está umbilicalmente atada às ruas. A causa é nobre, urgente. Mas hoje, em nome do distanciamento social que a ciência e o juízo exigem e contra os incitamentos à violência que só a Bolsonaro servem, torço para que elas estejam vazias. É assim que a sua voz se fortalece em tempos de pandemia e de perigosas provocações.

Mary Zaidan

Um teste para militares, milicianos e o que ainda existe de regime democrático

A repulsa a Bolsonaro e seus agentes precisou de um ano e cinco meses de antigoverno para, enfim, mostrar que não é apenas um sentimento coletivo. Tem corpo, tem vida, pode mover-se e move-se. Com passos iniciais mas decididos, nomes expostos sem temor e já os primeiros atos públicos bem sucedidos em Porto Alegre, São Paulo, Manaus, Rio e outros despertares.

Esses opositores da volta ao autoritarismo começam uma caminhada sem certeza de onde pisam, envoltos em nebulosidade institucional que nenhuma declaração, civil e muito menos se militar dissipa. É uma ação defensiva de algo que, em grande parte, não existe mais. A rigor, o regime vigente não é mais aquele nascido em 1985, com a exclusão da ditadura e modelado nas ambições democráticas da Constituição. Em que regime vivemos, não se sabe.


Participar ou não das manifestações propostas para hoje, a partir de São Paulo, consumiu discussões cujo resultado só será conhecido já nas ruas. A hipótese, por um lado, de que Bolsonaro se valha do ato opositor para consumar uma rasteira na Constituição, ou faça algo para inculpar os adversários, é confrontada pelo argumento de que tal cautela se estenderia pelo tempo afora, como Bolsonaro continuará antidemocrata.

A divergência, com ponderações não desprezíveis de um lado e outro, a um só tempo denuncia e prova que estão esfumaçadas as liberdades de pensamento, de expressão e de manifestação política —ou a própria cidadania, que decorre de tais pilares da Constituição democrática.

As agitações para um regime militar, logo, para outra ditadura, contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, com ataques à liberdade de imprensa e a jornalistas, e mesmo a lutadores diretos contra o vírus homicida, isso se repete sem restrição. E sem risco algum para seus autores e mandantes instalados no palaciano gabinete do ódio.

São agitações criminais, tendo o próprio Bolsonaro como expoente e a presença de generais, reformados e da ativa. Agora, com participação até mesmo do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. Eventos só possíveis e impunes onde a Constituição e as leis pertinentes estão dilaceradas.

Não cabe dúvida alguma de que as liberdades constitucionais da cidadania estão usurpadas. Nessa corrente de delinquência política, militar e institucional, os que se manifestem contra a depravação do regime “são marginais e terroristas”, na qualificação feita pelo ex-tenente terrorista Jair Bolsonaro. Ou “baderneiros”, como prefere vice e general Hamilton Mourão. Só mudam a forma, a procedência é a mesma: o vocabulário assimilado na ditadura, com as ideias.

De volta a ela (ainda?) não estamos. No regime da Constituição democrática já não estamos. Em apenas 17 meses, o que os democratas perderam em cidadania e o país perdeu com retrocessos sociais, econômicos e culturais, é muito mais do que por ora se percebe. Não falta muito mais a perder, caso esmaeça o movimento que se inicia contra o autoritarismo neofascista. Hoje talvez seja um teste, não só para o que ainda existe de regime democrático. Também para militares e milicianos.

Brasil reabre salões militares


Só o ódio não é fake

A editora Todavia acaba de entrar em alto estilo no mercado de livros eletrônicos, com uma coleção de ensaios meditados e produzidos durante a pandemia por intelectuais do calibre da economista Laura Carvalho e dos cientistas políticos Marcos Nobre e Conrado Hubner. São e-books com, em média, 100 páginas (ou telas), todos fulcrados no inacreditável governo Bolsonaro e à venda em plataformas como Amazon e Apple. O primeiro da série, Ponto-Final, de Nobre, está na rede desde o último dia 29.

No fim deste mês, a editora Caminhos lança Guerra Cultural e Retórica do Ódio: Crônicas do Brasil, de João Cezar Castro Rocha, em formato tradicional. Castro Rocha é professor de literatura comparada da Unerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e um obstinado estudioso do iracundo obscurantismo bolsonarista desde quando todo mundo só tinha olhos para a Lava Jato e a agenda econômica do Posto Ipiranga.


Os dois livros, inteligentes, bem argumentados e sem ressaibo acadêmico, nos ajudam a compreender com consistência e sutileza o pesadelo que passamos a viver depois da eleição do mais ignorante, grosseiro e nefasto presidente da história da República. São duas análises complementares, sem ordem preferencial de leitura, embora por enquanto apenas Ponto-Final, por sorte o de maior amplitude, esteja disponível.

Hubner trata da guerra de Bolsonaro contra a democracia em suas várias instâncias, o que inclui, evidentemente, sua guerra contra a cultura. Ainda durante as eleições de 2018, Hubner rotulou o futuro presidente de “o candidato do colapso”, labéu paulatinamente justificado nos primeiros 14 meses de seu mandato. A pandemia pode apressar a derrocada.

O capitão não governa, só sabe hostilizar, ameaçar, agredir, cortar verbas, destruir. “Ele transformou a devastação em estilo de governo”, diz Hubner. Em seu governo, só o ódio não é fake. Cercado de ministros civis e militares de inauditas incompetência e sabujice, ele não preside, ele comanda uma guerra. Civil. Prometida reiteradas vezes. E é por isso que se empenha em armar a população, como se dela, armada, precisasse para se proteger dos 70% que não o apoiam. Mas as milícias precisam renovar seu arsenal, certo?

Por acreditar que “o xingamento despolitiza”, não ajuda em nada a entender o que estamos vivendo e nos desobriga de pensar, Hubner é contra tratar Bolsonaro como burro e demente. Desobrigar de pensar é, a seu ver, um dos grandes objetivos do projeto autoritário do capitão. Para ele, a disputa política segue uma lógica belicista e a cultura de morte que a acompanha.

“É uma política de morte que considera conversa fiada a ideia de que a disputa política se faz sobre um terreno comum compartilhado e compartilhável”, acrescenta Hubner. Por inviabilizar a convivência democrática, só a necropolítica serve ao objetivo principal do presidente, que sempre foi destruir a democracia e, consequentemente, impor uma ditadura.



Ponto-Final, que não deveria ter esse hífen, é uma das expressões prediletas de Bolsonaro, principalmente ao lidar com a imprensa, expediente típico de quem exige ter a última palavra e impor o silêncio numa discussão. Coincidência ou não, ganhou esse nome a lei que em 1986 paralisou os processos contra agentes da ditadura militar argentina, mas acabou declarada inconstitucional em 2005, levando à prisão diversos de seus verdugos. Hubner alerta: “É uma expressão traiçoeira, volta-se sempre contra quem faz uso dela”.

Como é sabido e lamentado, não impusemos sequer um ponto e vírgula à ditadura de 64, o que por certo viabilizou a ascensão, para não falar da mera existência do bolsonarismo e seu culto ao torturador Ustra e dos zumbis da linha dura frotista que presentemente vagam pelo Planalto.

Em suas crônicas do Brasil intoxicado pela retórica do ódio, o prof. Castro Rocha passa pela blitzkrieg orientada em escala mundial por Steve Bannon, o Dr. Mabuse das fake news, para logo chegar à nossa jabuticaba digital, com seus influenciadores de aluguel e seu vasto exército de robôs, ora investigados pela PF e sitiados por uma CPMI.

No DNA do “gabinete do ódio” misturam-se a velha Doutrina de Segurança Nacional e suas paranoias sobre “inimigo interno”, o discurso revanchista e revisionista sobre o golpe de 64 fermentado no projeto Orvil (o anagramático Livro Secreto do Exército com que o general Leônidas Pires Gonçalves tentou em vão abafar e desautorizar os documentos e relatos irrefutáveis sobre as arbitrariedades, torturas e desaparecimentos de corpos na ditadura, denunciados no livro Brasil: Nunca Mais) e as alucinações pornofascistas daquele astrólogo da Virginia, o Svengali ideológico de várias Trilbis que (de)compõem o governo Bolsonaro.

O prof. Castro Rocha reconstitui, nas necessárias minúcias, a evolução dessa lavagem cerebral marcada pelo ressentimento e a ideia fixa de que comunistas planejam dominar e destruir o Brasil infiltrados nas universidades, na mídia, nas artes – em toda cultura, enfim. Essa ladainha expiatória, cediça e em descrédito desde a Guerra Fria, já lastreou um bocado de ditaduras de extrema direita, inclusive aqui, e continua sendo o cantochão dos bolsonaristas, com eco na cúpula do governo, que enquanto alardeia não pretender um golpe (ou autogolpe), esmera-se em instrumentalizar todas as instituições do Estado a seu favor.

A função precípua da guerra cultural bolsonarista poderia ser, mas não é, a imposição dos valores de sua grei, que inexistem ou são anulados por falas e atos de seu líder, cujo único desígnio, vale insistir, é a destruição sistemática das instituições. Para o professor, “chegou a hora de dizermos com todas as letras que é um governo de extrema direita, apenas interessado num projeto autoritário de poder cuja finalidade última é eliminar todo aquele que pense de forma diversa”.

Os desafios e a resistência

Os índios estão se afastando das aldeias e entrando mais profundamente na floresta para fazer o isolamento social. Foi o que o fotógrafo Sebastião Salgado contou. O desmatamento pode liberar outros vírus e bactérias que hoje vivem em equilíbrio no ecossistema da Amazônia, por isso, preservar a floresta é proteger a humanidade contra novas pandemias. Foi o que disse o cientista Paulo Artaxo, da USP. Temos o que celebrar na área ambiental: a resistência do ambientalismo, da comunidade científica, da sociedade brasileira. É o que pensa a ex-ministra Marina Silva.

Ontem, eu mediei um debate entre os três aqui no jornal, pelo dia do meio ambiente. Cada um de sua casa, como convém nos tempos atuais. De Paris, Sebastião Salgado está em contato direto com o solo da Amazônia. Ele disse que das comunidades indígenas saem as informações mais precisas do que ocorre na floresta. Perigos imensos rondam os povos indígenas.

— Na terra Yanomami há 22 mil garimpeiros, e eles podem levar a Covid-19, além da destruição ambiental. No Vale do Javari, onde vivem os isolados Korubo, há também os garimpeiros. É conhecido que os indígenas não têm as defesas imunológicas que nós temos. Na Amazônia há a maior riqueza cultural do planeta, mais de 300 tribos que falam quase 200 línguas, há 120 grupos que nunca foram contactados. Pode haver um genocídio — diz Salgado.

Paulo Artaxo disse que há paralelos entre as crises do clima, da perda de biodiversidade e a da Covid-19. Para todas elas a solução está na ciência:

— A extrema-direita não aceita a ciência, a não ser quando é do seu interesse. Essas três crises juntas podem ter efeitos devastadores. O desmatamento da Amazônia tem impacto climático, provoca perda de biodiversidade e cria desequilíbrio num ecossistema que evoluiu por milhões de anos onde há inúmeros patógenos, vírus e bactérias. Eles podem ser liberados, como aconteceu com o ebola na África.

Para enfrentar os três problemas juntos, Artaxo recomenda procurar o desmatamento zero e proteger as populações indígenas, que são os guardiões da floresta. As áreas mais preservadas da floresta são exatamente as terras indígenas.



Marina disse que a sociedade brasileira tem resistido aos constantes ataques ao meio ambiente nos últimos anos:

— Para não ficar apenas nas tristezas, diante do desmonte da governança ambiental por um ministro que conspira contra a sua própria pasta, é preciso lembrar que estava tudo pronto para aprovar a MP da grilagem e ela saiu de pauta, Salles tentou passar sua boiada e mudar a Lei da Mata Atlântica e teve que revogar seu ato. Por isso digo que é preciso celebrar, neste e em outros governos, os momentos em que a resistência venceu — disse a ex-ministra que, no seu tempo no Ministério do Meio Ambiente, criou um plano de combate ao desmatamento que foi mantido mesmo após a sua saída e reduziu em 83% a taxa anual de destruição da Amazônia.

Paulo Artaxo disse que sempre perguntam a ele, em seminários, quando o mundo voltará ao normal. Ele estranha a pergunta:

— Não é normal destruir 10 mil km2 de floresta amazônica por ano, não é normal emitir 48 gigatoneladas de CO2 por ano, não é normal ter sete milhões de carros em São Paulo criando transtornos e fazendo a população respirar o ar insalubre. O aumento da temperatura pode tornar o Nordeste inabitável em poucas décadas. Não existe lockdown para o clima. O normal seria buscar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.

Salgado diz que o desmonte que o governo Bolsonaro tem feito ameaça o estado brasileiro. A Funai, que já teve grandes antropólogos na direção, hoje é dirigida por um delegado de polícia. Há outros órgãos sob ataque:

— Temos que evitar a "venezuelização" do Brasil. Bolsonaro está empregando muitos militares, para dar a impressão de que o Exército está apoiando a extrema-direita, um grupo sectário, mas não está. O Exército é uma grande instituição que está na Amazônia protegendo nosso território e os povos indígenas.

Marina disse que atualmente grupos da sociedade civil estão se unindo, em movimentos como o Juntos, ou Somos 70%, para proteger a democracia. Ela acha que a pandemia mostrou que a nova economia é ainda mais necessária, e que a inclusão tem que ser também digital. Hoje, quem está excluído digitalmente não consegue estudar nem trabalhar.

O ‘chavismo’ de Bolsonaro e o risco das milícias armadas no Brasil

Três episódios recentes demonstram o nível de violência que a política brasileira tem ganhado. No primeiro um grupo de quinze atiradores, alguns usando camisetas com a imagem do presidente, se filmam descarregando suas armas em alvos enquanto entoam gritos de “Bolsonaro” e xingamentos ao governador de São Paulo, João Doria. O vídeo foi amplamente compartilhado em redes sociais, inclusive por um dos filhos do presidente.

No segundo caso, o ex-deputado Roberto Jefferson, que reapareceu há poucas semanas para reforçar a tropa de choque do presidente, entoa um discurso de guerra civil, dizendo que já estaria “desenferrujando” seu revólver para enfrentar os que tentarem ir às ruas contra Bolsonaro.

Por último, temos o presidente assumindo publicamente no vídeo da fatídica reunião ministerial que a conversa de armas para defesa da família e propriedades não passava de fachada, já que sua intenção de "escancarar a questão do armamento” é para que seus apoiadores possam pressionar (armados) todos que fazem críticas ao seu Governo.

Tudo isso se torna ainda mais grave visto que não estamos diante de nenhuma ameaça externa. As únicas crises são gestadas pelo próprio Governo. Longe de repudiar esses ataques, Bolsonaro os municia garantindo que não precisem recorrer a revólveres enferrujados nem a munições velhas.



Desde o início de seu mandato, sabendo que não teria apoio popular nem votos necessários para mexer na lei de controle de armas, Bolsonaro realizou flexibilizações via decreto para facilitar a aquisição (dispensando comprovação de necessidade), aumentou a potência de armas que civis podem comprar, liberando calibres e armas como carabinas semi-automáticas antes de uso exclusivo das forças de segurança, multiplicou —por meio da portaria citada por ele na reunião de ministros— por 12 o limite de munição anual para cidadãos comuns (de 50 para 600 unidades), além de facilitar recargas de munição caseiras, que não são rastreáveis. Soma-se a isso, a recente e injustificável determinação de cassar portarias do Exército que traziam normas técnicas para melhorar a marcação e rastreabilidade de armas e munições, aprimoramentos fundamentais para a elucidação de crimes, comprovando o perigoso uso político da Presidência em seu ataque às normas que combatem o tráfico de armas e contrariando sua suposta intenção de combate ao crime.

Só no primeiro ano de Governo foram mais de 50 mil novas armas vendidas no mercado civil. O grupo de CACs (colecionadores, atiradores e caçadores), em que se enquadram os integrantes do vídeo do início do artigo, reúne sozinho um arsenal de quase meio milhão de armas, segundo o Exército, e vive um crescimento exponencial de integrantes estimulados pela série de "privilégios” que o presidente Bolsonaro não para de conceder. Desde que ele assumiu, este grupo conseguiu aumento no limite de armas —atiradores esportivos podem ter até 60— e também aumento da validade de seus registros, o que na prática implica em prazos de até 10 anos para refazer uma avaliação psicológica ou apresentar um novo atestado de antecedentes. Conseguiu ainda permissão para ter fuzis e comprar até 180 mil munições e 20 kg de pólvora por ano para recarregar munições em casa.

Aliar este arsenal de proporções irracionais à violência política pode gerar resultados explosivos. O “vamos fuzilar a petralhada” anunciado pelo atual presidente na campanha de 2018 já era violento e antidemocrático quando proferido. Com milhares de armas a mais em circulação deveria despertar urgência na atuação dos órgãos competentes.

Vale lembrar que, ainda que a Constituição vede a presença armada em manifestações, tivemos recentemente um caso em São Paulo em que um militante pró-Bolsonaro disparou contra uma jovem após uma desavença na avenida Paulista. Em 2015, manifestantes de um acampamento pró-ditadura militar já haviam realizado disparos contra a Marcha de Mulheres Negras em Brasília. E, mais recentemente, houve casos de disparos contra apartamentos que realizavam panelaço no bairro paulistano de Perdizes.

O incentivo a uma retórica política violenta e o armamento de facções para defesa de governos não encontra lugar em Estados democráticos e hoje é visto nas milícias de apoio ao Governo Maduro na Venezuela, com acampamentos, treinamento militar e armas.

Bolsonaro fez sua campanha afirmando que elegê-lo seria evitar que o Brasil se transformasse em uma Venezuela, mas todos os seus passos, ataques à imprensa, paranoia de ameaça estrangeira e discurso de intimidação de qualquer força que questione o seu Governo o colocam cada dia mais próximo de Nicolás Maduro.
Bruno Langeani

Onde mora o perigo

Bolsonaro está usando as Forças Armadas, de uma forma bem clara, como um elemento de intimidação. E as Forças Armadas, pura e simplesmente, estão se deixando usar. E isso não é o único perigo dele. Ele tem uma boa penetração nas Polícias Militares. Então, muito possivelmente, ele pode estar articulando um golpe usando Polícias Militares e neutralizando as Forças Armadas. Ele pode estar até em um ponto em que não precise usar as Forças Armadas. Basta que elas fiquem neutras e deixem a Polícia Militar atuar
Fernando Gabeira

Governo procura dinheiro no cofre para melhorar a própria imagem

Em tempos de aperto, o governo foi procurar alguns trocados no cofre para melhorar a própria imagem. Numa portaria publicada nesta quinta (4), o Ministério da Economia tirou R$ 83,9 milhões do orçamento do Bolsa Família e repassou o dinheiro para bancar um aumento de gastos da Presidência com ações de publicidade institucional.

O valor representa uma fração minúscula das despesas totais do programa social, mas reflete com nitidez as prioridades e as escolhas políticas da equipe de Jair Bolsonaro.

A pasta de Paulo Guedes tentou justificar a tesourada. Afirmou que 95% das famílias atendidas passaram a receber o auxílio emergencial criado na pandemia do coronavírus. "Nenhum beneficiário do Bolsa Família foi prejudicado no recebimento de seu benefício", acrescentou.

Faltou dizer que o programa tem hoje uma fila de espera de 430 mil famílias —que se cadastraram, mas ainda não recebem o pagamento. Esse corte, de acordo com técnicos do governo, poderia atender 70 mil famílias no segundo semestre deste ano.

Os contabilistas do Ministério da Economia, entretanto, não foram além das cifras de uma planilha. A pasta fala como se o dinheiro estivesse sobrando, mas não explica por que o governo decidiu inflar justamente o orçamento de comunicação institucional do Palácio do Planalto, enquanto o país ainda tenta conter a pior crise sanitária desta geração.

O dinheiro remanejado seria suficiente para comprar mais de 3.500 ventiladores pulmonares usados no tratamento das vítimas do coronavírus. Quando o Ministério da Saúde assina contratos para a produção desses equipamentos, o governo faz festa para divulgar a proeza.

Com os novos milhões, a Secretaria de Comunicação da Presidência quase dobrou seu orçamento para essas ações. Nessa rubrica, já foram contabilizadas despesas com campanhas para melhorar a imagem do governo no exterior e até com a manutenção das contas do Planalto nas redes sociais, que costumam encher o presidente de elogios.

Bolsonaro copia Stalin e manda apagar a tragédia do Covid-19

Admita-se por uma questão de justiça: tudo o que o presidente Jair Bolsonaro faz de errado (ou seja: quase tudo), ele faz muito bem feito. O caso do combate à pandemia do coronavírus é um exemplo. Bolsonaro poderia ter ignorado o vírus, o que já seria um suicídio político, mas não. Chamou-o de gripezinha, calculou que mataria no máximo 800 brasileiros, como se isso fosse pouco, e declarou que o mais importante seria salvar a economia.

Satisfeito? Não. Demitiu o ministro da Saúde, o mais popular do governo, porque ele era… Era o ministro mais popular do governo, o que o incomodava. Substituiu-o por um médico sem experiência em administração pública e tentou impor todas as suas vontades a ele. O médico pediu demissão em menos de um mês. Foi sucedido por um general com fama de ser especialista em logística. A única coisa que se fato sabe é dizer amém a Bolsonaro.

Henfil — O Pasquim, Rio de Janeiro, 31.08.1979 a 06.09.1979
Bastou? Não. Para completar sua obra quase perfeita, que o imortalizará quando for escrita a história da pandemia que assolou o mundo no começo do século 21, Bolsonaro apelou para um recurso muito usado pelo ex-ditador comunista soviético Joseph Stalin: apagar imagens que o desagradam. Stalin mandava apagar das fotografias oficiais figuras que haviam caído em desgraça por divergirem dele. Antes ou depois, mandava executá-las.

Inconformado com o número crescente de mortos pela gripezinha, e assustado com os estragos políticos causados à sua imagem de governante relapso, Bolsonaro mandou apagar os números sobre a tragédia oferecidos por páginas oficiais na internet. No início da noite, saiu do ar o site oficial da covid-19 que apresentava um balanço detalhado sobre a situação da pandemia. No início da madrugada, a página do Portal da Transparência.

Um dia após tornar-se o 3º país com mais mortes por coronavírus, o Brasil registrou 1.005 novas mortes nas últimas 24 horas, o que eleva o total para 35.026. É o quarto dia consecutivo que o país contabiliza mais de mil mortes em 24 horas. De quinta para sexta, foram confirmados ainda 30.830 novos casos da doença, o que aumentou o total de casos para 645.771. Isso acontece quando as medidas de isolamento estão sendo relaxadas.

O Ministério da Saúde vai recontar o número de mortos. Segundo o milionário Carlos Wizard, ligado a negócios do ramo de hospitais e que já despacha como futuro secretário da Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do ministério, os dados atuais seriam “fantasiosos ou manipulados”. Antes da ascensão do general e do milionário, ambos bolsonaristas de berço, o ministério reconhecera que há um grande número de subnotificações.

Mas não é disse que se trata. Afirma Wizard: “Tinha muita gente morrendo por outras causas e os gestores públicos, puramente por interesse de ter um orçamento maior nos seus municípios, nos seus estados, colocavam todo mundo como covid. Estamos revendo esses óbitos”. Entendeu? Rever para enxugar os números. Enxugar para que eles pareçam menores. Como se isso fosse capaz de desidratar a tragédia. Como se assim fosse possível reescrevê-la.

O país aguarda os novos números para debochar deles. Nos últimos 3 dias, por orientação de Bolsonaro, o governo atrasou a divulgação dos boletins sobre o coronavírus com o objetivo de prejudicar sua veiculação pelos telejornais no horário nobre. Os boletins saíam nos fins de tarde. Passaram a sair depois das 19h. Ultimamente, perto das 22h. “Não interessa de quem partiu [a ordem]”, decretou Bolsonaro quando perguntado a respeito.