segunda-feira, 22 de abril de 2024

O fundamentalismo político, agora sob as redes sociais, tem dinamitado a vida em sociedade

O aiatolá Khomeini impressionou o mundo ao derrubar o xá Reza Pahlavi em 1979. Com seu olhar severo, a partir de Paris, comandou a insurreição contra o monarca iraniano (lá mantido pelos americanos). Ao que eu saiba, foi o primeiro a provocar a queda de um regime usando apenas o telefone.

Pahlavi deu trela. Vendia a imagem de bon-vivant, de um governante moderno e ocidental. Espécie de playboy persa, ao lado de sua bela mulher, a rainha Farah Diba, cuja coroa fora assinada pelos joalheiros Van Cleef & Arpels. Era encenação: por trás da imagem, dava guarida a uma corja corrupta.

Na aparência, Khomeini era seu oposto. Sisudo, barbudo e não afeito a luxos terrenos ou à cultura. Depois de anos de exílio na França, voltava ainda mais fanático. Atrás da estampa, havia um religioso sedento por vingança. Não titubeou em mandar matar vários adversários de sua fé e de sua intransigência política. Pela força, levou a laica sociedade iraniana a retroagir à Idade Média, em crenças e desejos.

Uma de suas vítimas mais célebres, o autor anglo-indiano Salman Rushdie, reapareceu na semana passada no coquetel de lançamento de seu novo livro — “Faca”. Era uma festa privada num restaurante de Manhattan, oferecida pela revista on-line Air Mail, onde se reuniu com escritores, editores e jornalistas. Os amigos se impressionaram com sua disposição e bom humor, achando-o elegante num blazer esverdeado e de óculos com uma das lentes totalmente escura. Sua figura agora lembra a do pirata com tapa-olho. Há dois anos, Rushdie sofreu um atentado. Sobreviveu às 12 facadas que perfuraram diversas partes de seu corpo, cortaram seu rosto, além de macularem seu olho direito, que ficou dependurado no rosto “feito um ovo cozido”.

Quem tentou matá-lo atendia a uma fatwa emitida por Khomeini 30 anos atrás. O aiatolá forjou a mentira de que “Os versos satânicos”, obra de Rushdie, vilipendiavam o profeta Maomé. E assim o condenava à morte. Depois de viver anos escondido, o escritor foi alcançado por um chacal numa pequena cidade no upstate de Nova York. “Faca”, um livro de memórias, reconstrói o atentado e sua recuperação. “A obra não traz ódio”, adiantou Rushdie.

Khomeini morreu em 1989, aos 86 anos, no Irã. Rushdie sofreu o atentado em agosto de 2022, nos Estados Unidos, aos 74 anos. A distância no tempo revela a força e o alcance prático de uma mentira política, que no contexto contemporâneo poderíamos chamar de fake news. O aiatolá desejava impor os ditames de sua religião aos alcunhados “ímpios”. Era ainda um leitor iletrado. “Os versos satânicos” são uma obra poética, baseada numa lenda islamita e na própria vida do escritor, dividido entre a tradição persa e muçulmana e a contemporaneidade ocidental.

O uso da religião pela política, entre várias outras mortes, também está presente no massacre dos jornalistas do satírico Charlie Hebdo, na Paris de 2015. Qual Rushdie, alguns dos chargistas assassinados constavam de uma lista divulgada pela Al-Qaeda como alvos a ser abatidos. Sim, eram “ímpios”.

No germe da intolerância, a mentira e a incivilidade. O conceito revolucionário da urbanidade pressupõe o convívio de diferentes crenças, opiniões e gostos. Para a proteção de tal liberdade de escolha, ao final em defesa da própria vida cidadã, a civilização precisou criar regras e leis. Existem avanços e retrocessos, e mesmo os fracassos fornecem sinais. O fundamentalismo político, agora sob as redes sociais, tem dinamitado o arcabouço da vida em sociedade. Busca-se aplicar uma visão da antiga tribo ao cotidiano contemporâneo. Preconceitos e frustrações ajudam a criar clivagens. Mundo afora, o almoço familiar dominical virou um campo de guerra.

O Homo bolsonarus, da mesma cepa do aiatolá, defende a liberdade de expressão enquanto martela nas redes sociais reincidentes mentiras. Assim se enxerga livre para atirar. O novo discurso deles constrói a irrealidade de que o Brasil vive numa ditadura! Falam até numa ditadura judiciária. Os golpistas do 8 de Janeiro difundem o cenário de um Brasil avenezuelado, sem processo legal.

Rushdie não blasfemou contra o profeta Maomé, como Khomeini e os mercenários da Al-Qaeda difundiram em fake news. Nem o Brasil vive numa ditadura ou Lula transformou o país numa Venezuela. Rushdie vive escondido, com medo de ser morto ou perder o olho esquerdo. Mas seu algoz aguarda julgamento numa prisão americana, para mostrar que a vida e a liberdade de expressão são direitos fundamentais do Homo sapiens.

Revolução dos Cravos, 50, foi onda democrática que chegou ao Brasil

Em 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos, movimento liderado por militares e apoiado pela maioria da população civil, pôs fim ao Estado Novo em Portugal, regime ditatorial que vigorou por 41 anos. João Pereira Coutinho comenta os contextos sociais e econômicos que levaram à queda da ditadura, o turbulento processo de democratização nos meses seguintes, os impactos da revolução em países que viviam sob governos autoritários, como o Brasil, e como os portugueses avaliam os últimos 50 anos


Foi bonita a festa, pá? Digo que foi, embora não tenha estado presente. Nasci depois de tudo. Esse tudo, aqui, é o 25 de Abril de 1974, a Revolução dos Cravos, 50 anos atrás. Mas, às vezes, nas minhas horas de ociosidade, pergunto o que teria sido de mim se a sorte me tivesse jogado duas ou três gerações antes de eu nascer, no mesmo país, sob o regime ditatorial de António de Oliveira Salazar (1889-1970) e Marcello Caetano (1906-1980).

Dizer que a minha vida teria sido diferente seria um eufemismo: como escrever livremente em um país com censura prévia e polícia política? A cadeia ou o exílio teriam sido opções possíveis. Ou o silêncio, já agora: nunca devemos subestimar o papel da boa e velha covardia.

O que é válido para a loucura da arte é válido para a loucura da guerra —em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau— que consumiu as gerações anteriores.

Em princípio, minhas maleitas físicas teriam poupado a carcaça a certos terrores. Mas nunca fiando: entre 1961 e 1974, 200 mil rapazes foram mobilizados para as "províncias ultramarinas", com o fino propósito de defender as populações brancas das guerrilhas independentistas (o que se compreende), e por lá continuaram, contra toda a lógica, defendendo o "império" ou uma noção anacrônica de império (o que não se compreende). É muito?

É muitíssimo. Falamos de 2% da população portuguesa, contas por baixo, um número superior, em termos relativos, às tropas que os Estados Unidos enviaram para o Vietnã. Mais de 8.000 não regressaram. Trinta mil regressaram, mas em péssimo estado. Poderia ter sido um deles? A resposta arrepia de tão óbvia.

Como foi óbvia para os "capitães de Abril" quando disseram basta à guerra e, por inerência, ao regime. Um deles era Fernando José Salgueiro Maia (1944-1992), que na madrugada do 25 de Abril de 1974 falou assim aos seus homens, antes de sair com eles para derrubar o Estado Novo: "Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado: os sociais, os corporativos e o estado a que chegamos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegamos".

Não é qualquer um que inaugura uma revolução com essa mistura de clareza e humor. Mas Salgueiro Maia não era qualquer um: no Movimento das Forças Armadas, ele foi o mais corajoso e, deposto o regime, um dos mais recatados também. Morreu jovem e relativamente esquecido. Mas divago.

Estou grato a esses homens. Estou grato aos que vieram depois: derrubar um regime autoritário não é coisa pouca; mas construir uma democracia liberal é tarefa ciclópica.

Entre 1974 e 1975, Portugal oscilou entre radicalismos de sentido oposto: uma tentativa de golpe da extrema direita em março de 1975, uma tentativa de golpe da extrema esquerda em novembro do mesmo ano.

Mas o que importa, para lá dessas contabilidades macabras que continuam a alimentar ressentimentos vários nas franjas da sociedade portuguesa, é olhar para o povo. Falo do povo que realmente existe, não do "povo" como criação mítica de vanguardas revolucionárias que têm o hábito desagradável de falar em seu nome.

Nas primeiras eleições livres, para a Assembleia Constituinte, em 1975, os portugueses votaram. Para quem acompanhava o curso da revolução nas ruas, nas fábricas, nos campos, nos jornais, na televisão, o caminho para o comunismo parecia inexorável. Pelo menos, para quem achava que os portugueses, depois de experimentarem a mais longa ditadura da Europa, estariam dispostos a ter outra, de inspiração soviética.

Quase 92% dos eleitores acorreram às urnas, números que nunca mais se repetiram. Quando os resultados foram divulgados, 68% escolhiam partidos defensores da democracia liberal e do pluralismo político (o PS, o PPD e o CDS, por ordem decrescente).

O Partido Comunista, que se julgava ungido pela história e proprietário do país, ficava em terceiro lugar, com 12,5%. A "legitimidade revolucionária", como então se dizia, sofreu um golpe fatal. Ainda sobreviveu uns meses, na união perversa entre a ala radical do Movimento das Forças Armadas e a extrema esquerda. Ocuparam-se terras, nacionalizaram-se empresas, cometeram-se abusos e violências contra as forças da "reação", ou seja, contra os democratas. Mas o país tinha falado e nunca mais voltou atrás.

Como diria mais tarde o presidente e primeiro-ministro Mário Soares sobre o "verão quente" de 1975: "As praias e os parques de automóveis estavam literalmente a abarrotar. Como é possível, pensei, com esta classe média tão forte, com toda esta gente nas praias, que se venha dar aqui um golpe comunista? Não era". E não foi.

Quando eu nasci, em 1976, a democracia era um fato, ainda que limitada pela tutela dos militares (até à primeira revisão constitucional de 1982). A entrada na Comunidade Econômica Europeia, em 1986, passou a ser o horizonte de um país que só queria uma vida normal.

Tive direito a uma vida normal: educação pública até a universidade, fronteiras abertas para viajar pela Europa durante toda adolescência e a liberdade para escrever e publicar por minha conta e risco.

Quando fui a tribunal por abuso de liberdade de imprensa, pouco depois dos 18 anos, não foi a Pide/DGS, a polícia política do regime salazarista, que me foi buscar a casa. Caminhei para a sala de audiências pelo meu próprio pé, conhecendo os meus direitos e deveres.

E por falar em pé: foi ele que me salvou quando compareci à inspeção para cumprir o serviço militar obrigatório, só abolido no século 21. Fui dado como "inapto". Nunca estive nas antigas províncias ultramarinas, muito obrigado.

Foi bonita a festa, pá? O cientista político Samuel Huntington não tem dúvidas: foi belíssima. Nas primeiras linhas do clássico "The Third Wave: Democratization in the Late 20th Century" (a terceira onda: democratização no final do século 20), escreve Huntington: "A terceira vaga de democratização no mundo moderno começou, implausível e involuntariamente, 25 minutos depois da meia-noite, quinta-feira, 25 de abril de 1974, em Lisboa, Portugal, quando uma estação de rádio tocou a canção 'Grândola Vila Morena'".

Explico melhor. Na obra de Huntington, a democracia na era contemporânea é como as ondas do mar, avançando e recuando em momentos históricos particulares. E arrastando consigo outros países, por influência ou exemplo.

A primeira vaga aconteceu entre 1828 e 1926 e tem as suas raízes na Revolução Francesa e no alargamento do direito de voto nos Estados Unidos (aos homens brancos, claro).

A sua contravaga surgiria em 1922, com a infame marcha dos fascistas sobre Roma, contaminando Portugal (em 1926), a Espanha (em 1936), sem falar da Alemanha (em 1933, o caso mais catastrófico de todos).

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, uma segunda vaga se espraiou na Europa, na Ásia, na América Latina, pelo menos até 1962. Da Alemanha à Itália, da Áustria ao Japão, a democracia firmou-se nesses países até então relapsos.

A segunda contravaga terá começado em 1958 e durado até 1962. A América Latina foi a "loca infecta" dessa regressão, com o Brasil (1964), a Argentina (1966), o Equador (1972), o Chile e o Uruguai (1973) a serem tomados pelo autoritarismo.

Aquela manhã fria em Lisboa inaugurou a reversão da reversão. Para ficarmos uma vez na América Latina, a democracia retornou ao Equador (1979), ao Peru (1980), à Bolívia (1982) e ao Brasil (1985).

Por outras palavras: o pedigree internacional da Revolução dos Cravos é reconhecido e aplaudido. Sua influência benigna também. Mas nos momentos de festa há sempre vozes de desânimo que olham para a data e lamentam o que ela significa.

Alguns têm razões para isso: falo dos extremos, cada vez mais minoritários, que lamentam o fim da ditadura —ou, em alternativa, o fato de Portugal não ter inaugurado outra.

Mas eu não falo dos casos extremos. Falo até de moderados que persistem em projetar na democracia o que ela não pode comportar. Democracia é igualdade, para uns. É riqueza, para outros. É reconhecimento, justiça, fraternidade. Citando o título do filme, é tudo em todo lugar ao mesmo tempo. Se a perfeição não foi atingida em cada um desses valores, a democracia falhou.

sociólogo Ralf Dahrendorf, ao confrontar-se com as revoluções de 1990 que libertaram o Leste Europeu do comunismo, já tinha detectado esse problema eterno. Se a revolução é o momento em que o povo faz amor com a história (obrigado, Sartre), há quem não tolere a rotina conjugal que se instala quando a febre passa. As expetativas extravagantes dão lugar ao desencanto quando a utopia teima em não chegar.

Mas a utopia nunca chega, afirmava Dahrendorf. Se a revolução enterra a ditadura e se a democracia enterra a revolução, permitindo a partir daí remover maus governos sem derramamento de sangue, ambas já terão cumprido o seu papel.

Tal como o 25 de Abril cumpriu o dele: o Estado Novo terminou em 1974, praticamente sem resistência, e ninguém suspira por ele, muito menos com a sua restauração. Além disso, se a democracia é o arranjo possível para remover governos através de eleições limpas e livres, convém procurar o que falta ao país noutros lugares, não nas urnas que sempre funcionaram sem engulhos.

Falta muito, admito, mesmo sabendo que o país de 2024 é irreconhecível aos olhos de 1974. Em qualquer indicador relevante —educação, saúde, bem-estar, proteção social, emancipação feminina etc.—, existe um abismo entre esses dois mundos.

Mas nem tudo é perfeito. O fraco crescimento econômico, os baixos salários, a dívida pública (beirando os 100% do PIB), a taxa elevada de pobreza e de desigualdade em comparação com os nossos parceiros europeus —tudo isso é motivo de desânimo. A fraca participação política e a erosão na confiança das instituições democráticas são a expressão disso.

Desânimo, no entanto, não significa desistência. Significativamente, o Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa realizou um estudo intitulado "50 anos de democracia em Portugal: mudanças e continuidades geracionais". O objetivo dos pesquisadores é permitir que sejam os portugueses a fazer um balanço do regime, sem os habituais mandarins que, repito, gostam de falar em seu nome.

Os resultados não me surpreendem. A esmagadora maioria (69%) tem uma opinião mais positiva que negativa da revolução; 24% ficam em cima do muro; 7% têm uma opinião mais negativa que positiva. Mas é entre os mais jovens, de 16 a 34 anos, que o 25 de Abril é acolhido com entusiasmo: 73% aplaudem a data (só 6% a recusam).

Moral da história?

Em 1975, chamados às urnas, os portugueses mostraram mais clarividência que as vanguardas terceiro-mundistas que os desejavam pastorear. Cinquenta anos depois, nada mudou: o gosto pela liberdade é um hábito que não se perde.

Nestas matérias, convém lembrar o verso da canção "Grândola Vila Morena", que pôs em marcha o fim da ditadura. "O povo é quem mais ordena"?

Precisamente.

 João Pereira Coutinho 

Pensamento do Dia

 


Agentes estrangeiros infiltrados na democracia brasileira

Não passa um dia sem que a agitação extremista antidemocrática deixe de comparecer à pauta da nossa paciência, como entrelinha invasora das informações e debates sobre os acontecimentos significativos da vida cotidiana das pessoas comuns. Os resíduos do golpe de Estado de 1964 ainda conspiram contra a democracia e os direitos sociais. Indicam-no evidências, como as de 8 de janeiro de 2023, de tratamento do povo brasileiro como um povo carneiril.

De tanto repetir-se, a agitação subversiva contra as instituições se naturaliza pela teimosia de sua reiteração. A sociedade brasileira vai ficando sem alternativas para situar o que de fato é relevante e o que é irrelevante na vida do país. Sobretudo o que é intencionalmente produzido para deturpar e minimizar o nosso penoso retorno à ordem.

Os mais desprovidos de discernimento e mais vulneráveis à manipulação ideológica e autoritária vão sendo induzidos a aceitar a banalização de nossa identidade de povo que a duras penas se formou numa história social de adversidades e desafios.

A ação antidemocrática basicamente nos indica um consistente ativismo para desmobilizar a vigilância crítica dos partidários da democracia e dos que se recusam a ser tratados como tolos e politicamente imaturos.


Agitadores e suspeitos de autoria e promoção da baderna, no entanto, têm sido contidos pela vitalidade das instituições e do protagonismo cívico dos defensores da Constituição e das leis. Os cansativos atores do circo da ilegalidade querem convencer os expectadores, no entanto, de que são vítimas de uma ditadura de esquerda.

A temida democracia que, ao enquadrá-los na lei, estaria se opondo ao anarcoliberalismo e à liberdade de alguns de tramarem contra o direito de todos. Associaram-se a agitadores internacionais que defendem como legitimamente democrática a difusão de valores negativos e princípios reacionários, antissociais e nazistas, caso da proclamação do direito ao ódio.

Estão em peregrinação por diferentes cantos do mundo para denunciar o governo brasileiro como uma ditadura de esquerda que lhes tolhe o direito de expressar, defender e praticar sua opção supostamente conservadora pelo ódio, pela tirania, pelo autoritarismo e pela morte, como se viu no modo criminoso e irresponsável de lidar com a pandemia.

Na verdade, nem os bolsonaristas, nem os seus simpatizantes e cúmplices, civis, religiosos e militares, são conservadores. Eles não têm o menor conhecimento do que é isso. São reacionários de forte inclinação fascista, despistados, vítimas não das instituições, mas de si mesmos e dos seus mentores e manipuladores.

O Brasil já conheceu, no Império, a grande tradição conservadora, no equilibrado balanço de gestão política alternativa do país pelos conservadores e liberais. Os liberais propondo inovações políticas e sociais e os conservadores realizando-as no marco do consenso negociado, como observou Euclides da Cunha na aguda compreensão que desenvolveu a respeito da realidade brasileira.

Entre nós esse balanço se expressou na ação política e econômica de grandes figuras como a de Antonio da Silva Prado, de família de grandes empresários originada no século XVIII. Ele foi o grande arquiteto da abolição da escravatura, cujo humanismo convergia com o de Joaquim Nabuco, quem melhor viu a extensão dos danos antissociais da escravidão relacionados com seus danos econômicos. Os fundamentos do atraso brasileiro, que residualmente persistem em anomalias como a onda autoritária do presente e o anticapitalismo da direita.

Um dos episódios desse delírio foi o da manifestação de bilionário sul-africano, empresário, dono de conhecida rede social, que, contrariado na sua insólita economia da manipulação das necessidades ideológicas dos toscos e irresponsáveis, prometeu desobedecer as ações e normas emanadas do TSE e do ministro Alexandre de Moraes. Com o reforço do presidente argentino, que, na falta de problemas em seu país, dispôs-se a colaborar com o empresário sul-africano no “conflito” com o STF.

O embaralhamento de temas irrelevantes com temas fundamentais da cidadania tem permitido aqui sobrerrepresentação de agitadores no Congresso. Base política de ações contra a ordem convencionada na Constituição de 1988. Como a dos que foram, sem êxito, à Câmara dos Deputados dos EUA pleitear medidas contra o Brasil por ser o nosso país suposta ditadura de esquerda. À custa do dinheiro público, esses grupos estão na Europa pleiteando o seu reconhecimento como vítimas dessa ditadura.

Atuam como agentes estrangeiros infiltrados na democracia brasileira, para defender um liberalismo superficial e interesseiro, contrário ao nosso direito de povo livre e soberano.

Tudo o que tange a Palestina é historicamente difícil

Não é preciso ser um Voltaire para definir a História como o estudo de todos os crimes do mundo — a começar pelas guerras. Numa segunda categoria desses crimes, mais silenciosos, mas igualmente ruinosos, está deixar passar oportunidades capazes de mudar a História para melhor. Nesta semana, sob instrução do democrata Joe Biden, 46º presidente dos Estados Unidos, seu vice-embaixador junto à ONU desempenhou o melancólico papel de vetar a admissão da Palestina como membro pleno das Nações Unidas. Apesar de esperado, o veto solitário (Grã-Bretanha e Suíça se abstiveram, os outros 12 integrantes do Conselho de Segurança aprovaram a moção) pode ser considerado uma dessas oportunidades perdidas.


Caso não tivesse sofrido veto, a resolução passaria à votação na Assembleia Geral, com aprovação certamente maior que o mínimo necessário de dois terços dos 193 países. Hoje, 140 das nações da ONU já reconhecem a Palestina como Estado. Um acolhimento pleno com direito a voto e assento rotativo no Conselho de Segurança representaria um upgrade simbólico e político (mas não legal, claro) para o país que ainda não é país. Continuará, assim, sendo “não membro com status de observador”. Autoproclamado Estado independente desde 1988, apesar de não ter soberania sobre seus territórios ocupados até hoje por Israel, a Palestina, de que a Faixa de Gaza faz parte, continua a ser este imenso encontro marcado e sempre adiado do mundo democrático com a História.

Ao justificar o veto dos Estados Unidos, o vice-embaixador Robert Wood cometeu contorcionismos verbais para explicar que o veto contra a admissão do Estado Palestino na ONU não refletia oposição ao Estado Palestino. Difícil de entender. Soube-se também que, para evitar ser a única voz dissonante da votação, os americanos se empenharam em tentar aliciar outros integrantes do colegiado. Cópias de memorandos do Departamento de Estado obtidas pelo site The Intercept atestam a pressão exercida sobre o Equador para que convencesse os embaixadores de Japão, Coreia do Sul e Malta (país que preside os trabalhos do Conselho neste mês) a se alinhar aos Estados Unidos. Não deu certo.

Como pano de fundo, havia a emergência de uma guerra entre Israel e seu inimigo existencial, o Irã. As duas fortalezas militares jamais haviam se confrontado mano a mano, preferindo acertar suas contas por meio de atentados terroristas, ataques cibernéticos, assassinatos e agentes intermediários. Na madrugada do sábado anterior, porém, a chuvarada de mais de 300 drones e mísseis iranianos que incandesceu o céu de Jerusalém e se espraiou por todo o território israelense alterara essa realidade... Ainda assim, foi uma resposta anunciada com antecedência aos atores-chave da região e calibrada para poder ser interceptada por Israel e seus aliados. Todos puderam se dar por satisfeitos e declarar vitória. Seis dias depois, o inevitável revide israelense revelou-se ainda mais contido, mais cirúrgico — um ataque de drones atingiu a base militar de Isfahan na sexta-feira, sem que a instalação nuclear iraniana ali fincada fosse atingida. Atendeu à pressão de seu principal aliado, os Estados Unidos, e de coadjuvantes, tanto europeus como árabes, para baixar a pressão.

Fica a pergunta: em troca de que os radicais do governo Netanyahu aceitaram comedimento contra o Irã? A moeda de troca talvez seja Rafah. Na próxima terça-feira, terão transcorrido 200 dias desde a chacina terrorista do Hamas contra civis israelenses. A retaliação desencadeada pelas Forças de Defesa de Israel — eliminação radical do Hamas, mesmo que ao custo da asfixia da vida civil na Faixa de Gaza — ainda não está completa. Falta limpar Rafah, a cidade-refúgio do Sul onde mais de 1 milhão de palestinos desenraizados do Norte se somam aos famintos locais e onde o emaranhado de túneis usados pelos terroristas ainda não foi implodido. Em 200 dias de operação terra-arrasada, 133 reféns israelenses (vivos ou mortos) continuam em mãos do Hamas devido ao estancamento das negociações por um cessar-fogo. Para o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, a contenção contra o Irã pode ter valido a pena se conseguir convencer Biden da necessidade de estrangular Rafah — condicional à remoção prévia daquela multidão sem rumo. Difícil.

Tudo o que tange a Palestina é historicamente difícil. O próprio New York Times, jornalão de referência para boa parte do mundo, atualiza constantemente as orientações sobre os termos a ser usados por jornalistas do matutino que cobrem o conflito. Segundo um memorando interno obtido por Jeremy Scahill, cofundador do Intercept, é recomendada a restrição ao uso de termos como “genocídio” e “limpeza étnica”; a denominação “territórios ocupados”, em referência às terras palestinas da Cisjordânia, Gaza e parte de Jerusalém, deve ser evitada. “Palavras como matança, massacre, carnificina muitas vezes contêm mais emoção do que informação. Pensem muito antes de usá-las como sendo suas”, sugere também o memorando. Difícil.

Barco à deriva

Os europeus enriquecem com as riquezas da África. Para isso, precisam que o continente se mantenha pobre, dividido e mal governado. Depois, os africanos migram para a Europa, fugindo da miséria. Triste mundo. A Humanidade é um barco à deriva
José Eduardo Agualusa

O espectro da guerra civil: Para onde a polarização exacerbada pode nos levar

Uma pesquisa do instituto YouGov para a revista britânica The Economist em 2022 mostrou que 14% dos americanos consideram “muito provável” e 29% consideram “um pouco provável” que os Estados Unidos enfrentem uma guerra civil na próxima década. Sessenta e seis por cento dos entrevistados acreditam que, depois do 6 de janeiro de 2021 (quando houve a invasão do Congresso americano), o país ficou ainda “mais dividido”, e 65% creem que a violência política “aumentou”. No Brasil, a situação não é muito diferente.

Levantamento do instituto Quaest, publicado aqui no GLOBO, mostrou, na véspera das eleições de 2022, que 12% dos brasileiros consideravam “muito justificado” e 9% “um pouco justificado” o uso de violência se o outro lado vencesse as eleições. Três meses e meio depois, tivemos o 8 de Janeiro. É num futuro próximo, derivado dessas tensões políticas, que se passa o novo filme de Alex Garland, “Guerra civil”, que entrou em cartaz neste fim de semana.

O filme é uma distopia realista sobre os Estados Unidos destruídos por uma guerra civil sangrenta. Um grupo de quatro jornalistas que trabalham para a agência Reuters e o jornal The New York Times viaja de carro de Nova York à capital Washington para tentar entrevistar o presidente antes que forças rebeldes cerquem a cidade e tomem o poder. Numa espécie de roadmovie de terror, os quatro passam por estradas tomadas por carros abandonados, um estádio convertido em centro de acolhimento, um posto de gasolina controlado por justiceiros e cidades ocupadas por guerrilheiros e milicianos.

O filme filia-se a uma tradição de perturbadores filmes antiguerra, como “Apocalypse now” (1979), “Platoon” (1986), “Nascido para matar” (1987) e “Guerra ao terror” (2008). Da diretora Kathryn Bigelow, de “Guerra ao terror”, incorpora uma estética ultrarrealista, próxima à de um documentário, que provoca calafrios ao ser encenada em locações conhecidas nos Estados Unidos. De Francis Ford Coppola, Garland faz uma citação direta numa das cenas finais de batalha, que remete à famosa cena da dança dos helicópteros de “Apocalypse now”. Ao produzir essas cenas ultrarrealistas de batalha que nos relembram a crueza da guerra, Garland quer fazer um alerta: a consequência lógica do aprofundamento da polarização política é a violência, a guerra civil fratricida entre compatriotas que não mais se aceitam.

Essa mensagem política do filme, porém, tem sido muito debatida. Garland optou por embaralhar as referências políticas em seus Estados Unidos distópicos. O presidente do filme está no terceiro mandato (quando a Constituição só autoriza dois), e descobrimos que fechou o FBI e bombardeou civis, mas não sabemos se é republicano ou democrata. Contra ele, forma-se uma coalizão de dois estados que também têm orientação política desconhecida reunindo Texas e Califórnia, hoje marcados pela orientação política oposta — a Califórnia de esquerda e o Texas de direita. Diálogos esparsos dos personagens não dão pistas dos motivos da divisão política, e ela não parece ser a fratura que divide hoje republicanos conservadores e democratas progressistas. Nas cenas de batalha, nunca sabemos bem com que lado os agentes armados estão colaborando. É como se o filme nos dissesse que isso não importa.

Em entrevistas, Garland tem defendido sua abordagem que impede o público de se reconhecer e se alinhar com um dos lados da disputa. Críticos do filme têm chamado o resultado de “bobo” e “superficial” ao evitar enfrentar os temas reais que nos dividem. A resenha no jornal The Wall Street Journal chamou o filme de “carnificina sem causa”. Outra, na revista The New Yorker, afirma que Garland “se perdeu numa névoa não partidária”.

Garland, porém, evitou perder espectadores discutindo as causas do conflito e preferiu, ao contrário, mostrar aos dois lados para onde a polarização exacerbada pode nos levar. Seu filme não é uma reflexão sobre os temas dos nossos conflitos políticos, é uma reflexão sobre a maneira como levamos esses conflitos. É um filme que nos lembra que a violência — consequência lógica da polarização crescente — é a própria falência do espírito humano.

Ressurreição dos mortos

Tudo aconteceu depois que se viu a jovem levando o tio – talvez já morto – para conseguir empréstimo. Viralizou, provocou efeito cascata. Acendeu uma luz em cada cabeça. Levar parentes queridos aos bancos para cavar um auxílio usando a malandragem brasileira. Em um átimo estavam caçando parentes. Tem tosse? Vem comigo? Disenteria? Refluxo? Urina solta? Flatulência? Redes sociais funcionaram. Maioria dos políticos não se importou, vive de emendas parlamentares, rachadinhas.


Assim, desde o show da Taylor Swift não se tinha visto tanta ansiedade, desespero, congestionamentos, desmaios, enfartes. Semáforos no amarelo, trombadas, cruzamentos fechados, situação de guerra civil nas imediações de agências bancárias. A Faria Lima e a Bolsa alucinadas. Parentes iam aos advogados exigindo recuperação financeira com solicitações do dinheiro bloqueado pelo Collor, exigindo revisão de vida na Previdência, fim dos juros nos cartões, baixa da Selic nos juros. Parte lamuriava, inconsolável: não tenho nenhum morto querido nesta cidade. Cemitérios foram saqueados, covas abertas, vinham esqueletos de décadas, pedaços de braço com a mãos empunhando canetas, prontas para assinar. Circo de horrores.

Todos procuravam um meio de chegar a um posto, se inscrever, pegar o que desse, levando seu ente querido nos braços, nas costas, em carrinhos de mão. Muitos se remoíam, parentes que poderiam render estavam mortos. Foram pedidas exumações. Buzinação, sirenes, carros de som, ambulâncias paralisadas, portas de aço baixadas. Filas gigantescas levando parentes para assinar com uma caneta amarrada na mão. Todos aos gritos: estou aqui há quatro semanas, sabe se chamaram minha senha? Há quantos meses o senhor espera? Você pagou para passar à frente? Já tem mercado paralelo? Na terceira semana, estava o País imobilizado. E as filas empurradas pelos parentes. Apareceram vendedores de água, refrigerantes, sanduíches, sucos. Começaram a se engalfinhar, socos, facas, polícia chegava (sem câmeras, claro) e tentava empurrar a massa. Para onde? Não havia em nenhum ponto do País, um só espaço. Gente desmaiava, pisoteada.

Lamentos, choros, desesperos, cabelos arrancados, “meu tiozinho, minha madrinha, minha amante!”. “Me deem o dinheiro, eles estão prontos para assinar.” Gasolina faltou em todos os postos. Há meses, acampados esperam sua senha ser chamada. O País está paralisado, há falta de água, comida, energia elétrica, gasolina, carne, inteligência artificial. Todos esperam pela ressurreição dos mortos pra levá-los aos bancos. E o Lira e o Pacheco rindo à socapa.