sábado, 21 de agosto de 2021

Pensamento do Dia

 


As cores esfregadas no nosso nariz

Ouço dizer que, num covil da internet, lê-se: “Abaixo o Supremo Tribunal Federal! Não passarão!”. Ouvi direito? A lendária palavra de ordem da Guerra Civil Espanhola (1936-39), consagrada pela ativista Dolores Ibárruri, La Pasionaria, comunista de 400 anos, terá sido adotada pelos seguidores de Jair Bolsonaro? Se sim, seria mais uma prova da ciclópica ignorância dessa gente. Mas não é só isso. Se os bolsonaristas são broncos ou ingênuos, há uma minoria que pensa por eles, teleguia-os e os abastece de slogans. E sabe o que faz.

A estratégia consiste em se apropriar das bandeiras, verbais ou simbólicas, do adversário. Começa pelo sequestro do conceito de democracia, que passa a ser de seu uso exclusivo. Qualquer tentativa de enquadrá-los na lei maior, a Constituição, é chamada de tentativa de ditadura —embora esta lhes sirva muito bem para definir os governos torturadores que defendem. Como a democracia é, por definição, um regime que assiste com notável tolerância a que se trame a sua própria destruição, eles dispõem de tempo e espaço para trabalhar.


A corrupção conceitual se estende à liberdade de expressão. Abusam do direito de exercê-la, mas processam e ameaçam quem faz o mesmo com eles e, se chamados a responder por seus excessos, correm cinicamente para trás do biombo jurídico. Essa é a mais perigosa das apropriações: a da Justiça —porque costurada por dentro, em silêncio, e, quando se torna evidente, como agora, já pode ser tarde demais.

Conceitos como “Deus”, “pátria”, “família”, “povo” e “homem de bem” também se tornam de sua propriedade, para maquiar práticas sabidamente canalhas.

E há o mais simbólico e ostensivo dos sequestros: o das cores nacionais. Elas se tornam seu monopólio e são esfregadas no nosso nariz. O Brasil precisa retomar o verde-amarelo. Mas, antes, terá de purgá-lo com o preto e o cinza, cores do luto. Por acaso, vem aí um 7 de Setembro.

O Talibã tropical

Enquanto os desgrenhados guerrilheiros do Talibã entravam em Cabul, fui reler uma crônica que Eça de Queiroz escreveu sobre as vitórias e derrotas dos ingleses no Afeganistão: “Em 1847, os ingleses, por uma razão d’Estado, uma necessidade de fronteiras científicas, a segurança do império, uma barreira ao domínio russo da Ásia, e outras coisas vagas, invadem o Afeganistão, e ali vão aniquilando tribos seculares. Apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; sacodem do serralho um velho emir apavorado; colocam lá outro de raça mais submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas e tapetes; e, logo que os correspondentes dos jornais têm telegrafado a vitória, o exército, acampado à beira dos arroios de Cabul, desaperta o correame e fuma o cachimbo da paz.” Nas linhas seguintes, com idêntica ironia, Eça descreve a derrota do exército britânico, mais preocupado com o fornecimento de chá (e do açúcar para adoçar o chá), do que em combater os insubmissos guerreiros afegãos. Finalmente, conclui: “E de tanto sangue, tanta agonia, tanto luto, o que resta por fim? Uma canção patriótica e uma estampa idiota nas salas de jantar.”

O que aconteceu com os ingleses no século XIX aconteceu depois com os russos no século XX, e a seguir com os americanos neste nosso tempo. A principal diferença é que da desastrosa aventura americana não sobrará sequer uma canção patriótica.


A fulgurante vitória do Talibã trouxe de volta o debate sobre fundamentalismo islâmico, misoginia, neopuritanismo e violência contra a mulher. É um debate importante, sobretudo se aproveitarmos para discutir não apenas o fundamentalismo islâmico, mas todas as formas de extremismo religioso.

Nos últimos dias, as redes sociais vêm mostrando fotografias a preto e branco de moças afegãs, passeando pelas praças de Cabul, de cabelos ao vento, blusas ligeiras e saias curtas. São imagens dos anos 1970. É possível encontrar imagens semelhantes feitas na mesma época na Pérsia, na Argélia, na Turquia, entre tantos outros países que, entretanto, sucumbiram ao triunfo de correntes conservadoras do islão.

Infelizmente, não são apenas os países islâmicos que se vêm rendendo ao neopuritanismo e à misoginia. Em muitos países ocidentais, e em particular no Brasil, assiste-se a um fenômeno semelhante. O crescimento do fundamentalismo cristão, importado dos EUA, ameaça conquistas importantes dos movimentos feministas e pelos direitos das minorias.

O bolsonarismo é um talibanismo, numa versão tropical e carnavalesca, ou seja, ainda mais ridícula, mas não menos estúpida, violenta e potencialmente destruidora. Bolsonarismo e talibanismo partilham um idêntico ódio às mulheres livres; o culto às armas, à violência e aos “valores masculinos”; o desprezo pela diferença; a exaltação de um deus arcaico, macho e cruel.

Como foi isto possível?

Isto: a irrupção do século XV no século XXI?! Como é que esta gente, vinda das profundezas mais sombrias da História, conseguiu desembarcar, armada, no nosso tempo?

Quando formos capazes de responder a esta questão, então, sim, talvez consigamos vencer o passado — e aceder ao futuro.

O Bolsonaristão

O mundo assistiu chocado às imagens de milhares de afegãos bolsolatristas tentando fugir de qualquer maneira para o Brasil. Os fanáticos seguidores da bolsolatria estão apavorados com a tomada do poder pelos moderados do Talibã.

Para acalmar a população, os líderes mujahedins mandaram avisar que ninguém precisa se preocupar: não vai ter eleição em 2022, não vai ter urna eletrônica, não vai faltar cloroquina para a população e não vai ter Enem. E mais: todo mundo vai poder continuar espancando os gays, os (as) trans e as mulheres (principalmente ser for a sua) à vontade. Além disso, o programa de exclusão social Minha Arma, Sua Vida vai continuar fuzilando normalmente.

Preocupado com a infiltração comunista no Talibã, o cantor Sérgio Erreis já está preparando uma comitiva de caminhoneiros, produtores de soja e cantores sertanejos para acampar na frente do STF (Supremo Tribuná do Feganistão), exigindo a demissão de todos os juízes em 72 horas. Se em 72 horas não tirarem todos os juízes, eles vão dar mais 72 horas para que suas exigências sejam cumpridas. Se nas 72 horas subsequentes nada for feito, eles ameaçam juntar os seus bagulhos e voltar para casa, levando junto o cantor Sérgio Erreis muito deprimido.

As coisas andam complicadas no Afeganistão. O general Abdul Omar al-Brega Neto desembarcou em Cabul para inaugurar a primeira loja da Havan e declarou que no Brasil nunca teve ditadura militar. Na mesma festividade, o presidente É Bom Jair se Muçulmando Bolsonaro chegou à frente de uma motociata de camelos que, na verdade, era uma cameliata. No seu discurso, Bolsonasser avisou que iria transformar o Afeganistão num país “terrivelmente evangélico”.

Foi aí que começou o barraco em Cabul. Os Talibãs, muçulmanos de carteirinha, não gostaram da ideia, principalmente quando Bolsonazi nomeou um militar da ativa para aiatolá da Saúde e um pastor da Universal como chefe da sharia, a lei do Islã.

“Tu és Messias, mas não és Maomé!!!!”, urravam os talibans de direita. “Allah akbar! Alá é o único Deus e Maomé, o seu profeta!”

O pessoal do Centrão ficou preocupado e sugeriu mudar o nome do presidente para Jair Muhammad al-Bolsonagib. Era só liberar umas verbas que eles votavam uma emenda. O pessoal da esquerda disse que, se o caso era de profeta, a solução era o Lula. O Lula já tem barba, acha que é Deus e jura que é o homem mais honesto do mundo. Mas o Lula desistiu depois que soube que muçulmano não pode beber pinga e nem álcool.

Felizmente, estou no Brasil, onde não acontecem essas barbaridades fundamentalistas: aqui reinam a calma e a pasmaceira dos paraísos tropicais. Todos vivem na mais completa felicidade. Tem emprego a dar com o pau, comida também não falta para ninguém. As crianças todas na escola. Facção e milícia são coisas do passado. As cadeias estão vazias, e os hospitais também, porque ninguém mais fica doente. No Congresso Nacional, com todos os problemas do país resolvidos, senadores e deputados passam o dia jogando truco no plenário. Os deputados do Centrão, arrependidos, deixaram de roubar e transferiram seus bens para o Criança Esperança, passando a viver num mosteiro budista. No Palácio do Planalto, a família Bolsonaro se dedica ao ikebana, a milenar arte japonesa de arranjos florais. Carlos, com o apoio decisivo do pai e dos irmãos, assumiu a sua verdadeira orientação sexual e vive com um rapaz maranhense, com quem adotou dois indiozinhos órfãos. No STF, o clima também é de paz e concórdia. Os capinhas armaram redes no plenário, onde os magistrados, que renunciaram às regalias, passam as tardes alternando debates filosóficos com rodadas de chá de cogumelo. Gilmar Mendes abandonou a toga e todos os seus bens materiais para se dedicar a um trabalho missionário entre os miseráveis da Índia —afinal, a vida toda ele foi um miserável (em todas as encarnações). Dias Toffoli foi outro que abandonou o tribunal e está cursando pela segunda vez a classe de alfabetização da escola Chapeuzinho Vermelho de ensino básico do PT. Ele quer estudar direito e prestar concurso para juiz.

A floresta amazônica avança que é uma beleza: qualquer dia, vamos todos ter que morar boiando no oceano Atlântico, pois as matas virgens vão ocupar cada centímetro do nosso território. O Brasil é um exemplo mundial de equilíbrio do ecossistema e, por isso, é respeitado internacionalmente: um exemplo de economia de baixo carbono e reciclagem.

Quer saber? O mundo ficou muito sem graça depois que os talibãs chegaram ao poder.

Agamenon Mendes Pedreira chegou ao fundo do poço, mas continua cavando.