domingo, 12 de dezembro de 2021

Por exemplo?

Bem, por exemplo, o que significa ser um homem? Numa cidade. Num século. Em transição. Em uma massa. Transformado pela ciência. Sob o poder organizado. Sujeito a mecanismos de controle tremendos. Num estado decorrente da mecanização. Após o último fracasso das esperanças radicais. Numa sociedade que não era comunidade nenhuma e depreciava a pessoa. Em virtude do multiplicado poder dos números, que tornavam a pessoa desdenhável. Que consumia bilhões em despesas militares contra inimigos externos, mas não gastava para ter ordem dentro de casa. O que abriu caminho para a selvageria e a barbárie em suas próprias cidades grandes. Ao mesmo tempo, a pressão de milhões de pessoas que descobriram o que esforços e pensamentos unidos em comum acordo podem conquistar.


Enquanto megatoneladas de água formam organismos no fundo dos oceanos. Enquanto as marés dão polimento às pedras. Enquanto os ventos escavam os rochedos. A beleza da supermaquinaria descortina uma vida nova para a humanidade inumerável. Você lhes negaria o direito de existir? Pediria a eles que trabalhassem e passassem fome, enquanto você desfruta Valores antiquados? Você — você mesmo é filho dessa massa e irmão de todo o resto. Ou então é um ingrato, um diletante, um idiota. Pronto, Herzog, pensou Herzog, já que você está pedindo um exemplo, aí está como são as coisas.
Saul Bellow, "Herzog"

Racismo ao gosto do freguês

André Gabeh, escritor engajado contra qualquer tipo de preconceito, acaba de lançar o delicioso “Nunca foi sorte, sempre foi macumba”. Um livro reverente (“Minha vida é toda sob o hálito dos Orixás. Os Deuses dos meus ancestrais são ricos, belos, imensos e estão em todos os meus momentos”, “Na Umbanda eu vi o mistério. (...) No Candomblé eu senti a força de seres que são a própria energia da natureza”). E também engraçadíssimo (não vou dar espóileres; morram de rir por sua conta e risco).

Nem o Gabeh escaparia aos patrulheiros das microagressões do cotidiano. Ele microagride ao escrever “macumba” — “Palavra utilizada de forma racista para nomear as oferendas aos orixás (...), associando-as a algo ruim”, segundo o “Dicionário de expressões (anti) racistas”, da Defensoria Pública da Bahia.

Cartilhas e manuais editados no afã de sanitizar o idioma deixaram de ser novidade. Neste ano, o index prohibitorum ganhou mais projeção ao ser endossado, acriticamente, por uma agência de checagem. A reação foi, finalmente, à altura do equívoco que é deixar em segundo plano o racismo real e investir contra um imaginário. A imprensa repercutiu amplamente o assunto. Aqui no GLOBO, tratei do absurdo de um checador não checar. A Defensoria baiana entrou no artigo como Eva na Salve-Rainha, mas encrespou com a crítica (“encrespar” pode?) e sacou da falácia do “se você não concorda com meus métodos, está defendendo ou justificando aquilo a que me oponho”.

Não estou. O racismo é uma abominação. Eu, a Defensoria e a torcida do Flamengo estamos do mesmo lado. A diferença é que considero um tiro no pé lançar mão de invencionices que desqualificam a argumentação — e depois apelar para o autoritarismo. Quando um órgão de Estado não reconhece um erro e ainda se arroga o direito de decidir que temas merecem a atenção de um articulista ou a quem um jornal deve abrir espaço nas suas páginas de opinião, disseminar delírios etimológicos é até um delito menor.

Garante a Defensoria que a palavra “nhaca” reforça estereótipos e preconceitos porque seria referência a uma ilha africana. Se é, Aurélio, Aulete, Houaiss e Michaelis ignoravam. Antenor Nascentes supõe que venha do tupi yákwa (“que tem cheiro”). E a Defensoria se defende com um Saussure de mão única — expressões inocentes se tornam racistas; mas uma vez racistas, racistas até morrer. Quem, ao xingar alguém de “boçal”, tem em mente que era assim que se denominava o escravizado que ainda não falava português? Quem?

Como é que “mulata/o” virou ofensa, depois de frequentar impunemente o idioma por quase 500 anos? Possivelmente quando da importação da one drop rule, teoria segundo a qual só há pretos e brancos, sem os 50 (ou 50 mil) tons intermediários gerados pela miscigenação. E aí caíram em desgraça os mulatos, morenos, pardos, caboclos — 46,8% da população que desaparecem, absorvidos pelos 9,4% de pretos (Pnad 2019).

Ser semanticamente incorreto não deveria ser motivo de orgulho — menos ainda quando a causa prejudicada é o antirracismo.

Pensamento do Dia

 

Galym Boranbayev (Cazaquistão)

Construir o inimigo

Umberto Eco (1932-2016), o festejado autor de “O nome da Rosa” e “O pêndulo de Foucault”, além de tantas outras obras, tem livro póstumo publicado pela Editora Record, com esse título “Construir o inimigo”. São quinze deliciosas crônicas, todas inteligentes e sarcásticas, bem ao estilo do italiano irreverente.

Impressionante a atualidade dos temas. O texto que batizou o livro surgiu de um fato real. Um taxista paquistanês em Nova Iorque, ao saber que Eco era italiano, perguntou a ele quem eram os inimigos da Itália. Eco respondeu que a Itália não tinha inimigos. O paquistanês não só ficou insatisfeito, mas demonstrou sua irritação. Um país que não tem inimigos não pode ser levado a sério.

As reflexões de Umberto Eco em relação ao tema refletem a tendência brasileira de procurar causadores de dificuldades para o desenvolvimento nacional, como fórmula de escape à responsabilidade ou de assunção de flagrante incompetência.


Quando se cria um “inimigo imaginário”, absolve-se o governo que não sabe solucionar questões recorrentes, mas que se agravaram nos últimos anos, uma evidência do acelerado retrocesso em que a República mergulhou.

Teorias conspiratórias, invocação aos brios patrióticos, acusando outros países de interesses escusos, apelo ao surrado conceito de soberania, tudo isso vale para disfarçar a realidade: não existe foco, não existe programa, não existe projeto, a não ser a volúpia mesquinha pela permanência nas estruturas de poder.

Um inimigo assim imaginado passa a atrair a ira dos indignados com o quadro nacional: milhões de famélicos que reviram lixo ou procuram assistência médica apenas para dizer que o seu mal é fome. Desemprego galopante, ausência de política eficiente para garantir moradia – embora direito fundamental – para a legião dos sem teto.

Sem falar numa educação capenga, presa a conceitos necrosados como o de transmitir informação e fazer com que o educando memorize dados, como a ignorar que mediante um “clique”, tudo será obtido instantaneamente nas redes sociais. De forma atualizada, colorida e musicada, mais apetecível e sedutora do que as aulas insossas e as apostilas.

A pandemia escancarou o despreparo do governo para o enfrentamento de algo que a ciência já anunciava. Então é preciso encontrar culpados pela peste. Ela foi criada em laboratório estrangeiro, que em seguida fornece vacina com chip, hábil a controlar toda a população planetária e fazê-la submissa à hegemonia da macropotência.

Não existe falha atribuível aos detentores de cargos estatais. Tudo o que acontece tem o DNA perverso dos inimigos da Pátria. Eles se arrogam no direito de condenar o extermínio da floresta amazônica e de outros biomas, em vez de reconhecerem a sua cobiça por um patrimônio que é nosso. E que só nós podemos destruir…

Tudo se intensifica mediante o uso das redes sociais, usinas de abundante produção de ódio, a contaminar os radicais que sempre foram assim, mas que hoje não se envergonham mais de suas posições trogloditas.

O fenômeno da criação artificial de inimigos não se circunscreve à massa ignara, privada de condições de enxergar a realidade, na sua tosca e arrogante ignorância, travestida de patriotismo. Não. O produto mais nefasto é a contaminação de pretensos eruditos, que por fanatismo ou deliberada má-fé, ajudam a propagação das inverdades, formando violentos contingentes de beligerância.

Não é da índole humana aceitar as próprias falhas, fazer o “mea culpa” e reconhecer a fragilidade natural a uma criatura perecível, que tem algumas décadas apenas para fazer valer a sua passagem por este planeta.

Até os círculos considerados eruditos cedem à onda adversarial, cultivando a cultura do repasse. Tudo o que é de ruim provém do outro. A vitimização é uma carreira próspera para um brasileiro que sempre se considera injustiçado e impedido de avançar rumo à concretização de seus sonhos, pois a inveja alheia, a trama alienígena, representa inexpugnável barreira.

Somente a educação corrigiria a perigosa rota que, além de prosseguir no atraso, tornará o Brasil isolado e cada vez mais desacreditado. Mas essa missão não é exclusiva do Estado. É obrigação da família e da sociedade.

A esperança é a de que a lucidez remanescente assuma as rédeas desse encargo capaz de eliminar ou, ao menos mitigar, as graves máculas da democracia tupiniquim. Dentre as quais, não é a menor a religião de construir inimigos.

A maldição do ouro da Amazônia

“Uma chuva de meteoros trouxe o ouro à terra. Talvez esse início violento tenha amaldiçoado o metal. Por nenhum outro se matou tanto.” A frase abre a última temporada da série ficcional A Casa de Papel, o programa de TV mais assistido no mundo nesta semana. Já na vida real, na Amazônia, assistese a uma nova – e triste – saga do ouro. A mineração ilegal cresce e se torna uma das principais causas do desmatamento na maior floresta tropical do planeta.

O Instituto Igarapé, centro de pesquisas brasileiro especializado em segurança pública, e a Interpol, organização que promove a cooperação entre as polícias do mundo, lançaram um estudo sobre como combater a mineração ilegal na Amazônia. O texto esmiúça os casos de Brasil, Peru e Colômbia e tece conexões entre eles.

Sabe-se que a maior parte do desmatamento na Amazônia é criminoso, e uma fração crescente da devastação da floresta se deve à mineração ilegal. “Não é mais o garimpeiro solitário que busca ouro para sair da pobreza”, diz Ilona Szabó, cofundadora do Instituto Igarapé. “Há muito mais atores envolvidos.” Ilona e Laura Waisbich, também do Igarapé, são as entrevistadas do minipodcast da semana.

Segundo Laura e Ilona, cada vez mais a mineração ilegal se mistura com redes de crime organizado na América Latina, com especial destaque para as de tráfico de drogas. Entre outras “sinergias”, pistas de pouso clandestinas construídas por traficantes são usadas pela mineração ilegal. O desmonte de órgãos como o Ibama facilita a parceria entre os meliantes do ouro e das drogas.

O estudo é patrocinado por governos de vários países, entre eles Reino Unido, Noruega e Suíça, e também por organizações brasileiras da sociedade civil. O desmatamento criminoso – que, além da mineração, inclui extração ilegal de madeira e grilagem de terras – é o principal responsável pelas emissões de carbono do Brasil.

A persistência desse tipo de crime faz com que negociadores brasileiros cheguem enfraquecidos às mesas onde se definem os acordos internacionais, prejudicando sobretudo o agronegócio exportador. A França já usa contra nós as mazelas de nossa má gestão ambiental. Como o Estadão mostrou em reportagem de Felipe Frazão, o mesmo pode acontecer com a Alemanha. A nova coalizão de governo, definida nesta semana, fundiu as áreas de Economia e Clima – e colocou ambas sob a gestão do Partido Verde.

Os crimes ambientais destroem a reputação do Brasil e prejudicam nossa economia, da mesma maneira que os assaltos em A Casa de Papel deixam a Espanha vulnerável. Lá, no entanto, é ficção. Aqui, uma trágica realidade.

 João Gabriel de Lima

É a fome, estúpido

Evidentemente não se deve esquecer jamais da corrupção, germe super-resistente que contamina a nação desde o seu nascimento, mas o grande tema da eleição presidencial de 2022 será a fome. Ela, que já foi estrela eleitoral, volta ao debate político dada a degradação da economia do país. Hoje, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), 19 milhões de brasileiros passam fome e outros 119 milhões estão em situação de insegurança alimentar, sem acesso regular e permanente a alimentos. Só na cidade do Rio, 107 mil famílias vivem em estado de extrema pobreza. Mas, o drama da fome é visível e palpável em todos os cantos de todas as cidades brasileiras.

Nunca se viu tantos miseráveis desalentados nas ruas, mendigando um prato de comida, um litro de leite, um resto, uma sobra, uma migalha. As imagens de grupos de famintos buscando o que comer em caminhões de lixo, nas portas de supermercados, bancos e farmácias remetem aos anos 1980 e início dos 1990. A notícia de brasileiros comendo lagartos no Rio Grande do Norte lembra episódios idênticos relatados no passado, com pessoas fotografadas enquanto preparavam calangos e ratazanas para a refeição. As imagens daquela época eram tão ultrajantes quanto são as de hoje.

As ruas de Copacabana parecem acampamentos, tamanho o número de pessoas sem teto dormindo nas calçadas ou sob as marquises. No Centro do Rio, em Ipanema, na Tijuca, onde você andar vai encontrar pessoas lutando por um pedaço de pão. Em Belo Horizonte, Salvador ou Porto Alegre as cenas se repetem. Em São Paulo, a maior cidade brasileira, a imagem é igual. Pare na esquina da Brigadeiro Faria Lima com a Alameda Gabriel Monteiro da Silva, no coração financeiro do país, e conte o número de pedintes. O resultado será na casa da dezena. No interior do Brasil é a mesma coisa, com mais gravidade em regiões mais pobres do Nordeste. Mas passa-se fome também em Santa Catarina e no Paraná.

Nas campanhas presidenciais pós-ditadura, os temas centrais foram corrupção (Collor e Bolsonaro), economia (FHC I e II, Lula II e Dilma I e II) e fome (Lula I). Lula de novo vem tratando do tema agora, na sua pré-campanha, mas foi a senadora Simone Tebet quem disse com todas as letras do que se trata ao lançar a sua candidatura pelo MDB, na terça-feira. Ela falou para a distinta plateia que a ouvia que partia para uma missão e acrescentou: “Essa missão tem um clamor. Tem o clamor da urgência, urgência porque o nosso povo, o povo brasileiro, está morrendo de fome”.

Em razão desta urgência, é possível que a aposta de Bolsonaro e Moro de levar o debate para a corrupção e ganhar de Lula neste campo não prospere a ponto de garantir uma eleição. Quando 19 milhões não comem e 119 milhões muitas vezes não jantam ou não almoçam, a questão tampouco pode se limitar à economia, embora seja com ela que se vá resolver o problema um dia. O que o eleitor quer saber é qual presidente estará em melhores condições de resolver o seu problema imediato. O povo quer comer, senhor candidato. É a fome, estúpido.

O mundo não é para principiantes

Os brasileiros gostam de dizer – quase com orgulho – que os temas internacionais passam longe das campanhas eleitorais. E que ninguém vai perder tempo, no meio de uma intensa disputa por votos, em debates sobre os rumos da política externa.

Talvez este seja um bom momento para rever o conceito. A pessoa que vier a subir a rampa do Palácio do Planalto em janeiro de 2023 vai encontrar um mundo bem diferente que o de quatro ou oito anos atrás. Um mundo mais volátil e mais perigoso.

Na verdade, não se trata apenas de discutir política externa. Embora frequentemente negligenciado pelos políticos, o tema vai continuar importante. A escolha equivocada de um ministro das Relações Exteriores pode ser fatal para a imagem do país, como mostra nosso passado recente.


Iman Rezaee (Holanda)

O novo contexto global vai exigir do Brasil e dos demais países uma flexibilidade até agora inédita. O Itamaraty continuará sendo, naturalmente, nosso principal ponto de contato com o resto do mundo. Mas vários outros ministérios precisarão estar antenados com o planeta.

A Saúde é um bom exemplo. Pouca gente dava importância à escolha do titular da Pasta, quando começava um novo governo. Pois agora qualquer pessoa que vier a assumir o ministério precisará ter, além das desejadas qualificações técnicas, um olhar atento ao que se passa em outros países.

A pandemia é um dos principais motivos pelos quais não se pode mais deixar de lado o que se passa no mundo durante uma campanha eleitoral. Por definição, uma pandemia atinge todo o planeta. E dificilmente será vencida sem uma considerável cooperação internacional.

Neste momento, o Brasil saboreia uma queda significativa no número de mortos a cada dia por causa da Covid. E não, este não é um número que interesse apenas aos brasileiros.

Dois exemplos: a suspensão das festas de Ano Novo no Rio de Janeiro foi uma das manchetes do canal de televisão BBC News no fim de semana; e o relativo sucesso da campanha de vacinação, apesar do “ceticismo do líder Jair Bolsonaro”, ganhou primeira página do jornal londrino Financial Times.

Pouca gente se arrisca, porém, a prever o comportamento da pandemia nos próximos meses. Ninguém sabe ao certo como ela se comportará a partir da descoberta da variante Ômicron, na África do Sul.

Existem otimistas, como o ministro da Saúde do novo governo alemão, o epidemiologista Karl Lauterbach, para quem a variante pode ser um “presente de Natal” e acelerar o fim da pandemia.

Outros especialistas estão mais cautelosos. O diretor da Wellcome Trust, uma das maiores fundações de apoio à pesquisa médica, disse à revista alemã Der Spiegel, que podemos estar mais próximos do começo que do fim da pandemia. “Estamos brincando com fogo”, alerta.

Duas outras pesquisadoras pedem atenção redobrada à Covid. A diretora assistente de programas no Duke Global Health Institute, Andrea Taylor, disse à CNN que falta um plano global de combate à pandemia. “Nós não somos bons para lidar com crises mundiais”, lamenta.

Por sua vez, a professora Dame Sarah Gilbert, uma das criadoras da vacina Astra Zeneca, pediu em entrevista à BBC cautela diante da nova variante. “Esta não será a última vez que um vírus ameaçará nossas vidas”, advertiu. “A verdade é que o próximo pode ser pior”.

As incertezas sobre os rumos da pandemia provocam, naturalmente, muitas dúvidas sobre o futuro da economia global. Se o atual candidato Luiz Inácio Lula da Silva já teve a seu favor um boom de commodities, quando esteve no governo, uma realidade bem diferente pode esperá-lo se voltar a ser presidente.

A onda de novas restrições a viagens internacionais, logo após a descoberta da nova variante, reduziu o ímpeto da esperada retomada da economia global. Países como Israel e Japão fecharam suas fronteiras, enquanto outros dificultaram o ingresso de estrangeiros. A preocupação com nova expansão da pandemia reduziu as projeções mundiais de crescimento.

Por outro lado, a pandemia também aumenta o risco de elevação da inflação em todo o mundo. Os índices já são preocupantes em países como os Estados Unidos, onde os preços subiram 6,2% em outubro, quando comparados ao mesmo período do ano anterior. No Brasil, agentes de mercado alertam que a elevação da inflação não é temporária e pode exigir medidas mais duras.

Portanto, se não formos informados de boas novidades ao longo do próximo ano, é bem possível que a próxima pessoa a ocupar o Palácio do Planalto assuma o governo diante de um cenário global ameaçador tanto na saúde pública quanto na economia.

Tudo isso sem mencionar riscos latentes de conflitos internacionais. Os principais deles estão em Taiwan, que a China pretende em algum momento reincorporar a seu território, e a Ucrânia, ameaçada de invasão pela Rússia por sua maior aproximação com o Ocidente.

Diante desse cenário, como se comportará o debate político brasileiro ao longo dos próximos meses? Pode ser que nada mude e que os pré-candidatos continuem levando a vida como se o resto do mundo não existisse.

O ex-juiz Sérgio Moro, por exemplo, já manteve a tradição de políticos do Centro-Sul e experimentou um chapéu de couro na sua primeira viagem a Pernambuco. Ao mesmo tempo em que o governador João Dória foi ironizado por “buscar votos em Nova York”, em viagem aos Estados Unidos para encontro com investidores.

Depois do prejuízo causado à imagem do país por Jair Bolsonaro, Lula foi muito bem recebido em sua viagem à Europa. Foi recebido por líderes importantes, como o francês Emmanuel Macron, e políticos europeus demonstraram satisfação com a “volta do Brasil” ao mundo.

Lula escorregou, porém, ao comparar a longa permanência no poder de Daniel Ortega, na Nicarágua, à de Angela Merkel, na Alemanha. Talvez para agradar à esquerda de seu partido, ele ignorou as denúncias de violações de direitos humanos na Nicarágua.

Pois temas como a defesa dos direitos humanos e da democracia não poderão mais ser evitados, especialmente depois de fenômenos como os de Donald Trump e Bolsonaro. Assim como não poderão ficar fora da agenda as questões ambientais. Como no caso da pandemia, a mudança climática atinge a todo o planeta.

A nova realidade global é complexa e vai exigir muito da futura liderança brasileira. O compositor Tom Jobim costumava dizer que o Brasil não era para principiantes. Pois agora se pode acrescentar que o mundo também não é para principiantes.
Marcos Magalhães

A pobreza dos ricos

Poucos dias antes das eleições que puseram fim ao longo consulado da democracia-cristã na Alemanha, li no El País um artigo surpreendente sobre o atraso da “locomotiva da Europa” em relação à chamada “transição digital”. Segundo a articulista (Elena G. Sevillano), que, para a sua investigação, se apoiou em dados de agências e instituições oficiais alemãs, insuspeitas portanto, “na Alemanha, primeira economia europeia, a internet é demasiado lenta”. Porquê? Certamente porque a rede de fibra ótica apenas cobre 16% das empresas e famílias, enquanto em Portugal atinge 87%, segundo informação da Associação de Operadores de Comunicações Electrónicas (APRITEL), divulgada no mesmo dia em que o artigo em apreço saiu no jornal espanhol.

O atraso tecnológico alemão mede-se em indicadores que nos parecem anedóticos. A Alemanha ocupa hoje um dos últimos postos no ranking europeu da Administração digital, ao nível da Bulgária e da Hungria. O fax, imagine-se, continua a ser o meio privilegiado de comunicação entre serviços (há mais de 900 aparelhos ainda em funcionamento nos diversos ministérios!). É certo que o fax não é utilizado nos serviços da Chancelaria; mas isso é apenas porque ali se usa um meio ainda mais antigo: a comunicação processa-se em papel transportado por tubo pneumático…2.400 vezes por mês.

A dispersão e autonomia em matéria digital dos 16 Estados federados é considerada a principal razão para este atraso, que coloca o país na cauda da Europa-em-processo-de-digitalização. Enquanto a fibra ótica já chega a 70% dos habitantes de Colónia, Munique ou Hamburgo, apenas 3% dos residentes de Frankfurt (!) ou Estugarda estão cobertos e Berlim, a capital do país, exibe uns magros 5% de cobertura. Mas, apesar dos potenciais benefícios (na educação, na saúde, nos negócios) do aumento da velocidade de circulação e descarga de conteúdos digitais, só na legislatura que agora se inicia se projeta um investimento substancial em infraestruturas, a muito falada mas sempre adiada Digitalisierung (digitalização).

Fortunato Depero

As revelações do artigo deixaram-me perplexo. Durante as últimas duas décadas, o discurso dominante nas sociedades industrializadas tendeu a inocular-nos a ideia de que sem digitalização não há futuro para as economias desenvolvidas. A “transição digital” tornou-se um slogan político de primeira grandeza, ao qual vieram juntar-se, recentemente, a transição energética e a transição climática. E, no entanto, aí está a Alemanha, motor da Europa e uma das primeiras economias exportadoras do mundo, que, na sua ronceirice prussiana, continua a ignorar em larga medida os benefícios das tecnologias de informação. Aparentemente, os alemães acreditam mais nas coisas físicas do que na desmaterialização; privilegiam a indústria em relação às tecnologias soft; acreditam que a força da exportação está na qualidade e fiabilidade dos seus produtos, não na rapidez do envio das faturas. E, fiéis ao seu modelo de desenvolvimento, continuam a crescer, a crescer, a crescer…para desespero de muitos de nós.

O que isto demonstra não é que a digitalização seja um mau caminho; mas apenas que não é o único para um desenvolvimento sustentado das sociedades humanas. Se compararmos o grau de digitalização atual da sociedade portuguesa com o da alemã, somos tentados a perguntar, como na anedota: então, porque é que a nossa economia não é mais bonita? Talvez porque o aumento exponencial da velocidade de circulação da informação é por nós aproveitado mais para o entretenimento e atividades de lazer do que para as atividades economicamente produtivas (há exceções, claro, e algumas delas de muito bom uso foram durante os confinamentos). Normalmente, somos impacientemente juvenis, demasiado rápidos, a acolher as diversas inovações tecnológicas (telemóvel, multibanco, via verde, fibra ótica), mas pouco inclinados a tirar o melhor partido delas.

Há, além disso, um efeito perverso neste processo de digitalização acelerada da sociedade. Uma espécie de “darwinismo tecnológico” instalou-se nos níveis superiores da sociedade, tendendo a ignorar a grande massa dos que não conseguem acompanhar o ritmo das inovações: uma espécie de seleção natural acabará por deixar para trás os milhões de deserdados da revolução digital. Há uns meses, em pleno processo de vacinação, um canal de televisão passou uma reportagem perturbante: numa freguesia do distrito de Vila Real residem 70 pessoas com mais de 80 anos de idade, cerca de 7% da população. Mas o motivo da reportagem era outro: é que, destes 70 anciãos, apenas sete têm telemóvel! Sendo assim, como é que os outros 63 iam ser chamados para a vacinação? E, já agora, como é que preenchem as declarações de IRS ou os numerosos formulários online que são, hoje em dia, praticamente a única forma de contactar com “os serviços”? O que mais me impressiona nesta situação é o que ela revela sobre a assustadora distância entre o “admirável mundo novo” anunciado pelas grandes cidades e o “pobre mundo velho” com que ainda deparamos, dentro ou fora dos perímetros urbanos e geracionais.

E uma reflexão subsidiária que não pode deixar de surgir: será porque investe muito menos no digital do que países mais pobres que a Alemanha é o mais rico dos países europeus? Recentemente, um familiar meu queixava-se das péssimas instalações nos teatros de Dublin, capital da afluentíssima Irlanda. Mas os irlandeses, que continuam a considerar-se um país pobre apesar de mais de mil multinacionais terem ali as suas sedes, são “agarrados” quando se trata de investimentos, como pode comprovar-se pela fraca qualidade da rede viária que cruza a ilha. O que faz dos países ricos países ricos é precisamente comportarem-se por vezes como se fossem pobres. Só os países pobres costumam esbanjar dinheiro – quer o tenham quer não.