domingo, 15 de setembro de 2019

Brazil abaixo de tudo

Não há comprovação alguma da força eleitoral de um boné. Mas os candidatos e mandatários adoram a peça. Para cada ocasião o capelo ganha um apelo. Não raro, patético, exposto pelo político apenas para exibir o que imagina saber que o público da ocasião deseja.

O ex-Lula, hoje preso em Curitiba, vestia a cabeça com coloridas marcas do MST, da Caixa e de outros tantos, como o de hip hop, ritmo que possivelmente ele nem conhecia. Na campanha de 2006, até o insosso Geraldo Alckmin conseguiu arrancar gargalhadas ao cair no ridículo de aparecer enfiado em um jaleco de estatais, adornando a careca com um boné do Banco do Brasil para se mostrar contrário às privatizações que seu partido defendia. 

Mas ninguém foi tão longe como o presidente Jair Bolsonaro. Impresso no boné preto que estrategicamente colocou sobre a mesa do hospital de onde regeu sua live semanal no Facebook, o “make Brazil great again” não deixa dúvidas quanto à submissão a Donald Trump. Uma imitação barata, na mensagem e na língua, do slogan de campanha daquele que hoje é considerado pelos americanos como um dos piores presidentes que o país já teve.

Contabilize-se o “again” que remeteria a um passado melhor do que o presente, o que, na cabeça do capitão da reserva tem tradução óbvia: a ditadura militar (que sua desrespeitosa visão da historia diz que não existiu) seria o antes glorioso. 



Não é novidade o encantamento do clã Bolsonaro por Trump, que cotidianamente desafia os melhores valores americanos. Com isso, transforma a liderança que seu país gozava no vexame de uma posição secundária na defesa da democracia, cujos princípios exigem apologia à liberdade, respeito ao contraditório e às minorias, tolerância. 

Esses fundamentos, tão caros aos Estados Unidos e insistentemente expropriados por Trump, podem explicar a rejeição do chefe numero 1 do mundo, mesmo com desemprego baixo e economia em crescimento. 

Pesquisa do jornal Washington Post-ABC News aponta que o ídolo de Bolsonaro tem 56% de desaprovação e que 60% dos eleitores americanos acham que ele não deve ser reeleito. No levantamento do Langer Research Associates, divulgado na semana passada, se as eleições fossem hoje Trump perderia feio para qualquer um dos seis candidatos democratas pesquisados.

Um cenário capaz de embaçar as tratativas entre o Brasil e os Estados Unidos, costuradas pelo governo Bolsonaro como amizade de compadres, entre Trump e ele, entre Trump e seu filhote Eduardo, que o papai-presidente quer transformar em embaixador do Brasil em Washington.

Eduardo desfila com os ícones da extrema-direita americana, foi recebido por Trump e é um dos temas recorrentes na série de visitas do chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, aos Estados Unidos. Na semana passada o ministro do Exterior bateu ponto pela sexta vez em oito meses, garantindo que iria anunciar ganhos extraordinários para o Brasil. 

Mais uma vez, nada aconteceu de proveitoso para o país. Mas o alinhamento quase automático com Trump continua firme, tendo Eduardo como ponta de lança.

Bolsonaro ainda não enviou ao Senado a indicação do rebento. Aguarda vencer resistências dos que veem no ato nepotismo extremo e a sabatina de Augusto Aras, indicado para a Procuradoria-Geral da República. Publicamente, preferia não misturar estações, absolutamente embaralhadas quando se descobriu que o advogado-geral do Senado, Fernando Cesar Cunha, responsável pelo parecer em favor de Eduardo, é sócio do escritório de advocacia de Aras.

As credenciais do senador postulante também suscitam dúvidas – do inglês frágil ao comportamento nada diplomático exercitado por eleno dia a dia com seus pares e nas redes. A pistola na cintura durante a visita ao pai no hospital aditou apenas mais uma extravagância à sua já polêmica personalidade. 

As afinidades e gostos pessoais acima das obrigações de Estado deixam o Brasil vulnerável. Caso Trump não consiga se reeleger, o que hoje é mais do que provável, as consequências poderão ser danosas para o Brasil com “s”, não contemplado no boné do chefe da nação.

'Ajuda' do patrão

Vamos tirar do chão um compromisso feito em março, um fundo de investimento de US$ 100 milhões, ao longo de 11 anos, para a conservação de biodiversidade na Amazônia, e esse projeto será liderado pelo setor privado
Mike Pompeo, secretário de Estado dos EUA

Noruega nega acordo sobre Fundo Amazônia

Em nota oficial divulgada no seu site, a Embaixada da Noruega no Brasil negou a existência de um acordo para a retomada das doações ao Fundo Amazônia. O texto adota um timbre bem diferente do que foi utilizado nas últimas 48 horas pelo ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) e pelos governadores de estados da Amazônia Legal.

"Nós entendemos e compartilhamos o forte desejo dos governadores em retomar todas as funções do Fundo Amazônia", anota a embaixada norueguesa. "O diálogo sobre o Fundo continua entre os doadores e as autoridades federais do Brasil, junto ao Ministério do Meio Ambiente. Temos um diálogo respeitoso, mas ainda não há uma solução imediata para as divergências sobre a governança do Fundo".

Na sexta-feira, governadores da Amazônia se reuniram com embaixadores da Noruega, Alemanha e Reino Unido, para discutir a reativação do Fundo Amazônia. Criado em 2008, o Fundo obteve R$ 3,4 bilhões em doações ambientais. Verba destinada à preservação da floresta. O grosso (93%) veio da Noruega.



Sob Bolsonaro, o governo encrencou com o Fundo. Quis alterar a destinação dos recursos e o modelo de governança. A ausência de clareza e o descaso do governo com os indicadores de desmatamento e queimadas levou Noruega e Alemanha a suspenderem os repasses. Os noruegueses retiveram R$ 133 milhões. Os alemães seguraram um repasse de R$ 155 milhões. Bolsonaro deu de ombros. Disse que o Brasil não precisa desse dinheiro.

Após o encontro de sexta, o governador do Pará, Helder Barbalho, declarou: "O que está colocado é de que eles estão em conclusão de diálogos junto com o Ministério de Meio Ambiente para que seja anunciado nos próximos dias a retomada do Fundo Amazônia".

Embora não tenha participado da reunião, o ministro Ricardo Salles declarou que o acordo com os doadores internacionais está praticamente fechado. Ecoou Helder Barbalho: "As tratativas iniciadas pelo Ministério do Meio Ambiente no sentido de aprimorar e então retomar o Fundo Amazônia junto aos doadores têm avançado bem, em mútuo entendimento, inclusive com os governadores. Essa é uma negociação que eu fiz com os representantes desses países para retomar as doações".

A nota da embaixada recolocou a bola no chão: "A Noruega ainda não possui fundamento jurídico e técnico para realizar a contribuição anual do Fundo Amazônia". O texto flerta com o óbvio ao reafirmar o interesse dos doadores pela definição de uma política qualquer para a preservação da floresta.

" O Brasil mostrou na última década que é possível diminuir o desmatamento e ao mesmo tempo crescer economicamente", anotou a embaixada. "O importante agora é parar o desmatamento ilegal e continuar promovendo o desenvolvimento sustentável na Amazônia. A Noruega quer contribuir, mas a responsabilidade principal está nas mãos soberanas do Brasil".

Pensamento do Dia


O duplo impacto da soja para o clima

O cultivo de soja vivencia um boom. A última safra rendeu 360 milhões de toneladas, 70% a mais do que há dez anos. Isso é comprovado por números do Departamento de Agricultura dos EUA (USDA). Segundo o órgão, os maiores produtores mundiais são atualmente os Estados Unidos (34%), seguidos de perto pelo Brasil (32%) e Argentina (15%).

O principal destino da soja é a ração animal. Na União Europeia (UE), 87% do grão são transformados em alimento para animais, 6% em biodiesel e 7% em alimento para a população.

O aumento global do consumo de carne está impulsionando a demanda pelos grãos ricos em proteínas. As áreas de floresta desmatada na América do Sul são muito convenientes à produção de soja em larga escala: por um lado, as condições climáticas são boas para o cultivo, por outro, latifundiários administram enormes áreas.

Mais de 95% da colheita consiste em variedades geneticamente modificadas resistentes a pesticidas. Essas plantas servem particularmente bem à produção industrial com pouca mão de obra.


Os maiores compradores de soja para ração animal são a China e a UE. Pequim importou cerca de 84 milhões de toneladas, de acordo com dados do USDA para 2018/2019; a União Europeia por volta de 35 milhões de toneladas.

Com o aumento da demanda por soja para alimentação animal, as florestas estão sendo devastadas para criar espaço para mais cultivo e pastagem. No Brasil, a área de cultivo de soja quadruplicou para cerca de 340 mil quilômetros quadrados nos últimos 20 anos, segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Essa terra cultivável corresponde ao tamanho da Alemanha.

Somente na região da Amazônia brasileira, cerca de 437 mil quilômetros quadrados de floresta tropical foram derrubados nos últimos 30 anos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em parte dessa terra pastam os rebanhos de gado; em outra, cultiva-se a soja.

Em todo o mundo, aproximadamente 10 milhões de quilômetros quadrados de terras agrícolas férteis são utilizados somente para a produção de ração animal. Isso corresponde a uma área quase quatro vezes maior do que a destinada à produção direta de alimentos.

As queimadas e drenagem de regiões pantanosas para a produção de carne fazem parte das emissões produzidas pela agricultura. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, estas representam 23% de todas as emissões globais de gases do efeito estufa. Se forem adicionadas outras emissões da produção de alimentos, como as geradas pelo transporte, esse número aumentará para cerca de 29%.

No atual relatório especial sobre uso da terra e segurança alimentar, o IPCC mostra como a agricultura e a exploração florestal teriam que mudar para que os alimentos e os meios de subsistência da humanidade sejam mantidos e as metas climáticas do Acordo de Paris possam ser alcançadas.

Em seu relatório, o IPCC recomenda que a área utilizada para pastagens e terras agrícolas em todo o mundo diminua significativamente até o final deste século. Os atuais 50 milhões de quilômetros quadrados deveriam ser reduzidos em 20%.

Para retirar o CO2 da atmosfera, o painel aponta a captura do dióxido de carbono via biomassa, através do reflorestamento, como um caminho importante. Novas florestas deveriam surgir nos próximos 50 anos, cobrindo uma superfície de até 7,5 milhões de quilômetros quadrados. Em comparação, a área da UE é de 4,5 milhões de quilômetros quadrados.

Além da agricultura e reflorestamento sustentáveis, o IPCC também recomenda que a humanidade desperdice menos comida e coma menos carne.

"Atualmente, o sistema alimentar é um importante propulsor das mudanças climáticas, do uso excessivo de água e da poluição ambiental. Sem medidas direcionadas, esses efeitos podem aumentar de 60% a 90% até 2050", aponta Johan Rockström, diretor do Instituto de Potsdam de Pesquisa do Impacto Climático (PIK).

"Para manter a produção de alimentos dentro dos limites da exploração do planeta e, portanto, dentro de um espaço de ação seguro para a humanidade, podemos fazer três coisas: comer vegetais mais saudáveis e menos carne, reduzir sistematicamente o desperdício alimentar e aperfeiçoar tecnologias e gestões agrícolas, como o cultivo do solo e a reciclagem de fertilizantes", informa Rockström, copresidente da Comissão EAT-Lancet.

Junto a uma grande equipe de cientistas internacionais, Rockström publicou o relatório Dietas saudáveis de Sistemas Alimentares Saudáveis. Se essa recomendação fosse implementada em todo o mundo, o consumo médio de carne por pessoa seria de cerca de 300 gramas por semana (16 quilos/ano); o consumo de laticínios giraria em torno de 630 gramas por semana (33 quilos/ano).

Na América do Norte e do Sul, Europa e China, consome-se atualmente de quatro a sete vezes mais carne do que o aconselhado. Para os laticínios, o consumo é quase oito vezes maior do que o recomendado, especialmente na Europa e nos Estados Unidos.

"Curiosamente, a simples mudança para uma dieta 'flexitária', baseada em vegetais, pode reduzir pela metade as emissões de gases de efeito estufa da produção agrícola. Todas as medidas juntas podem ajudar a manter todos saudáveis, incluindo o planeta", diz Rockström.

Bolsonaro vai montando sua ditadura

O clã dos Bolsonaro tem ventilado amiúde a sua retórica autoritária, procurando aos poucos costurar, quem sabe (se colar!), um projeto de ditadura a ele conveniente. O Zero Dois da linhagem, o internauta multiplataforma Carlos, com a solidez e perspicácia retórica que lhe são peculiar, contribuiu dias atrás com mais uma pérola do caudilhismo caboclo. Disse de maneira cristalina, sem margem a interpretações equivocadas, que “por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos”. Nada mais eloquente como aceno a regimes de exceção e ao retrocesso do que o enunciado do pimpolho dileto do mandatário. Carluxo, saltando com a devida destreza o conciliábulo liberal da patota de Guedes, encontrou (quem sabe) novas e transcendentais mudanças impossíveis de vingar em um ambiente onde o poder emana do povo. Interpretando seu personagem favorito, o de paladino de um western digital, expressou mais uma vez nas redes o que, decerto, também pensa o patriarca. Messias em pessoa já disse lá atrás: “através do voto você não muda nada no País; tem de matar uns 30 mil”. Era ainda deputado do baixo clero, vale a ressalva, mas não reviu o que pensa, como até as pedras do Planalto sabem. O mano de Carluxo, o Zero Três Eduardo, imerso nos últimos tempos em um programa de adestramento à candidatura de embaixador em Washington, já salpicou pistas de como alcançar o intento do controle absoluto do Estado: “para fechar o STF, basta um soldado e um cabo”, disse, ainda durante a campanha eleitoral de papai. Lembre: o Mito também falou em “levantar borduna”, em “fuzilar” FHC e em dar “o golpe no mesmo dia” se chegasse ao poder – como, por ironia do destino dos brasileiros, acabou acontecendo. A estirpe bolsonarista, cavalgando ajaezadas metonímias ou indo direto ao ponto, não mede obstáculos na aplicação do vernáculo belicista. Nesse tocante, encarna o verbo em pessoa. Seus partícipes se orgulham de aparecer com armas (o postulante à diplomata Dudu foi o mais recente deles, em pleno hospital) e de ameaçar e perseguir eventuais críticos. Não se venha dizer que é preciso relevar, tolerantemente, essa índole totalitária. O pouco caso, a não reação a condutas do tipo, que afrontam preceitos constitucionais, já levou muitos governantes em outras ocasiões e em condições semelhantes ao flerte com o autoritarismo. É previsível entre esses aspirantes a déspotas a postura de incômodo com os contrapesos da democracia. Jair Bolsonaro alardeou aos quatro ventos que só deve respeito e lealdade ao povo, esquecendo-se, talvez propositadamente, que também deve à Carta Magna e aos demais poderes o mesmo comportamento. Podem-se aduzir inúmeros motivos para o flagelo ideológico da trupe bolsonarista. Mas talvez o mais notório deles seja a intolerância que seus membros cultivam por quem pensa diferente. Tome-se a atitude de Carluxo, por exemplo. Após a saraivada de reações negativas ao vitupério antidemocrático, ele partiu aos ataques de sempre, alegando que “canalhas” da imprensa distorceram seus pensamentos. Nem às próprias palavras ele dá valor. Há pessoas que julgam os seus semelhantes como se todos indistintamente lhes compartilhassem as visões de mundo e a consistência de caráter. Com Carluxo, Eduardo, Flávio e o capo Jair parece que se dá assim. Nos gabinetes parlamentares da família algumas práticas desabonadoras foram anotadas. Acusações de laranjal, de uso de cabos eleitorais fantasmas e de inexplicáveis relações com milicianos levaram o presidente a perseguir investigadores. A cúpula da Polícia Federal está no cadafalso, ameaçada de degola. O Coaf, que investigava movimentações financeiras suspeitas, foi para o espaço. Acabou na concepção original por ousar investir sobre as contas da Primeira Família. Receita Federal, depois da “devassa” que promoveu em seu clã, segundo palavras do próprio capitão, deve ser reestruturada, dividida em sub-repartições. O titular do fisco, Marcos Cintra, acaba de ser despachado para casa. Também foram mandados embora o presidente do INPE, por divulgar números de desmatamento oficiais que Bolsonaro não gostou, o da Ancine, por patrocinar filmes tidos por ele como “pornográficos”, membros do IBGE, do BNDES e por aí afora. O xerife do País, que faz questão de dizer que é quem manda no pedaço, quebra e arrebenta, vai aparelhando o sistema tiranicamente, enquanto despeja sobre a Nação seu entulho autoritário. Está tudo dominado. Ou quase. Importante perceber, não sem algum constrangimento, como a República dos Bolsonaro, que se anunciava nova, capaz de uma distopia radical com tudo que estava aí, promoveu ao logo dos últimos tempos – nesses primeiros nove meses de gestação – uma concepção muito peculiar de democracia. Seria, por assim dizer, uma democracia de sarau, uma ação entre amigos, que se desenvolve no avarandado dos poderosos. Na particular noção de liberdade que o Messias cultiva cabem as bravatas ranzinzas, as afrontas a parceiros internacionais, as mentiras em redes sociais, a difamação de rivais, o que der na telha. Acata-se o amuo momentâneo dos grãos senhores da indústria e do comércio, absorvem-se a “malaise” de ministros menos trogloditas como Sergio Moro e até os protestos abertos do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. As desavenças se encerram sob o manto conciliador dos interesses da minoria, no círculo fechado do privilégio. A velha política, sob o tacape de Bolsonaro, segue, assim, sendo a mesma. Sai república, entra república, os desacertos da elite são ensarilhados ao lado do pote que mantém cheio o botim. Para conservar acesa a camarilha de adoradores, o mandatário destampou o bolor de pânicos fictícios e alguns fantasmas que a Nação reza para ver pelas costas, como o da tenebrosa sombra petista. Mas são nas imprecações sistemáticas que o atual governo deixa a estranha impressão de que se assiste hoje, afinal, ao que talvez seja a derradeira cena de uma transição dolorosa na qual prevaleceu a guerra dos extremos. Polarizado até aqui, o País clama pela moderação. Repudia a prepotência de quem se arvora em digno detentor do poder absoluto. O governo enfezadinho armou seus homens para uma guerra imaginária e, nessa toada, sairá derrotado dela.

Caminho para o crime

Só teremos uma economia forte no médio e no longo prazo se enfrentarmos o capitalismo de compadrio e a grande corrupção política.
A corrupção grassa, reformas anticorrupção estão na gaveta, o combate à corrupção está se esfacelando e está sendo criado um clima favorável à impunidade
Deltan Dallagnol 

As CPIs que assombram o governo Bolsonaro

Fora a dificuldade que enfrenta no Congresso para aprovar o que lhe interessa e derrotar o que lhe criaria problemas, um novo fantasma ali passou a assombrar o governo do presidente Jair Bolsonaro – as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs).


E tudo porque o capitão, cercado por auxiliares sem voto e militares sem tropas, insiste em governar sozinho e se recusa a compartilhar o poder com os partidos. Em uma democracia, em qualquer parte do mundo, é algo que ninguém jamais conseguiu.

Foi aberta a CPI das Fake News para apurar o uso de notícias e perfis falsos que possam ter influenciado o resultado das últimas eleições. Ela já se reuniu duas vezes. E seu presidente, o senador Ângelo Coronel (PSD-BA), já recebeu ameaças de morte.

Os Bolsonaro dizem que jamais distribuíram noticias falsas. No entanto, ninguém mais do que eles estrilaram quando o Congresso criminalizou a distribuição em períodos eleitorais. Bolsonaro, o pai, vetou o projeto. O Congresso derrubou o veto.

Foi protocolado na Câmara na última quinta-feira o pedido de instalação da CPI da Vaza Jato para apurar possíveis ilegalidades reveladas na troca de mensagens entre procuradores da Lava Jato em Curitiba e o ex-juiz federal Sérgio Moro.

Sob a pressão do governo, deputados que assinaram o pedido de criação da CPI recuaram e querem retirar suas assinaturas. Só que o regime interno da Câmara diz que isso não é possível. Uma vez assinado o pedido, assinado fica.

Poderá ser criada no Senado a CPI da Lava Toga para investigar o “ativismo judicial” de autoridades de tribunais superiores, especialmente ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Essa seria a mais explosiva de todas na avaliação do governo.

Sem dispor ainda do número suficiente de assinaturas para ser criada, a CPI da Lava Toga desatou uma crise no PSL, partido de Bolsonaro, o único que apoia o governo. O senador Flávio Bolsonaro (RJ) tudo faz para impedir sua criação.

“Vocês querem me foder e foder o governo?” – ele berrou em ligação para a senadora Juíza Selma (PSL-MT) que assinou o pedido de criação da CPI. Ao Major Olímpio (PSL-SP), líder do governo no Senado, Flávio disse poucas e boas.

Flávio acha que a CPI despertaria a fúria de ministros do STF e que isso poderia lhe prejudicar diretamente. Foi uma liminar concedida pelo ministro Dias Toffoli que suspendeu o processo a que Flávio responde por desvio de dinheiro público.

Bolsonaro, o pai, quer ouvir falar de tudo – menos de uma CPI que comprometa o pacto firmado por ele com Toffoli em nome da estabilidade institucional. Dito de outra maneira: o governo não mexe com juízes e os juízes não mexem com o governo.

Está difícil para o clã dos Bolsonaro explicar aos seus devotos que o compromisso de lutar contra a corrupção tem limites. E este seria um: proteger Flávio para evitar que a acusação que pesa contra ele atinja por tabela a nova família imperial do Brasil.

David Alcolumbre (DEM-AL), presidente do Senado, é contra a CPI da Lava Toga. Se depender dele, não será criada nunca. Em julho último, um processo a que Alcolumbre respondia foi arquivado pelo STF. Ele é grato ao tribunal.

Cavaleiros das trevas foram os heróis da Semana da Pátria

Ao se dizer chocado com o “homotransexualismo” (?) que identificou numa página de Vingadores – A cruzada das crianças e mandar recolher exemplares da história em quadrinhos na Bienal do Livro, o prefeito do Rio de Janeiro pareceu agir como um beócio, um néscio, um estulto. Afinal, favoreceu a ampla divulgação da cena de dois rapazes se beijando, exatamente a que afirmava ser danosa a crianças e adolescentes.

Marcelo Crivella foi um sacripanta. Mas, sobretudo, foi calculista. Sabia exatamente o que aconteceria e que seu nome seria comentado em todo o país e até internacionalmente, pois a HQ é da editora Marvel. Buscou se cacifar junto ao público-eleitorado conservador. Não quis perder terreno na corrida que vem sendo disputada no Brasil e que teve etapa quente na Semana da Pátria: a dos cavaleiros das trevas.

Na terça-feira, o governador de São Paulo, João Doria, mandou recolher apostilas em que se reproduz conteúdo produzido pelo Ministério da Saúde sobre “identidade de gênero”. Esse conceito trata de dissociar biologia e sentimento. Para os cavaleiros das trevas, porém, homem que nasce homem é homem; mulher que nasce mulher é mulher. O resto é desvio e, de preferência, silêncio. Freud explica tamanha obsessão pelo que os outros fazem com os próprios corpos.

Doria recorreu à falácia caça-votos da ideologia de gênero, que, na visão de cavaleiros como ele, seria uma espécie de catequese pró-homossexualidade promovida por esquerdopatas que querem violar a alma e o corpo de nossas crianças — no caso das escolas estaduais, crianças já com 13, 14 anos.

O governador, qual um Odorico Paraguaçu do Jardim Europa, bradou: “Vamos tomar as medidas punitivas. Quem fez será punido”. E lançou servidores municipais à missão de jogar material escolar em sacos de lixo . Logo se descobriu, segundo a Folha de S.Paulo , que na apostila havia as três páginas condenadas por Doria e mais 141 com lições de oito disciplinas, entre elas português, matemática, história e geografia.

Os adolescentes paulistas serão protegidos da impureza, mas talvez não da ignorância. Querendo ou não, Doria agiu como aliado de Jair Bolsonaro, que considera educação coisa de esquerda e que, portanto, precisa ser combatida. O desmantelamento das escolas, das universidades, das instituições científicas é o eixo do projeto de Bolsonaro. Sim, um projeto.


Ofender mulheres e exaltar torturadores é o arroz com feijão do presidente, a dieta que ele segue para se manter o craque do time de conservadores em que Crivella ainda busca lugar. Mas o projeto tem mais consistência. Almeja firmar o Brasil como pátria armada e obscurantista, gerida pelos fiéis seguidores da cavalaria (12% da população, segundo a última pesquisa Datafolha). Dessa pátria verde, amarela e sombria, devem ser exilados os gays que se beijam e toda a diversidade rebelde: negros e indígenas que não morrem calados, mulheres “feias” que mostram a cara, “paraíbas” que insistem em votar na esquerda, “veganos” que defendem as florestas, os artistas, os professores. Será o império dos ressentidos.

No sábado, vendo que a reação ao ato censor de Crivella foi muito forte, Doria encarnou o papel do policial bom e disse que o prefeito do Rio “exagerou, foi além do que poderia ter ido”. Se tivesse apenas mandado material escolar para o saco, aí tudo bem.

O governador paulista quer virar presidente atraindo parte dos fãs ardorosos de Bolsonaro, mas sem tirar totalmente o segundo pé da civilização. Precisa dela para manter o penteado de homem liberal, cosmopolita, de alternativa bem trajada a algum homem das cavernas vestido com a camisa da seleção.

Seu colega do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, não tem essas frescuras. A visão política é a mesma de Bolsonaro: Deus acima de tudo, violência policial em cima de todos. De todos os que não sejam “cidadãos de bem”: pretos, pobres, gente que trabalha em favela — como um pedreiro fuzilado na terça 3 na Vila Kennedy (Zona Oeste).

Na sanha de abrir alas para as milícias passarem, a polícia fluminense fez, também na terça-feira, outra operação ruidosa na Cidade de Deus. Um blindado saiu arrastando barracos de pessoas que vivem numa das áreas mais pobres da favela. No mesmo dia, um cabo da PM foi morto num confronto no Complexo do Alemão, tornando-se outra vítima da falsa guerra entre lei e crime — na verdade, é uma guerra entre polícias/milícias e a maior facção do tráfico de drogas no estado. Na quinta-feira (5) e na sexta-feira, as ações foram no Complexo da Maré, matando ao menos duas pessoas, e também destruindo casas. Mal apareceu na imprensa.

No 7 de setembro, Bolsonaro presidiu a cerimônia em Brasília enquanto, no Rio, Witzel passeava num tanque de guerra usando a faixa que ele mandou confeccionar para si próprio. (Freud também deve explicar essa fixação em fardas e faixas.) Na sexta-feira, o governador foi chamado duas vezes de “fascista” em aparições públicas. Numa delas, ficou tão revoltado que rebateu com uma ofensa pesadíssima: “Maconheiro!”.

Pode ser que, fazendo as contas, Witzel ache que ser tratado como fascista renda alguns pontos na corrida contra os outros cavaleiros das trevas. A jornada é longa, e nada os distrairá: desemprego, fome, saúde pública, direitos trabalhistas. O apocalipse é o limite.