quinta-feira, 26 de agosto de 2021

A quem interessa manter Bolsonaro no Planalto

A leitura dos jornais e sites dá a impressão de que o Brasil se encontra às vésperas de uma guerra civil ou de um golpe militar. As manifestações dos bolsonaristas, marcadas para 7 de setembro, estão sendo vistas como uma ameaça concreta às instituições — tão concreta que se teme que os aloprados transformem em realidade a invasão do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, como preconizam policiais militares nas redes sociais. Para completar o quadro que se afigura tenebroso aos olhos de muitos, Jair Bolsonaro e seus acólitos continuam açulando os seus seguidores.

Posso estar quadradamente enganado, mas tendo a crer, assim como o vice-presidente Hamilton Mourão, que se trata de “fogo de palha“. O fato é que, com exceção daquele episódio no qual um grupelho comandando pela tal Sara Winter tentou invadir o Congresso, os atos de massa bolsonarista foram até agora pacíficos, num contraste entre o discurso e a ação — ao contrário de alguns atos da esquerda, que degeneraram em vandalizações de lojas e bancos. Seja como for, não é porque não ocorreu que não poderá ocorrer. Sempre é bom tomar cuidado com maluco.


Cada vez mais próximo da derrota eleitoral no ano que vem, Jair Bolsonaro procura marcar território, para manter-se como sombra política capaz de ainda causar apreensão. A principal preocupação do presidente da República é se tornar inelegível e até mesmo ir para a cadeia quando se tornar ex-presidente da República — e, para tanto, quer contar com uma massa de apoiadores permanentemente mobilizada em torno do “Mito“. Não deu certo com Lula, que acabou preso pela Lava Jato, mas a esta altura não resta outro caminho a Jair Bolsonaro, inclusive porque ele não contará com o beneplácito da Justiça lá adiante, assim como ocorreu como o chefão petista, se porventura os processos contra ele prosseguirem sem as paralisações de praxe, em especial os oriundos da CPI da Covid.

A pergunta a se fazer é se tem de ser assim: manter o elemento na Presidência da República, para não “vitimizá-lo” ainda mais com o impeachment, como se ouve em Brasília. Ora, se há uma vítima cada vez mais evidente aqui é o país, que sofreu mortalmente com os desmandos no enfrentamento da Covid e, agora, com uma inflação que já é galopante no índice real, o do bolso dos cidadãos. Qual é o problema de Jair Bolsonaro se vitimizar ainda mais? O de distúrbios de rua incontroláveis? Francamente, deveríamos ter aprendido algo com o episódio de Lula tentando escudar-se nos seus próprios aloprados, em abril de 2018, para não ser preso pela Polícia Federal. E se o receio existe hoje, com mostra o noticiário sobre o 7 de setembro bolsonarista, por que deixar para o eleitor a tarefa de tirar um golpista do Palácio do Planalto? O impeachment é um instrumento perfeitamente constitucional e Jair Bolsonaro já faz por merecê-lo bem mais do que os outros dois presidentes que sofreram impedimento. Toda e qualquer tentativa de diálogo com esse senhor destina-se a fracasso, uma vez que também não há diferença entre persona e pessoa real no caso dele.

A manutenção de Jair Bolsonaro na Presidência da República, não importa os motivos apontados em Brasília, só interessa ao Centrão fisiológico e corrupto, que avança sobre a carcaça de um governo que já morreu, aos que fazem cálculos eleitoreiros, visando a enfrentar um candidato à reeleição exangue e, não menos importante, aos liberticidas. É preocupante como, a pretexto de enfrentar a retórica golpista de Jair Bolsonaro e os seus acólitos, ministros do Judiciário avançam contra a liberdade de expressão, misturando alhos e bugalhos. O circo vem sendo armado, por exemplo, para a criação de um Conselho Federal de Jornalismo, nos moldes desejados pelo PT, no primeiro mandato de Lula, para amordaçar a imprensa independente. E sabe-se se lá se não tirarão da cartola — ou do bolso de uma toga — um órgão oficial de controle das redes sociais? Estão, sim, criminalizando a opinião no Brasil, e essa poderá ser uma das heranças mais funestas do período que vivemos.

Uma crise insolúvel

É tal a gravidade da crise política e institucional que ora paralisa o País que cinco ex-presidentes da República – José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Michel Temer – acionaram seus canais de interlocução com as Forças Armadas, particularmente com generais do Exército, da ativa e da reserva, para aferir o ânimo das tropas para embarcar em uma eventual intentona do presidente Jair Bolsonaro. A informação foi revelada pelo Estado no fim de semana.

Premido pela queda consistente de sua popularidade e por reveses no âmbito dos Poderes Legislativo (derrota da PEC do Voto Impresso) e Judiciário (inquéritos administrativos e penais no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral, contra si e alguns apoiadores), Bolsonaro tem dado sinais de que partirá para o “tudo ou nada” – vale dizer, o descumprimento das leis e da Constituição, quiçá de ordens judiciais – como forma de se aferrar ao poder e, assim, tentar escapar das consequências políticas e penais de seus desatinos.

Para o bem da Nação, as respostas que os cinco ex-presidentes obtiveram, ainda que com pequenas variações, afluíram na direção do respeito à Constituição pelas Forças Armadas. Os emissários dos ex-presidentes ouviram dos generais consultados que as eleições de 2022 não só vão ocorrer normalmente, como o Congresso ouvirá, na data da posse, o compromisso do presidente eleito, seja ele quem for, exatamente como determina a Lei Maior. Ou seja, as bravatas de Bolsonaro, incluindo o alardeado apoio que ele julga ter do alto oficialato para suas investidas contra as instituições republicanas, mais revelam fraqueza e isolamento do que força.


A firmeza dos generais consultados em relação a seus compromissos constitucionais, no entanto, é apenas uma boa notícia em um quadro geral muito preocupante. São tempos muito estranhos estes em que uma manifestação de respeito de generais do Exército à Constituição traz certo alívio para os cidadãos que prezam pela liberdade. A rigor, a própria consulta que cinco ex-presidentes da República fizeram aos generais revela, por si só, que Bolsonaro já golpeou a democracia ao agredir diuturnamente, com atos e palavras, os pilares do Estado Democrático de Direito.

A saída para esta grave crise que rouba o presente e compromete o futuro do País teria de passar, necessariamente, por uma civilizada concertação de interesses entre os chefes de Poderes, todos imbuídos pelo que o ex-ministro Marco Aurélio chamou de “amor institucional”. Da parte do Poder Legislativo e do Poder Judiciário já houve este aceno à harmonia e à civilidade, ainda que preservadas eventuais discordâncias. Do Poder Executivo, no entanto, as tentativas de pacificação se revelaram ardis para que Bolsonaro apenas ganhasse tempo até sua próxima investida contra a República. Ao trair a confiança de seus interlocutores nos outros dois Poderes, o presidente trai a confiança da Nação.

Jair Bolsonaro é irremediável. Se ainda havia alguma dúvida sobre sua aversão à política em seu sentido mais estrito – a acomodação de interesses por meio do diálogo –, esta dúvida foi dissipada em caráter definitivo pelo pedido de impeachment que o presidente apresentou ao Senado contra o ministro Alexandre de Moraes, sem qualquer fundamento a não ser a clara disposição de lançar seus apoiadores mais fanáticos contra a Suprema Corte e contra o Senado, que, evidentemente, não dará andamento ao pedido.

O País ainda tem pela frente longos 16 meses até que termine o mandato de Bolsonaro. Nada indica que os graves problemas que afligem o País serão tratados neste período. As investidas golpistas do presidente travarão o andamento de projetos importantes no Congresso, como as reformas estruturais. A capacidade de Bolsonaro para “fabricar artificialmente crises institucionais infrutíferas”, como bem avaliou o decano do Supremo, ministro Gilmar Mendes, é inesgotável. E isto manterá o Brasil refém do temperamento vesânico do pior presidente que já governou a Nação.

Como você ainda aguenta o Brasil?

Atualmente estou na Europa. A imagem do Brasil que se tem a partir daqui é, naturalmente, diferente. Aqui se está menos exposto ao constante fluxo de informações (e desinformação); se está menos envolvido nas discussões diárias − muitas vezes esquecidas no dia seguinte. Inevitavelmente, veem-se menos detalhes a partir da Europa, mas tem-se uma ideia do panorama geral. A distância, diz-se, permite ter mais clareza.

Na Europa, geralmente me perguntam sobre três coisas: Jair Bolsonaro e sua guerra contra a razão e os bons costumes, a situação da epidemia de covid-19 no país e a destruição da Floresta Amazônica. Fica evidente como a imagem do Brasil no mundo mudou. Hoje, as pessoas olham com preocupação e incompreensão para a maior, mais populosa e mais forte economia da América Latina. E com frequência me perguntam como ainda consigo viver no Brasil. Muitos europeus não compreendem mais o país e estão decepcionados desde que ele passou a ser governado por um ultradireitista.


Quando cheguei ao Brasil, há quase dez anos, a percepção era diferente. Naquela época, o Brasil era considerado um país em plena ascensão econômica e mediador respeitado no cenário internacional. O Brasil tinha a imagem de país tolerante, e os brasileiros eram considerados pessoas de mente aberta, calorosas e generosas. E eu era invejado por poder viver e trabalhar no Rio nos anos seguintes. A inveja deu lugar à pena.

Raramente um país perdeu sua boa imagem no mundo de forma tão rápida e completa. O Brasil não levou nem dez anos para passar de mocinho a vilão.

Ninguém é mais responsável por este desgaste na imagem do Brasil do que o presidente Jair Bolsonaro. Na Europa, ele se tornou o símbolo do que é negativo e rejeitável no país. O que se nota aqui é que Bolsonaro está destruindo a floresta e faz de tudo para acabar com os povos indígenas. O desmatamento põe em perigo não só o futuro do Brasil, mas de todo o mundo. Através de sua política negligente e criminosa em relação ao coronavírus, ele está atrasando o fim da pandemia e aumentando o perigo de mutações do vírus. E ele enfraquece a jovem democracia brasileira com seus contínuos ataques e ameaças contra as instituições.

Naturalmente este panorama é bastante resumido, mas é o que muitas pessoas na Europa sabem hoje sobre o Brasil. São as temas sobre os quais sou questionado. O Brasil é visto como imprevisível e não é mais um parceiro confiável; não foi à toa que entrou na lista de países cujos cidadãos foram proibidos de entrar em nações da UE.

Eu mesmo vejo daqui um país triste. O Brasil é um país injusto, que gasta grande parte de sua energia em conflitos sociais improdutivos. Um país que destrói sistematicamente seu meio ambiente, seja por meio do desmatamento ou do uso excessivo de pesticidas. É um país onde pessoas negativas e insignificantes como Roberto Jefferson, Daniel Silveira ou os filhos de Bolsonaro dominam as notícias. Um país politicamente paralisado pela permanente disputa entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, incapaz de se modernizar. Um país onde o presidente, que já foi eleito muitas vezes pela urnas eletrônicas, alega que estas mesmas urnas foram e serão manipuladas - e até tem pessoas que o levam a sério.

Na Alemanha, está em andamento a campanha eleitoral antes do pleito geral de 26 de setembro. A questão mais importante é, de longe, a mudança climática. É a questão do século. O Brasil poderia desempenhar um papel fundamental para que se alcancem os objetivos climáticos ao proteger a Floresta Amazônica, impulsionar a expansão de energias alternativas ou ser pioneiro no desenvolvimento de uma agricultura mais sustentável e orgânica. Criaria assim numerosos empregos. O Brasil poderia ser estimado mundo afora. Em vez disso, as pessoas na Europa me perguntam: como você aguenta viver lá?
Philipp Lichterbeck

Recado ao Brasil

 




A pandemia da corrupção

Médicos, enfermeiros, técnicos, maqueiros e motoristas de ambulância ficaram meses sem receber salários. Hospitais de campanha funcionavam de forma precária, muitos sem leitos de UTI, respiradores mecânicos e com escasso oxigênio para atender aos casos mais graves de infecção pela Covid 19.

Enquanto isso, uma quadrilha montada por organizações sociais desviava mais de R$ 450 milhões no Estado do Pará, dinheiro que deveria ser empregado no combate à pandemia.

Essas são as principais conclusões da segunda etapa da Operação SOS, da Polícia Federal, no Estado do Pará, onde o dinheiro que deveria ser gasto para salvar vidas na maior pandemia em 100 anos transformou-se em fazendas de gado, helicóptero, aviões, apartamentos e carros importados.


A Operação Reditus, da PF, Receita Federal e Controladoria Geral da União (CGU) prendeu 61 pessoas e sequestrou bens avaliados em R$ 1 bilhão para tentar ressarcir o erário público. O rombo, segundo a PF, pode chegar a R$ 1,2 bilhão.

O “operador financeiro” da quadrilha, Nicolas André Morais, de 32 anos, conhecido como Gordo, chegou a movimentar R$ 100 milhões num posto de gasolina inativado de sua propriedade.

Gordo seria o elo de ligação entre os operadores de quatro organizações sociais e o governador do Pará, Helder Barbalho, que teria como organizador do esquema corrupto o chefe da Casa Civil do governo do Pará, Parcifal Pontes, preso pela PF na Operação SOS I, em setembro de 2020.

Parcifal seria o responsável por antecipar informações sobre as apurações da polícia para integrantes do governo e da quadrilha das OSs, como ocorreu na quinta-feira passada na operação de busca e apreensão realizada em apartamento de luxo no edifício Vasco da Gama, em Belém do Pará, que foi esvaziado antes da PF chegar.

Parsifal também usaria, segundo a PF, o cartão de crédito sem limites de Nicolas Morais, que coordenava a distribuição do dinheiro repassado pelo governo do Pará para as organizações sociais que administravam nove hospitais paraenses na pandemia.

Uma das OSs, o Instituto Panamericano de Gestão, que administrava o hospital de campanha de Santarém e o hospital regional de Itaituba, no oeste do Estado, recebeu em uma semana R$ 8 milhões do governo, nas teve que repassar R$ 5 milhões para a quadrilha.

O governador Helder Barbalho não foi alvo da Operação SOS II. Todos os relatórios envolvendo o governador – que tem foro privilegiado – foram desmembrados e encaminhados ao ministro Francisco Falcão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o foro competente para julgar governadores de Estado.

O Pará tem mais de 580 mil casos do novo coronavirus, registrando até 23 de agosto 16.365 óbitos.

Devastação e aquecimento podem fazer Brasil deixar de ser potência agrícola global

O Brasil viverá, nas próximas décadas, secas cada vez mais prolongadas, temperaturas mais altas e extremos climáticos que terão um profundo impacto na forma como sobrevivemos e produzimos energia e comida.

Na prática, o clima vai mudar tanto a vida nas cidades grandes quanto a produção agrícola - causando o risco de o Brasil perder o status de gigante global na produção de alimentos.

E a responsabilidade disso recai sobre o avanço do desmatamento, aliado às (e potencializado pelas) mudanças climáticas no mundo inteiro.


A avaliação é do cientista do clima Carlos Nobre, que já foi pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), coordena o Instituto Nacional de Tecnologia para Mudanças Climáticas e é um dos principais especialistas do tema no Brasil.

Nobre conversou com a BBC News Brasil para comentar os dados recém-divulgados pela organização MapBiomas, que mostram que a superfície de área com água no Brasil ficou 15% menor desde o início dos anos 1990 - esses 3,1 milhões de hectares perdidos equivalem a uma vez e meia à superfície de água de todo o Nordeste.

A maior perda (absoluta e proporcional) de superfície de água na série histórica analisada pelo MapBiomas ocorreu no Mato Grosso do Sul, com uma redução de 57%.

Enquanto isso, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais identificou que os focos de incêndio neste ano até agora cresceram, em relação ao mesmo período no ano passado, na Mata Atlântica, no Cerrado e na Caatinga - neste último, o aumento foi mais de 100%.

Na Amazônia, o Instituto Imazon aponta que o acumulado do desmatamento na floresta nos últimos 12 meses até julho atingiu a pior marca dos últimos dez anos.

Todos esses dados estão interligados: quanto mais avança o desmatamento - em conjunto com o aumento das temperaturas globais -, menores ficam as temporadas de chuva no Brasil.

"Há estudos que mostram claramente que as chuvas estão diminuindo em áreas altamente desmatadas, e as estações secas estão mais longas", explica Nobre.

"No sul da Amazônia, as secas já estão de três a quatro semanas mais longas, com menos chuvas e temperaturas cerca de 3°C mais altas."

O grande problema é que, em áreas desmatadas, perde-se a capacidade de reciclar água, o que intensifica as secas. "Há menos vegetação e raízes para absorver a água, transpirá-la e jogá-la de volta à atmosfera", diz o cientista.

Portanto, quanto mais incêndios e florestas derrubadas, mais seco e quente o clima ficará no curto e no longo prazo.

Embora ainda não seja possível saber se esses efeitos serão permanentes, a secura do clima vivida neste momento em grande parte do Brasil - parte de uma tendência já observada nos últimos anos - é uma espécie de "fotografia do que será o clima do Brasil no futuro", observa Nobre.

No "melhor dos cenários", diz ele, a redução das chuvas será de 10%.

"Mesmo que consigamos manter o máximo de aumento da temperatura (global) em 1,5°C, que é o plano mais ambicioso da Convenção das Mudanças Climáticas (o chamado Acordo de Paris), devemos estar preparados para uma estação de chuvas mais curta e uma estação de secas mais longa na maior parte do Brasil."

Os impactos disso foram observados pelo coordenador do MapBiomas água, Carlos Souza Jr.

"As evidências vindas do campo já indicam que as pessoas já começaram a sentir o impacto negativo com o aumento de queimadas, impacto na produção de alimentos, e na produção de energia, e até mesmo com o racionamento de água em grandes centros urbanos", afirmou Souza no comunicado emitido pela organização.

As regiões do Brasil a serem mais afetadas pelas secas prolongadas serão o Norte, o Centro-Oeste e o Nordeste, segundo Nobre.

No Nordeste, caso a temperatura global continue aumentando, o perigo é "mais de 50% da região virar um semi-deserto", em vez do semiárido atual, explica o cientista.

O alerta já havia sido dado, no início de agosto, pelo relatório mais recente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC na sigla em inglês):
"O Nordeste brasileiro é a área seca mais densamente povoada do mundo e é recorrentemente afetado por extremos climáticos", destacou o texto.

O impacto será direto na vida de ao menos 10 milhões de pessoas que vivem atualmente na agricultura e pecuária nordestinas. Isso porque um Nordeste semi-desértico "não terá agricultura como se pratica hoje. Poderia haver só um pouco de agricultura à beira do rio São Francisco, mas mesmo a vazão do São Francisco vai diminuir, afetando também o potencial de geração de energia elétrica", diz Nobre.

É um exemplo da crise hídrica vivida em todo o Brasil e que já impacta a produção de energia pelas hidrelétricas do país, leva a aumento nos custos das contas de luz pagas pelos consumidores e força o uso de usinas termelétricas - que, por sua vez, são mais poluentes e contribuem para mais emissão de gases do efeito estufa.

Enquanto isso, na Amazônia, o perigo identificado por pesquisadores como Carlos Nobre é com o iminente risco de a região virar uma savana - perdendo, portanto, as características únicas de uma floresta tropical.

"Vários estudos mostram que se continuarmos a desmatar, vamos passar do que chamamos de ponto de não retorno - um ponto irreversível de savanização", diz Nobre. Espécies animais e vegetais únicas do Brasil serão perdidas no processo. "Antes, víamos uma mega-seca a cada 20 anos na Amazônia; agora são duas secas por década."

Em julho, um estudo publicado na revista Nature, que teve participação do Inpe, apontou que, por conta do desmatamento e das queimadas, a Amazônia já está emitindo mais CO2 do que consegue absorver.

"Precisamos zerar o desmatamento a jato (rapidamente), em poucos anos, no que talvez seja o maior desafio que o Brasil pode enfrentar", opina Nobre.

Se sentimos (literalmente) no corpo os efeitos do clima mais seco na saúde, a produção agrícola também vai viver os impactos da escassez de água, explica Nobre.

"(Produção de) grãos, pecuária - toda essa estrutura que são importantes elementos econômicos (do Brasil) já está sendo prejudicada pelo aumento dos extremos climáticos", afirma.

"Por mais que empresas de pesquisas, universidades e Embrapa (agência de pesquisas agrícolas) tentem desenvolver variedades de grãos mais adaptadas a secas prolongadas e a temperaturas mais elevadas, o clima está ganhando a guerra. A agricultura tem que se preparar para isso", prossegue.

"E temos que torcer para (o aumento global da) temperatura não passar de 1,5°C, porque se nós continuarmos com este ritmo de emissões e não tivermos sucesso em zerá-las até 2050, na segunda metade do século, o Brasil tropical deixará de ser uma potência agrícola - ficará muito quente e seco e inapropriado para esse tipo de agricultura", prossegue.

Ele cita como exemplo a queda na produtividade da soja na região conhecida como Matopiba (que reúne Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) em decorrência do ar mais quente que tem sido soprado da Amazônia.

Boletim de julho da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) apontou efeitos mistos da crise hídrica no mês passado: de um lado, prejudicou a irrigação de lavouras; de outro, ajudou na maturação das safras de milho e algodão.

E se no centro e no norte do Brasil as chuvas ficarão mais escassas, a tendência é de que o mesmo não se repita em parte do Sudeste e Sul do país - que podem, na verdade, ver sua quantidade de chuvas aumentar nas próximas décadas, diz o pesquisador.

Com isso, essas regiões (onde o clima é, por si só, mais ameno que no restante do país, por sua localização geográfica) podem acabar ganhando força na produção agrícola nacional.

O que não significa, porém, que não sofrerão com os devastadores efeitos dos chamados eventos climáticos extremos, como chuvas torrenciais, secas prolongadas e ondas de calor.

Esses eventos climáticos têm se tornado mais frequentes em todo o mundo são também consequência direta do aquecimento global, como apontou o relatório do IPCC divulgado no início de agosto.

"Com o aumento gradual do nível do mar, os eventos extremos que ocorreram no passado apenas uma vez por século ocorrerão com mais frequência no futuro", disse, na ocasião do lançamento do relatório, Valérie Masson-Delmotte, copresidente do grupo de trabalho do IPCC que produziu o texto.

No Brasil, segundo Carlos Nobre, mesmo que - hipoteticamente - não houvesse um aquecimento global em curso no mundo, os sucessivos recordes de desmatamento na Amazônia e no Pantanal já estariam tendo impactos nocivos sobre o clima brasileiro.

Na prática, os dois fenômenos - desmatamento e aumento das temperaturas - têm ocorrido juntos, potencializando um ao outro.

"Mesmo no ano passado, quando a maioria dos países reduziu suas emissões (de gases do efeito estufa) por conta da pandemia, o Brasil aumentou suas emissões por culpa do desmatamento", diz Nobre.

Embora ele destaque que, nos últimos anos, o Brasil avançou em construir uma matriz energética mais limpa - cerca de 11% da nossa energia vem de fontes eólicas ou solares, diz ele -, o Brasil, até o momento, "está na contramão dos compromissos assumidos" de participar do esforço contra o aquecimento global.

O cerco a figuras religiosas no Brasil ultraconservador de Jair Bolsonaro

Dom Vicente, Frei Lorrane, Padre Júlio, Frei José Hélio, Padre Lino, Padre Leonardo. Eles não cabem apenas entre as paredes da Igreja. Em nome de Deus, dizem atualizar o evangelho e levá-lo aos mais pobres e oprimidos. Desbravam as periferias do Brasil para repartir alimento e acolher pessoas em situação vulnerável. Fome, frio, dor. A fé deles transcende os sacramentos para ganhar forma de denúncia ―contra as desigualdades, os desastres ambientais, o direito à moradia ou pela inclusão das minorias. Querem aplicar na vida atual os ensinamentos de Jesus Cristo, que também se revoltou com os vendedores ao redor do templo que lucravam com a fé. Movem-se pela comoção à dor alheia. São padres, freis e bispos empoderados pela Igreja em Saída que o papa Francisco tenta fortalecer desde o Vaticano ―uma corrente mais progressista, próxima às comunidades, forjada nos princípios da Teologia da Libertação e intrinsecamente latino-americana.

Mas a corrente bateu de frente com o Brasil conservador e fundamentalista que elegeu o presidente ultradireitista Jair Bolsonaro. O mesmo que, há poucos anos, afirmou que a maioria dos gays é fruto de consumo de drogas e que seria incapaz de amar um filho homossexual. O presidente que já chamou o programa Bolsa Família de “esmola” por gerar uma legião de acomodados, ou que disse que a população quilombola “nem para procriar serve mais”. O confronto com ideias como essas produziu ondas turbulentas que expõem a divisão dentro da Igreja católica brasileira, empurrada à autorreflexão enquanto perde fiéis para as vertentes evangélicas. Segundo o último censo disponível, de 2010, 64,6% dos brasileiros se declaravam católicos, contra 73,6% em 2000. Já os evangélicos, passaram de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010. Projeções mostram que o avanço evangélico continua, e com ele, a pregação conservadora.

Em nome do mesmo Deus, líderes religiosos passaram a ser chamados de satanistas, comunistas, esquerdopatas. E foram acusados de fazer uso político da fé. Entraram no foco das milícias digitais e da cultura do ódio, que assolam o país. Alguns temem pela própria vida e precisaram recorrer à Justiça e ao Estado por proteção física.

Freis Lorraine e José Hélio com um cartaz
que ganharam em uma manifestação contra Bolsonaro
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“Agem como se tivessem a posse da verdade da nossa fé. Falam que em vez de me preocupar com as almas, estou me preocupando com as coisas deste mundo”, define Dom Vicente de Paula Ferreira, de 50 anos, nomeado bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte pelo papa Francisco em 2017. Ele atua na pequena Brumadinho ―uma cidade de 40.000 habitantes no interior de Minas Gerais. Desde que uma barragem de mineração da Vale rompeu em Brumadinho há dois anos e arrastou centenas de vidas em um mar de lama, ele atua junto aos familiares das vítimas. Chegou a ser ovacionado ao organizar campanhas de doação. Mas quando ergueu a voz contra “a economia que mata” em busca de responsabilizar os culpados por uma das maiores tragédias ambientais brasileiras, virou foco de críticas. “Por quê?”, questiona. “Não basta a gente ficar somente na caridade de ajudar o outro, é preciso denunciar porque as pessoas morreram. Não estavam aceitando essa voz profética de denúncia.”

Dom Vicente raramente sai desacompanhado, evita dirigir sozinho à noite e pensa mil vezes antes de decidir se participará de alguma manifestação popular. Já ouviu que não merece respeito porque é contra Bolsonaro e que será içado às portas do inferno junto com sua igreja progressista. Vez por outra, recebe pacotes com ameaças à sua integridade física cujos detalhes prefere não revelar. “Falam que sou um comunista, coisa do satanás, que estou dividindo a igreja. Mandam ir para Cuba, para a Venezuela. Mas a gente está focando na doutrina social da igreja, no que o próprio papa Francisco nos pede”, defende. Dom Vicente calcula bem a repercussão de sua voz antes que as palavras lhe saltem da boca. Tenta evitar ser mal interpretado em um país em combustão política como o Brasil, muitas vezes em vão. “O senhor tem medo?”, pergunto. “Claro!”

Mas ameaça e intimidação mesmo só vieram mais recentemente, quando Dom Vicente passou a usar suas redes sociais para criticar a política errática de Bolsonaro na pandemia. Chamou o presidente de “fascista”, defendeu o impeachment contra “o desgoverno da morte” quando o Brasil superou as 550.000 mortes por covid-19. Ironizou a fala do presidente de que só Deus lhe tiraria do cargo. “Não tardes, senhor”, clamou o religioso no Twitter. Não demorou para que seu nome fosse jogado ao centro de uma campanha de destruição de reputação encampada por grupos da ala mais conservadora da Igreja católica, que acreditam que somente cultuando Deus dentro da igreja é possível alcançar o paraíso.

O Centro Dom Bosco, um grupo católica tradicional, que, segundo sua própria definição, visa “resgatar o que foi perdido por causa do modernismo e das diversas infiltrações na estrutura eclesiástica”― publicou em junho vídeos com falas cortadas do religioso. Pintava-o como “extremista” e o acusava de doutrinar futuros sacerdotes. Conclamava fiéis para deixar “suas insatisfações” nas redes sociais de Dom Vicente. Veio uma enxurrada de ameaças e xingamentos anônimos. O centro conta com um canal no Youtube onde apontam o dedo para os padres progressistas.

Dezenas de entidades religiosas ou não então emitiram uma nota solidária a Dom Vicente, que o grupo respondeu com ironia: “Vossa excelência é um grande defensor das árvores, dos coletivos LGBT, do MST (...). Aguardamos ansiosamente o dia em que Vossa Excelência se torne um denodado defensor de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Santa Igreja Católica, fora da qual não há salvação”.

Dom Vicente se enxerga no meio de uma cruzada. De um lado, os “detentores da verdadeira família”, que já têm um certo bem-estar social. Do outro, milhares passando fome. A decisão lhe parece fácil. “Isto é o contrário do que eu chamo de Reino de Deus: ter privilegiados”, diz. ”Acho que tem muita máquina de internet, de fazer discípulos. A política descobriu que pode ter um grande aliado na religião”, lamenta.

A mais de 2.000 de quilômetros dali, o Frei Flavio Lorrane Clementino de Almeida, de 27 anos, caminha pelo jardim central da Paróquia Nossa Senhora de Lourdes, em Fortaleza. Acomoda sobre a cabeça um chapéu de couro estilizado que chama a atenção junto ao hábito marrom com os três nós de seus votos religiosos: nada de próprio, castidade e obediência. Nascido em Triunfo, interior de Pernambuco, Lorrane é um frei que não quer ser padre nem celebrar missas. É como uma antítese do que defende uma ala conservadora do catolicismo de que só pelos sacramentos se garante o céu. A missão que ele abraçou é a de trabalhar junto à comunidade.

Inspirado por São Francisco, tenta amenizar o sofrimento do próximo. Atua com migrantes, população em situação de rua, recicladores. “Escolhi uma vida de doação para que o amor que eu tenho seja compartilhado”, ele diz. É por isso que uma vez por mês participa de encontros religiosos com a comunidade LGBT+, sempre em locais não divulgados por medo de represálias e atentados, já que atua no país das Américas que mais mata essa população, segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB), que contabilizou ao menos 237 mortes por conta da violência LGBTfóbica em 2020. “Somos presença aos que só querem trabalhar sua espiritualidade. Quando um religioso está com eles, percebem que Deus também está”, explica.

No mês passado, o frei decidiu participar da ocupação de um centro de referência LGBT de Fortaleza, uma forma de cobrar da prefeitura maior atenção ao equipamento responsável pela defesa dos direitos deste público. Acabou hostilizado nas redes sociais. Páginas religiosas mais conservadoras passaram a publicar imagens suas e questionar se até seu nome ―Lorrane― não seria feminino demais para um frei. No Instagram, onde é mais atuante, multiplicam-se as mensagens de ódio e ameaças, muitas delas usando trechos da bíblia. “Agora eles estão mais agressivos”, conta. “Querem derrubar as pessoas pela sua moral, por isso dizem que meu nome é sugestivo, que pertenço à comunidade LGBT.”

Frei Lorrane costuma receber mensagens do tipo: “Tome cuidado. Muitos já morreram” ou “Quero te encontrar para mostrar a verdade. Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Também são comuns ligações para a secretaria da paróquia perguntando os horários e dias que ele celebrará missas. “Não vão achar porque eu não celebro, mas o que está acontecendo é muito sério. E pior: também vem de dentro da igreja”, critica.

Frei José Hélio Vieira da Silva, de 26 anos, atua junto ao Frei Lorrane, mas tenta manter-se mais à margem das redes sociais e por isso acredita sofrer menos ataques, ainda que eles estejam ao seu redor. “Insinuam que somos burros e querem dar uma aula da doutrina. Mas somos seguidores do Evangelho”, diz. Os dois frades viralizaram na internet com uma fotografia em uma manifestação contra Bolsonaro na qual erguiam um cartaz “Se Bolsonaro está certo, Jesus estava errado”. Compartilhada à exaustão nas redes sociais, a imagem não foi planejada, mas fruto de um pedido do casal que produziu o letreiro. Mas foi compartilhada até por famosos cheios de seguidores como Tico Santa Cruz e Xuxa. “Virei paquito”, brinca o frei Lorrane. Chamou tanta atenção entre o público do protesto que eles ganharam o cartaz, agora guardado na casa dos frades. “Tentam dar a ideia de que o lado certo do cristão é o bolsonarista conservador. Estamos aqui para dizer que não”, diz José Hélio com assertividade.

Ele conta que o tom dos ataques ganhou força há mais tempo, quando postaram uma foto com uma bandeira do Movimento Sem Terra (MST). O grupo historicamente mantém vínculos com religiosos e setores da Igreja que trabalham no amparo aos mais pobres. “As reações a essa foto mostram que as pessoas não sabem da nossa vida. Eles têm uma imagem ultrapassada dos frades menores”, pondera. Nas redes sociais, acusavam-os de comunistas e diziam que eles deviam se preocupar apenas em rezar missas. Os dois religiosos, porém, são freis-irmãos e atuam junto às comunidades, dialogando com vários movimentos sociais. Frei José Hélio defende que o país não pode se render ao ódio e que o pontificado de Francisco faz bem à igreja brasileira, agora imersa em uma disputa de narrativas à flor da pele. “Mesmo diante de tantos ataques, novos rumos estão sendo redefinidos”, acredita. “As pessoas estão procurando religiões alternativas. Por quê? Precisamos nos perguntar porque estão saindo do catolicismo se temos uma cultura tão forte.”

Padre Lino Allegri retirava a batina depois de uma missa em uma manhã de domingo quando cerca de dez militares e empresários adentraram na sacristia da Igreja da Paz, uma paróquia localizada em uma ilha bolsonarista de Fortaleza. Já chegaram aos berros, inconformados com o sermão do padre de 82 anos que lamentava as vítimas da covid-19 e apontava a responsabilidade do presidente no caminho trágico da crise sanitária. “O senhor desrespeitou o nosso presidente, que foi eleito por nós e é cristão, honesto e bom”, bradou uma mulher. Eles mandavam o italiano com cidadania brasileira voltar ao seu país e o acusavam de ser esquerdopata. Na semana seguinte, Allegri viu formar-se contra si uma espécie de patrulha aos seus sermões. O grupo passou a ir à igreja vestido de camisas verde-amarelas, algumas com o nome do presidente escrito nas costas. Todos pareciam tão prontos para reagir caso o padre voltasse a criticar o Governo que, do lado de fora, policiais militares precisaram montar vigília para evitar que a situação saísse do controle.

Enquanto Padre Lino cancelou uma celebração naquela igreja por sua própria segurança, o grupo comemorava o sucesso do boicote em áudios no Whatsapp. “Estava cheio de general, coronel, foram todos de verde-amarelo. Não apareceu um dos vermelhos. Os padres pediram arrego”, dizia um integrante. “Botamos os comunistas pra correr”, emenda no mesmo áudio. As ameaças e xingamentos não foram poupadas nem dentro da própria Igreja da Paz. “Este padre transformou o altar em um palanque político”, bradou um militar durante uma missa celebrada por outro padre, Oliveira Braga Rodrigues, quando foi lida uma nota em apoio a Allegri.

“Foi uma intimidação”, define ele. “O presidente criou uma situação de antagonismo e ódio”, acrescenta, com receio de que a situação piore com as eleições do ano que vem. O vocabulário usado pelos cristãos mais conservadores contra os padres progressistas é vasto: “satanista”, “comunista safado”, “picareta”, “imbecil”, “desagregador”, “comunista com a batina de padre”. Mas há ameaças mais sérias que empurraram os padres Lino Allegri e Oliveira para o programa de proteção aos defensores dos direitos humanos do Ceará. Ambos precisaram recorrer ao Estado para enfrentar a cultura de ódio que vem ganhando força no país em um conflito duplo: a polarização política brasileira e a divisão que tem se intensificado dentro do próprio catolicismo entre os adeptos da Igreja em Saída do papa Francisco e os conservadores e fundamentalistas. Os religiosos contam que conflitos sempre existiram, mas nos últimos anos, eles têm alcançado um patamar perigoso.

“O primeiro passo para entender este contexto é lembrar que a América Latina produziu uma teologia própria, da libertação, que nunca foi bem compreendida pela igreja. Sofreu embate nos papados de João Paulo II e Bento XVI”, explica o padre Leonardo Lucian Dall Osto, doutorando em Teologia Dogmática na Universidade Gregoriana de Roma. Quando o papa Francisco assumiu, nomeou uma série de novos bispos e estimulou uma visão mais crítica da realidade depois de cerca de três décadas de desconstrução desta teologia. Surgida nos anos 1960, ela faz uma reinterpretação da fé cristã e prega que a Igreja deve servir aos mais pobres, que devem ser libertados de injustas condições econômicas, políticas e sociais. No Brasil, o maior expoente dessa corrente, vinculada à esquerda política e ao marxismo, é o teólogo Leonardo Boff. No período em que foi censurada, durante os papados de João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI (2005-2013), houve crescimento das igrejas evangélicas neopetencostais e dos grupos pentecostais na Igreja católica, estes últimos agora estão se unindo ao movimento tradicionalista da igreja que nunca assumiu as causas do Concílio Vaticano II ―uma série de conferências realizadas entre 1962 e 1965 para modernizar o catolicismo.

Padre Leonardo explica, por telefone, os meandros internos destes conflitos olhando para a própria trajetória. Está a menos de dois anos em Roma, mas antes disso atuava na diocese de Caxias do Sul, no interior do Rio Grande do Sul. Foi lá que começou a sofrer ataques ainda durante o processo de impeachment contra a ex-presidenta Dilma Rousseff. Naquela época, em 2016, já criticava os elogios do então deputado Jair Bolsonaro ao torturador Brilhante Ustra. Desde então, os ataques nunca cessaram completamente, mas ganharam mais força nos últimos dois anos, tanto a partir de pessoas individualmente quanto de grupos que se organizam para atacar. “Temos denunciado essa religiosidade instrumentalizada para fins políticos”, alega Leonardo. Toda semana, ele posta nas redes um vídeo de cinco minutos sobre temas da atualidade. Há um mês, enfrentou a fúria de grupos conservadores por defender uma nova visão da igreja sobre a homossexualidade. “Há uma fúria de ódio irracional”, aponta. Além de ameaças e xingamentos de anônimos nas redes sociais, grupos religiosos mais conservadores compartilharam vídeos contra ele. Usavam suas falas para pintá-lo como “extremista” e acusá-lo de fazer “apologia” à homossexualidade. Nos comentários nas redes sociais, pediam sua excomungação, diziam que o inferno o aguarda e o taxavam de “anticatólico”. Padre Leonardo também já sofreu ameaças à sua integridade física e teve seu nome enviado à nunciatura, uma espécie de embaixada do Vaticano.

Se, como diz Leonardo Boff, a igreja sempre fez política, mas uma política de direita, agora os padres reivindicam o direito de expor críticas sociais ainda que não façam necessariamente política partidária. Nas eleições de 2018, dois grupos foram criados para fazer frente ao ultraconservadorismo bolsonarista e contam hoje com cerca de 250 padres. “Nos organizamos para fazer uma denúncia pública contra projetos populistas e as falas que contrariam os preceitos do Evangelho”, explica o padre gaúcho. Uma carta foi enviada ao Papa, que precisou se posicionar durante a campanha da Fraternidade deste ano, que defendia o diálogo inter-religioso. Papa Francisco afirmou que os cristãos devem ser os primeiros a dar exemplo e defendeu que é tempo de superar os obstáculos de um mundo que é muitas vezes “um mundo surdo”. “Quando nos dispomos ao diálogo, estabelecemos ‘um paradigma de atitude receptiva, de quem supera o narcisismo e acolhe o outro’”, defendeu.

Para o Padre Júlio Lancellotti (São Paulo, 1948), Jesus não está na Igreja, mas sim “debaixo do viaduto”, entre aqueles que moram nas ruas e mais precisam de acolhimento. Vigário episcopal para a população de rua da Arquidiocese de São Paulo, Lancellotti possui um entendimento sobre o papel da Igreja que desde sempre resulta em ameaças, incluindo as de morte, dos grupos mais retrógrados da sociedade. “São constantes. Há momentos piores que outros, de ameaças bastante explícitas”, conta ele. A chegada de Bolsonaro ao poder e a ascensão da extrema direita, conta ele, tornaram o ambiente “super ameaçador”. A partir de 2018, mensagens como “morte ao padreco” se tornaram mais frequentes. A saída foi acionar o Ministério Público e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que cobrou, em 2019, medidas cautelares das autoridades brasileiras para proteger o padre.

Os embates públicos também são frequentes. O último deles ocorreu no último fim de semana com a deputada estadual Janaína Paschoal (PSL-SP), alçada à política por liderar juridicamente o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) e se portar como defensora do conservadorismo. A parlamentar, que em seu Twitter usa uma foto abraçada a Jesus Cristo, acusou o padre nas redes sociais de alimentar o vício e o crime ao distribuir alimentos pela Cracolândia, área do centro de São Paulo onde centenas de pessoas vivem e usam drogas ilícitas, sobretudo o crack. Na ocasião, os voluntários mobilizados por Lancellotti também haviam sido barrados pela polícia ao entrar naquela zona.

Paschoal acabou despertando um efeito contrário, que resultou num aumento de 10% das doações em dinheiro para as ações da Igreja São Miguel Arcanjo, da qual é pároco. “Mas também acendeu vários focos de ataque, com várias pessoas dizendo que estou sustentando vagabundo”, afirma Lancellotti. As críticas de Paschoal vieram num momento de visível aumento da população de rua em São Paulo, por conta da pandemia e da grave crise econômica e social vivida pelo país. Ao mesmo tempo, moradores e comerciantes de bairros paulistanos já se organizam num coletivo chamado Moradores Sem Rua para “reivindicar o direito à cidade, usurpado por parte daqueles que vivem nas ruas”, exigindo, numa lógica eugenista, que sejam retirados pelo poder público.

Lancellotti acorda cedo todos os dias porque a população que mora nas ruas de São Paulo não pode esperar. Antes da pandemia, costumava servir um café da manhã na Igreja São Miguel Arcanjo, na zona leste de São Paulo, para cerca de 200 pessoas. Com o aumento da demanda, transferiu suas atividades matutinas para o Núcleo de Convivência São Martinho de Lima, da prefeitura. De volta a sua paróquia, espécie de quartel-general, distribui roupas limpas e cestas básicas, recebidas meio de doações. Voluntários mobilizados pelo padre também andam pelas ruas da cidade distribuindo cobertores e alimentos, sobretudo nos dias de frio. “A situação deles já é bastante precária, e tanto o frio como a pandemia só agravam a situação. É uma população que aumenta, e com isso também aumentam as dificuldades, a exposição e os riscos”, afirma. Costuma dizer que não trabalha com os “irmãos de rua”, e sim que convive com eles. Também diz que não consegue “viver a dimensão religiosa sem humanizar a vida”, mas que isso também gera conflitos numa sociedade tão desigual como a brasileira.

Ativo nas redes sociais, Lancellotti conta com o respaldo de figuras públicas diversas e, por vezes, até de autoridades municipais e estaduais, por mais que seja incômodo seu trabalho de apontar para as falhas nas políticas públicas —no início deste ano, quebrou a marretadas as pedras instaladas pela Prefeitura debaixo de viadutos para afastar a população de rua. No ano passado, recebeu uma ligação de papa Francisco pedindo que ele “não desanimasse” e citou seu trabalho em discurso no Vaticano. Para o padre de 72 anos, desanimar não é opção. Mas não enxerga um caminho fácil. “Esses grupos que ameaçam são uma rede que promove artimanhas”, explica. “Dentro dessa estratégia da retórica do ódio, eles buscam desqualificar as pessoas que estão no campo contrário.”

É um caminho árduo no Brasil da intolerância política e da cultura do ódio. A igreja católica, que já vinha perdendo adeptos nos últimos anos, está dividida entre os que abraçam uma linha de ação com os pés na realidade e os que defendem o culto individual a Deus para alcançar os céus. Mesmo na hierarquia, há muitos que não seguem o papa Francisco. Perseverar entre tantas fraturas é o desafio de Dom Vicente, Frei Lorrane, Padre Júlio, Frei José Hélio, Padre Lino, Padre Leonardo.

Bolsonaro confia estar governando uma República dos Bananas

Quando os governadores se reuniram na segunda-feira, a partir de Brasília, um pedido de impeachment do ministro do Supremo Alexandre de Moraes, enviado ao Senado por Jair Bolsonaro, esperava na gaveta por uma resposta do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Em São Paulo, um coronel da ativa, comandante de sete batalhões com 5 mil homens da Polícia Militar em 78 municípios do estado era afastado pelo governador João Doria (PSDB).

Ele se manifestara politicamente, o que é vedado aos militares, atacando o STF e o próprio Doria e insuflando, nas redes sociais, a participação em atos bolsonaristas previstos para 7 de setembro</a>. O risco de ruptura ocupava as mentes de figuras de proa do Judiciário, do Legislativo e até do Executivo. Daí por que o encontro de governadores que previa discutir temas mais práticos, como a reforma tributária, acabou girando em torno das ameaças à democracia feitas por Bolsonaro. Mal se começou a discutir a ideia de uma carta conjunta contra os arroubos golpistas do presidente, a coisa desandou.

O governador de Santa Catarina, Carlos Moisés (PSL), apelou para a abertura de um diálogo com o presidente. O mineiro Romeu Zema (Novo) completou:

— (Se) ficar mandando pedra mais uma vez, nós vamos cair nessa vala da polarização de que estamos só seguindo caminhos opostos e cada vez mais distantes.

Ronaldo Caiado (DEM), de Goiás, apoiou. Não adiantou o governador do Maranhão, Flávio Dino (PSB), apelar, dizendo que “o silêncio pode significar a omissão dos bons” ou mesmo conivência. Nem lembrar que, passado o golpe de 1964, “todos os governadores sofreram, sem exceção, inclusive os que haviam apoiado a ruptura antidemocrática”.


Ao final, a carta enfática em defesa da democracia virou um pedido de reunião com Jair Bolsonaro. Ele, porém, deu de ombros. Por meio de seus ministros palacianos, já mandou dizer que só se encontrará com governadores aliados, porque não quer dar palco para os outros fazerem proselitismo em cima dele. Ou seja, mandou a proposta de diálogo para a “vala da polarização”.

No Senado, no dia seguinte, o procurador-geral da República, Augusto Aras, protagonizou um espetáculo. Disse que bate, sim, no presidente da República, mas listou uma série de apurações internas que não deram em nada. Para justificar por que afinal não aplicou sequer uma multa a Bolsonaro por não usar máscara e promover aglomerações na pandemia, Aras lançou uma pérola: 
Em pedido de liminar ao STF, subprocuradores acusam Aras de interceptar notícia-crime contra si próprio.

— Não tenho dúvida da ilicitude, de que há multa, mas também não tenho dúvida de que, num sistema em que vige o Direito Penal despenalizador, falar em crime pode ser extremamente perigoso.

Ora, o que pode haver de perigoso em aplicar a lei? Se o próprio procurador-geral da República opinou em processos no STF a favor de multas e sanções para quem desrespeitasse a obrigatoriedade do uso da máscara? Talvez a melhor resposta esteja no termo “perigoso”. Para Aras, é perigoso afrontar o “sistema e criminalizar a política”, mesmo que os políticos cometam crimes.

Os governadores voltaram a seus dilemas locais, buscando formas de monitorar e evitar maiores problemas no 7 de setembro. O procurador-geral da República saiu do Senado reconduzido, alisado e bajulado indistintamente por governo e oposição. Pelo menos o senador Rodrigo Pacheco rejeitou o pedido de impeachment do ministro Moraes, como esperado. Com seu gesto, jogou água na fervura da crise, mas sabemos que o alívio só dura até a próxima provocação.

A raiz do problema, porém, permanece. Parece que se estabeleceu um consenso tácito — em estrato relevante da classe política e do próprio sistema de Justiça — de que realmente é perigoso seguir a lei no Brasil. Que é perigoso se posicionar a favor da democracia. Que é melhor não irritar o presidente da República para não causar ainda mais tumulto.

Parecem confortáveis numa espécie de acomodação bem abrasileirada, em que as mesmas pessoas que num dia garantem não haver risco de golpe, no dia seguinte afirmam que afrontar Bolsonaro seria “perigoso”. Vamos ignorá-lo, sugerem alguns. Vamos contê-lo, promete o Centrão, que a cada semana recebe uma prova de que não está dando muito certo. Só não vamos provocar o maluco. É perigoso.

Enquanto isso, Bolsonaro segue seu jogo, que — admitamos — é transparente e aberto. E que dificilmente chegará ao almejado golpe, mas fará muito estrago no caminho. Vai ver estamos esperando muito de nossas lideranças políticas, e quem está certo é o presidente, que obviamente confia estar comandando não uma República de bananas, mas sim a República dos bananas.