segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Pensamento do Dia

 


Os limites da guerra

Em 1209, a população de Béziers, na França, foi massacrada. As cruzadas, a mando do Papa Inocêncio III, realizaram a tarefa. O representante do Papa, Arnaud Amalric, incapaz de distinguir hereges e religiosos, disse a frase que entrou para a História:

— Matem todos, Deus reconhecerá os seus.

A questão da morte de inocentes em guerra perpassa os séculos. Depois da Segunda Guerra, houve grandes julgamentos: Nuremberg e Tóquio. As potências ocidentais passaram a sensação de que as leis humanitárias internacionais seriam respeitadas a partir daquele momento.

Depois disso, vieram conflitos no Vietnã, Afeganistão, Iraque, e os americanos não foram julgados. De nada adiantaria, pois não aceitam o Estatuto de Roma, muito menos um tribunal internacional.

No entanto, em 2022, em Dublin, Estados Unidos, Brasil e mais 81 países firmaram um importante documento de proteção a civis durante uma guerra. O compromisso é não apenas restringir bombardeios que possam matar inocentes, mas reparar os possíveis danos colaterais.

Israel não assinou o documento. Mas poderia ser levado pelos Estados Unidos a considerar cada vez mais a questão de poupar vidas. Há um longo caminho subjetivo para chegar lá. É importante contestar a tese de que não existem inocentes em Gaza e de que mesmo as crianças são educadas para odiar. Da mesma forma, é essencial ver Israel como uma sociedade diversa, em que nem todos partilham a ideia de povo prometido ou mesmo da supremacia judaica.

As próprias organizações terroristas tornaram-se mais frias e cruéis que no passado. Há algum tempo, Moacyr Góes encenou a peça de Camus “Os justos”. Participei de um debate sobre ela em que se discutia o adiamento de um atentado ao arquiduque por causa das crianças na carruagem.

Os estigmas que a guerra produz em massa estão chegando ao Brasil. Há uma ideia de que a Tríplice Fronteira é uma retaguarda de terroristas. Essa ideia foi inspirada nas investigações da CIA e do Mossad. De fato, houve um caso de colaboração financeira com o Hezbollah. De fato, andando pelas ruas de Foz de Iguaçu, sente-se a presença forte da colônia árabe, assim como nos hotéis de luxo inúmeros visitantes muçulmanos são vistos no saguão.

Mas a colônia árabe em Foz do Iguaçu parece perfeitamente integrada ao clima pacífico do Brasil. Durante a guerra, não houve manifestações de rua como em Londres ou Paris. Nessas capitais europeias, o apoio aos palestinos é muito evidente. Em algumas concentrações, as pessoas chegam a gritar o slogan “From the river to the sea”, a geografia de um Estado árabe que vai do Rio Jordão ao Mediterrâneo, portanto, suprimindo Israel.

Tenho lido artigos em jornais londrinos criticando as organizações muçulmanas, como o Conselho Muçulmano Britânico. Na França, houve proibição de manifestações porque elas associavam o terrorismo do Hamas aos palestinos. Rigorosamente, portanto, as capitais europeias são um centro de apoio à causa palestina muito mais ativo, rumoroso e radical. No entanto não há o estigma, como não poderia haver, de associá-las ao terrorismo

Digo isso tudo porque fui à Tríplice Fronteira, falei com muita gente, e a maioria não entende por que se suspeita tanto da região, mergulhada em seu cotidiano e vivendo a relativa harmonia da vida no Brasil. Não significa que não se deva investigar. Pelo contrário, se o Hezbollah pensou em fazer atentados no Brasil, é algo muito sério em termos de relações internacionais.

O Hezbollah depende do Irã, que sempre recebeu um tratamento respeitoso do Brasil. Recentemente, um porta-helicópteros e uma fragata do Irã atracaram no Rio. Houve críticas dos Estados Unidos e de Israel. Esse período de guerra se apresenta também como um campo minado, no campo subjetivo.

É preciso andar com muito cuidado, pois, se as guerras ainda aniquilam vidas civis, preconceitos servem para racionalizar o massacre. No calor da paixões, contribuímos inconscientemente, às vezes, para que frases do tipo “matem todos” não desapareçam da história da humanidade.

'Tudo que posso dizer é que esperamos a morte a cada segundo'

“Eu não consigo encontrar as palavras. Tudo o que posso dizer é que esperamos a morte a cada segundo”, mensagens do nosso colega Rewaa via WhatsApp. As famílias em Gaza estão a tomar decisões diárias que nenhum de nós, sentados no conforto das nossas casas, pode compreender: ficar lá ou apostar na mudança para outro lugar, permanecer juntos ou separados, morrer como uma unidade ou permitir que a linhagem familiar tenha a melhor oportunidade de perdurar. . Até mesmo sair para comprar pão para barrigas desnutridas, ou viajar para a fronteira numa ambulância para evacuação médica urgente, traz agora o risco muito real de morte.


Rewaa é uma enfermeira qualificada que acabou de concluir seu treinamento em cuidados paliativos. O seu marido, Ahmed, trabalha como coordenador de educação no Hospital da Amizade Turco-Palestina. Apenas um dia antes do início da guerra, Rewaa e Ahmed deram as boas-vindas ao seu segundo filho, uma linda menina. A mãe de Rewaa ficou com eles para ajudar, mas voltou para casa, para Khan Yunis, quando a guerra começou: “Todos os dias ela me pedia para ir à casa deles porque é uma área mais segura”, escreve Rewaa. Rewaa e Ahmed optaram por permanecer na sua casa em Deir al-Balah, no centro de Gaza .

Numa mensagem dolorosa, Rewaa continua: “Às 5h30 da manhã do dia 27 de outubro, Ahmed recebeu um telefonema da minha irmã. A casa da família em Khan Yunis foi bombardeada e eles não puderam sair porque estavam presos sob as paredes e o fogo estava por toda parte. Ele ouviu vozes da minha família gritando e das crianças chorando.” A linha telefônica foi cortada. Os blecautes de comunicação tornaram ainda mais difícil para as famílias alcançar o suporte vital de ambulância, contatar os vizinhos para obter ajuda ou ouvir o destino de seus entes queridos.

À medida que a notícia foi sendo divulgada horas depois, a extensão das perdas e ferimentos angustiantes para a família de Rewaa que vivia em uma área supostamente segura tornou-se clara: “Minha mãe tem 70% de queimaduras, minha irmã tem 40% de queimaduras de terceiro grau, meu irmão tem fraturas no ambas as pernas, meu pai tem queimaduras no rosto e nas mãos. Meu parente morreu com sua esposa e três filhos. Três sobreviveram, mas um teve as duas pernas amputadas.” E depois a notícia mais traumática: “Perdi minha amiga e parente que estava grávida na mesma época que eu. Ela morreu com seus filhos de 10, 8, 6 e 10 horas. Sim, ela deu à luz o bebê e eles morreram juntos 10 horas depois.”

‘Famílias querem morrer juntas’ em Gaza

A primeira ligação informando a Fares Alghoul que a casa de um parente havia sido atingida por um ataque aéreo israelense chegou na noite de sexta-feira. A Internet em Gaza foi cortada momentos depois, obrigando-o a esperar 12 horas para saber os nomes dos 18 mortos. Ele teria que esperar ainda mais pela confirmação de que outros 18 familiares presos sob os escombros também haviam sido mortos, elevando o número de mortos de sua família para 36.

Como jornalista, Alghoul cobriu todas as guerras anteriores de Gaza, mas agora vive no Canadá, onde teve de observar à distância a extinção de gerações da sua família.

As famílias que sofrem perdas tão grandes tornaram-se uma característica do actual bombardeamento de Gaza. De acordo com as últimas estatísticas fornecidas pelo Ministério da Saúde palestino no território, 312 famílias perderam 10 ou mais membros.


Pelo menos 70% da população de Gaza foi deslocada, segundo a ONU , e muitas famílias agruparam-se, aglomerando dezenas delas nas suas casas, na esperança de poderem evitar o pesado bombardeamento ou, pelo menos, reunir recursos cada vez mais escassos, como água, combustível e comida.

“Dias depois, perdi as minhas três sobrinhas, com idades entre os 10 e os 16 anos, quando foram mortas com o pai na sua casa na Cidade de Gaza. Minha irmã estava em Deir al-Balah com minha mãe – foi assim que ela sobreviveu”, disse Alghoul.

“Você não tem tempo para processar seu medo e tristeza porque sempre espera que o pior esteja por vir. Mesmo que você perca familiares, você adia suas condolências”, disse ele. “Você gostaria que as pessoas não lhe enviassem condolências porque você não sabe quando as próximas [mortes] virão.”

A Airwars, que monitoriza os danos causados a civis durante conflitos, lançou recentemente uma base de dados de vítimas que está em constante atualização, mas que já acumulou vários casos envolvendo a morte de dezenas de pessoas num único incidente.

A organização registou relatos de até 69 pessoas mortas na sequência de um ataque aéreo perto de um mercado no campo de refugiados de Jabalia, incluindo 13 pessoas na casa de Abu Ashkian, em 9 de Outubro. Registou 16 membros da família al-Nabahin mortos em 8 de outubro e 25 membros da família do cirurgião Dr. Medhat Mahmoud Saidam em 14 de outubro.

Israel contra Israel

O dicionário deixa clara a diferença entre os verbos explicar e justificar. O primeiro diz respeito a decisões lógicas, o outro, a gestos morais. Alguns podem explicar o ato terrorista do Hamas em 7 de outubro como reação a décadas de ocupação do território palestino, mas não há como justificar moralmente o crime de atirar contra pessoas desarmadas e indefesas, jovens se divertindo, crianças dormindo, idosos em visitas familiares e sequestrar reféns. Da mesma forma, as ações do governo de Israel podem ser explicadas como reação ao assassinato de seus cidadãos indefesos, mas não há como justificar o uso de sua poderosa máquina de guerra para atacar os milhões de moradores em Gaza, destruindo suas escolas, hospitais e moradias. Cada lado pode ter explicação lógica, mas nenhum tem justificativa moral. O ato terrorista do Hamas no sul de Israel e o bombardeio de Gaza pelas forças armadas de Israel ficarão registradas para sempre nos livros de história como crimes contra a humanidade.


A diferença é que o Hamas não tinha preocupação com imagem, nem com longo prazo. Para eles, o bombardeio de Gaza é explicável, para Israel, é um equívoco por causa das consequências para seus próprios interesses no longo prazo. O Hamas cometeu crime moral contra a humanidade, mas conseguiu a indecente vitória de mostrar os bombardeiros e tanques de Israel transformando Gaza em escombros, soterrando crianças, produzindo imagens do primeiro genocídio filmado e divulgado mundialmente, identificado.

Os terroristas não têm Estado, não são estadistas, depois de enterrados desaparecem, alguns viram heróis para jovens, que certamente vão repetir seus gestos tresloucados. Eles sabiam que o assassinato de israelenses não promoveria a independência da Palestina, ainda menos de Gaza. Desejavam que a reação de Israel fabricasse milhões de novos Hamas, ainda mais violentos, com apoio dos palestinos que sobreviverem e de seus descendentes. Cometeram um obsceno acerto com seu ato criminoso. O Hamas teria fracassado se o governo de Israel usasse o ato terrorista para criar um movimento internacional de apoio ao sionismo e contra o terror, e usasse a competência militar para eliminar aos criminosos sem assassinar crianças, destruir uma cidade, perseguir e maltratar um povo.

Não há justificativa moral para o terror dos tiros do Hamas contra israelenses nem para o terror dos bombardeios de Israel contra a população de Gaza, mas foi Israel quem perdeu ao errar logicamente. A bomba atômica sobre Hiroshima foi um gigantesco crime contra a humanidade, mas não foi um erro lógico, porque apressou o fim da guerra por alguns dias.

O bombardeio de Dresden foi tão violento quanto o de Gaza, mas não foi erro, porque levou ao fim do nazismo, à descoberta dos campos de concentração e do holocausto, ao surgimento de solidariedade mundial com os judeus e até à criação de um Estado para eles. A destruição de Gaza é um pecado do tamanho de Dresden, mas também um erro porque dos seus escombros surgirão mais ameaças contra Israel e judeus no mundo. Os escombros de Dresden levaram os nazistas à Nuremberg, Gaza talvez leve Israel. Embora explicável como reação à perda de vida de israelenses inocentes, o que hoje Israel faz com a população de Gaza, é um erro estratégico porque no longo prazo não aumentará sua segurança e diminuirá o sentimento de apoio Israel.

A história vai registrar como lamentável que o país com maior intensidade de saber em todo o mundo, graças à educação que oferece, à ciência e à tecnologia que realiza, tenha se deixado levar por seus líderes na busca de popularidade por eleitores corretamente traumatizados e desejos de vingança e proteção imediata.

Há muitos exemplos de erros históricos. Bill Fawcett escreveu “100 grandes erros da história”, Barbara W. Tuchman escreveu “A Marcha da Loucura – de Troia ao Vietnam” sobre atitudes políticas perseguidas contra o próprio interesse do país ou grupo social. A guerra de Israel contra a Palestina ficará como um destes grandes erros, mostrando que talvez tivesse razão o grande escritor judeu Arthur Koestler quando alertou, ainda nos anos 1960, dos riscos suicidas do ser humano ao desenvolver uma lógica capaz de construir bomba atômica e uma moral que permite usá-la contra os vizinhos, morrendo ao matar.

O mito da Bazinha

Ainda em Maceió, eu ainda era uma criança. Uma negra baixinha e magra, carinhosa, que a gente chamava de Bazinha, costumava me botar para dormir cantando canções e contando histórias que, para mim, só ela devia conhecer. Numa dessas histórias, Bazinha dizia que o Zumbi dos Palmares ainda estava vivo, escondido nas matas da Serra da Barriga, ali pertinho de Maceió. Ninguém pegava o Zumbi, porque ele sabia voar.

Não preciso explicar a impressão que essa história produzia em mim, nem a importância que ela teve ao longo de minha vida como cidadão e artista brasileiro. O Zumbi se tornou, para mim, um herói a decifrar.

Mais recentemente, comecei a entender melhor a história da Bazinha e por que ela me impressionara tanto. Nenhum inimigo alcançava o Zumbi, porque ele sabia alçar voo acima de suas cabeças, longe da perfídia de suas armas vulgares, aquelas que só podem ferir quem não é capaz de deixar o duro chão do que costumamos chamar de realidade. O Zumbi sabia voar.

Cícero Dias
Contei essa história e suas consequências pessoais na homenagem que me prestaram na Universidade Estadual de Alagoas, a Uneal, no momento em que o estado festejava 200 anos de sua emancipação. Disse que, hoje, são os pensadores e os artistas brasileiros que têm a obrigação de aprender a voar.

Estamos vivendo num país que se desmantela política e culturalmente entre ódios falsos e falsas ideias sobre um futuro que já cortejamos tanto. Um futuro que nunca chega e, às vezes, até parece que já passou.

Apesar de tudo, durante a ditadura militar, era mais fácil pensar o Brasil daquele momento e escolher um rumo a tomar. Tínhamos quase todos o mesmo horror ao que nos sucedia, ninguém duvidava de que a luta prioritária era contra o autoritarismo, a ausência de liberdade.

Da esquerda mais radical ao mais radical liberalismo, ninguém precisava pensar muito para se unir em torno desse projeto de superação da ditadura. Ninguém precisava voar.

Hoje, apesar das causas justas, das justas críticas a governantes e políticos em geral, da indispensável denúncia de desgoverno, estamos também usando nossa liberdade para nos autodestruir, mesmo que involuntariamente.

Enquanto enfrentamos o que escolhemos por inimigo, atingimos muitas vezes a liberdade de outras pessoas a nosso lado, às quais não damos o direito de pensar diferente de nós, “inimigos” inventados por nossa histeria que devem ser eliminados apenas por não pensarem como nós.

É nosso direito combater as ideias com que não concordamos. Mas nenhum pensamento, mesmo o mais pérfido, merece ser eliminado porque não estamos de acordo com ele. Essa é a única garantia de que vivemos uma cultura democrática.

Precisamos refundar o Brasil já, reinaugurá-lo do ponto de vista cultural, político e institucional, do ponto de vista de sua economia seletiva e da gigantesca desigualdade social em que vivemos. Precisamos dar um fim à tradição da escravidão em nossa história, aos males deixados pelas oligarquias que nos governaram e ainda governam. Dar um fim à dor da fome, toda fome, entre nós.

Essa invenção do Brasil não pode ser construída com um pensamento excludente, que precisa eliminar o seu contrário para existir, que propaga o ódio à diferença. Nós, que somos o resultado de um caldinho de culturas, que somos o único país do mundo originado de uma improvável sopa ibero-afro-indígena, não podemos desprezar nenhuma fonte do que somos.

Apesar de toda injustiça cometida ao longo de nossa história, sempre sonhamos com uma cultura mestiça numa sociedade miscigenada, um mito nunca realizado.

Mas onde existe um mito, existe necessariamente um projeto, mesmo que seja inconsciente. Ou inconsistente. E esse projeto, de vez em quando, se revela entre nós, como na adoção da música de origem africana como a música brasileira por excelência ou na eleição romântica do índio como símbolo popular da pátria.

Temos uma vocação evidente para a criação e a poesia, vivendo constrangidos entre a miséria humana e a exuberância da geografia, nessa mistura de exaltação e melancolia que somos.

Como está em Jorge de Lima, meu poeta preferido: “Debruça-te sobre tua voz e escuta as vozes que vêm nela./ As ressonâncias de ti próprio que nasceram contigo./ Os bramidos dos ventos nas tuas velas rotas”.

Confiando em nossas pobres velas rotas, mas firmes e fiéis, aprenderemos a voar como o herói da Bazinha nos Palmares.