quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Gente fora do mapa


Presidentes não bloqueiam

E aqui estamos, enfim, do lado de cá de um ano que, do lado de lá, parecia totalmente improvável: o ano de sentir saudades, se não do Temer, pelo menos da sua discrição e da sua ausência nas redes sociais. Presidentes tuiteiros são uma novidade relativamente recente, e o exemplo mais famoso, nos Estados Unidos, é um desastre em 280 caracteres (saudades também do antigo limite de 140).

Ainda é cedo para dizer como se sairá o presidente Bolsonaro nesse quesito, mas se o Bolsonaro-candidato e o Bolsonaro-presidente-eleito são uma pista, teremos muita polêmica e muitos malentendidos pela frente, com o risco concreto de desgastes gratuitos. Presidentes não têm assessoria de comunicação apenas para responder a eventuais perguntas da imprensa ou para organizar coletivas, mas também para conter confusões onde elas podem, e devem, ser evitadas.

O jornal “The New York Times” mantém uma lista de pessoas, lugares, coisas e instituições que o presidente Trump já insultou pelo Twitter, de al-Assad, o ditador da Síria (“Um animal”) a Zuckerman, proprietário do “The New York City Daily News” (“Um pateta” ). Ela foi atualizada no último dia 28 e conta com 551 nomes, alguns — como o próprio “The New York Times” — mencionados incontáveis vezes seguidas. É leitura estarrecedora.

Espero sinceramente que acompanhar o Twitter do presidente Bolsonaro seja aventura menos trepidante. E espero que ele, seus filhos e seus assessores entendam que a conta usada por um presidente para comunicar atos de Estado não é a mesma coisa que uma conta pessoal para manter contato com os colegas.

Um pouco antes do Natal, Bolsonaro bloqueou jornalistas do “The Intercept”, uma publicação on-line que não faz segredo dos seus sentimentos a respeito do novo presidente. Independentemente do que ele ache ou deixe de achar do jornal, não pode mais fazer isso. Um presidente não pode sonegar informação pública a quem quer que seja, muito menos a jornalistas. Também não pode tapar os ouvidos a vozes dissonantes — que é, essencialmente, o que um bloqueio permite.

O presidente de um país é o presidente de todos os seus habitantes. Se o meio de comunicação do presidente com o povo é o Twitter, ele — ou quem quer que atualize a sua conta — tem de estar disposto a se comunicar com todos e aceitar os comentários de todos.

Essa questão já foi resolvida nos Estados Unidos, onde uma juíza federal determinou que o acesso público à conta de Donald Trump está protegido pela Primeira Emenda da Constituição, aquela que trata da liberdade de expressão. Bloquear este acesso seria, portanto, equivalente a um ato de censura.

Lá como cá, um presidente não é um cidadão como outro qualquer. Se quiser ter a liberdade de só se comunicar com quem quiser, deve ter uma conta pessoal onde se abstenha de anunciar nomeações de ministros ou decisões governamentais.

Dito isso, vai ser interessante ver como Bolsonaro vai se comportar no Twitter daqui para a frente. Lembrando que a palavra “interessante” tem vários — e interessantes — significados.

Preocupação

 Fiquei ainda mais preocupado com o discurso do presidente. Nota-se que é um discurso trabalhado, mas quando ele lança a responsabilidade da agressão que ele sofreu entre os adversários e inimigos, como se fosse uma coisa deliberada, uma conspiração, eu creio que ele esteja fazendo um gesto publicitário muito ruim
Cristovam Buarque (PPS), senador e ex-ministro da Educação

Governo de colisão

O fato de ter assumido a presidência da República não torna o capitão Jair Messias Bolsonaro mais preparado para o cargo que o destino lhe reservou. Falta-lhe preparo, e disso se encarregou de provar tudo o que afirmou antes, durante a campanha, e finalmente ontem no Congresso e, depois, no parlatório da Praça dos Três Poderes.

Num lugar como no outro, Bolsonaro deixou escapar a oportunidade de falar para o país e o mundo, se é que um dia de fato a desejou. Ele falou exclusivamente para seus devotos como se ainda estivesse em campanha para presidente. O discurso no parlatório foi a maior coleção de clichês e de lugares comuns ditos naquele espaço até hoje.


Reclama-se que a oposição, ou parte dela, não compareceu à posse de Bolsonaro. Mas que aceno convincente ele fez aos que não concordam com suas ideias ou divergem em parte delas? Por mais que muitos se empenhem em tentar normalizá-lo, Bolsonaro prega o “nós contra eles” do PT agora sob um novo o disfarce: eles contra nós.

2018 é mais um ano que não acabou como 1968. Por aqui, ele marca a derrota estrondosa da esquerda que não dá sinais de que será capaz de reconstruir-se. O provável é que continue a mesma, limitando-se a apostar no desastre do governo Bolsonaro para tentar reconquistar o poder daqui a quatro anos, ou – quem sabe? – antes disso.

O ano marca também, e pela primeira vez desde o fim da ditadura de 64, a ascensão ao poder da extrema direita. É saudável, sim, que saia de cena o governo de coalisão tal como ele era se apresentava e que resultou em grossa roubalheira. Mas saudável não será que sua vaga seja preenchida por um governo de colisão tal como esse se anuncia.

Pode ser que o exercício do cargo ensine a Bolsonaro o que ele não aprendeu nos 28 anos que passou no Congresso como um anônimo deputado. Seu plano original era candidatar-se a presidente para ajudar a eleição dos seus filhos, se aposentando em seguida. A facada em Juiz de Fora deu novo rumo à sua vida e à do país.

A posse de Bolsonaro

Os discursos feitos ontem pelo presidente Jair Bolsonaro, no Congresso Nacional e no parlatório do Palácio do Planalto, foram atos de campanha, e não atos de governo – como era de esperar de um veterano político que assumia a Presidência da República com promessas de “reconstruir” o Brasil. Bolsonaro repetiu os chavões da campanha, em vez de apontar soluções efetivas para os problemas do País. Insistiu em alguns diagnósticos genéricos, mas nos dois discursos não se vislumbrou ao menos um pálido esboço de plano de governo para enfrentar tais problemas. E, se a preleção no Congresso não deu razões para o otimismo, o segundo discurso de ontem, no parlatório, resvalou num populismo rasteiro – um claro sintoma de que não se deu conta dos desafios que terá de enfrentar nem do real papel que terá de exercer como presidente da República.

No plenário do Congresso, o presidente Jair Bolsonaro prometeu “governar com vocês”, referindo-se aos parlamentares. Que a promessa seja de fato cumprida, pois cabe ao Congresso aprovar as reformas estruturantes de que o País tanto precisa. Mas o máximo que pôde dizer é que aproveitava o “momento solene e convoco cada um dos congressistas para me ajudar na missão de restaurar e reerguer a nossa pátria, libertando-a definitivamente do julgo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica”. Não pôde ou não soube propor medidas concretas para sanar os males do País. Ou seja, não disse o que os brasileiros que depositaram suas esperanças no “mito” queriam ouvir.

Mas não lhe faltaram palavras para explorar – para quê? – o atentado que sofreu e que, como disse, foi executado pelos “inimigos da pátria, da ordem e da liberdade”. Na verdade, o crime foi obra de uma única pessoa, como mostram as investigações criminais. Depois, no parlatório, Bolsonaro teve a desfaçatez de dizer que o País estava, naquele momento, se libertando do socialismo e, tirando a bandeira nacional do bolso, num gesto teatral, garantir que aquele símbolo nunca seria manchado de vermelho – exceto o sangue derramado para garantir a pureza da pátria. A que caminhos o presidente pretende levar a Nação, com afirmações tão fora da realidade?

E o mais estranho é que, depois desse rompante aparentemente sem propósito, Bolsonaro declarou ter montado “nossa equipe de forma técnica, sem viés político, que tornou o Estado ineficiente e corrupto”. De fato, é preciso que o novo governo atue de forma técnica, não ideológica. Mas é inegável que, nos últimos meses, alguns indicados para os Ministérios têm manifestado parca consistência do caráter técnico e isento de ideologias que deveriam ter na atuação governamental. Num arroubo que lembrou a última experiência de governo do PT, Bolsonaro sugeriu “um pacto nacional entre a sociedade e os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na busca de novos caminhos para o novo Brasil”. E deixou a proposta no ar, como se não fosse tarefa intransferível dele dar-lhe contornos e conteúdo sólidos.

A realização das reformas estruturantes – “essenciais para a saúde financeira e sustentabilidade das contas públicas”, como lembrou Jair Bolsonaro – é uma obra conjunta dos Três Poderes. Foi o que acertadamente lembrou o presidente do Senado, Eunício Oliveira, em seu discurso de encerramento da sessão do Congresso. “É no Parlamento que o diálogo bem executado leva a boas soluções”, lembrou.

O presidente do Senado também ressaltou que o novo presidente não encontra um país devastado. “Vossa Excelência está recebendo o País com diversos ajustes feitos aqui nessa Casa”, disse Eunício. Ao relembrar o muito que se fez desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff para retirar o País da crise econômica gerada pelo lulopetismo, o presidente do Senado fez merecida homenagem à “perseverança política e pessoal do presidente Michel Temer”. É de justiça que Jair Bolsonaro reconheça que suas tarefas serão muito mais amenas em razão do trabalho feito ao longo dos últimos dois anos.

Além de descer do palanque, o presidente Bolsonaro precisa colocar os pés na realidade. O discurso populista é comprovadamente incapaz de assegurar os bons resultados que o País demanda. O Brasil, já dissemos nesta página, tem esperanças no governo Bolsonaro. Mas cabe a ele, e só a ele, transformar essas esperanças num Brasil próspero e sem divisões.

Brasil da posse


Por um ano baseado em fatos reais

A mentira sempre foi um combustível barato para eleições e máquinas de propaganda política. O ano que termina agora ficou encharcado de invencionices e informações distorcidas. É bom elencar alguns fatos para que possamos permanecer no mundo real em 2019.

1) Embora muitos produtores façam sua parte pela preservação ambiental, o agronegócio, mineradoras e madeireiras têm responsabilidade especial sobre o desmatamento. Tratar isso como lenda, como fazem alguns ruralistas, é autorizar a emissão de carteirinhas de devastação.

2) O impacto da ação humana sobre as mudanças climáticas, aliás, já foi objeto de pesquisas científicas com critérios rigorosos. Integrantes do próximo governo preferem considerar a questão uma fantasia ideológica da esquerda. Pode-se discordar das políticas implantadas para enfrentar o problema, mas negá-lo não levará a lugar algum.

3) Impor rédeas à atuação de professores não vai melhorar a educação. Há várias razões pelas quais nossos alunos mal sabem fazer contas. Nenhum deles gastou seu tempo em rodas de leitura de Marx.

4) O novo governo pode alcançar bons acordos ao buscar novos caminhos para sua agenda comercial. Se decidir bater de frente com a China em um teatro de alinhamento com os EUA, o Brasil pode perder muito.

5) Não é “matando idosos” que se resolverá o buraco nas contas da Previdência. Governantes e parlamentares precisam, de uma vez, ter coragem para enfrentar grupos privilegiados e tornar o sistema mais justo para evitar que o país quebre.

6) A revisão do financiamento do Sistema S não fará mal se mantiver os serviços prestados aos trabalhadores, acabando com seu uso político e com a perpetuação de dirigentes.

7) Reescrever o passado à força não muda a realidade. Dias depois da eleição, Jair Bolsonaro disse que a população estava começando a entender que “não houve ditadura” no Brasil entre 1964 e 1985.

Vamos torcer para que 2019 seja um ano mais baseado em fatos reais.

Eleitor brasileiro entra em 2019 chutando a porta

O grande ausente nos discursos de Bolsonaro

Quem esperava que o Bolsonaro, já presidente, seria diferente do Bolsonaro candidato, se equivocou. Existe apenas um com seu discurso radical, que, irônico paradoxo, reproduz um dos erros dos governos de esquerda que ele abomina e combate: o do “nós contra eles”. O novo presidente da extrema direita confessou que veio “libertar o Brasil do socialismo”, e que a bandeira brasileira “nunca será vermelha”. É como afirmar que aqueles que defendem, em seu direito democrático, os valores que não são os da extrema direita, não cabem mais no Brasil.


O grande ausente em seus discursos, que poderia tê-lo resgatado das acusações de sectarismo, foi a esperada afirmação de que pretendia ser o presidente de “todos os brasileiros”, sem distinção de cores ou ideologias. Um presidente disposto a contribuir para reconstruir juntos um país lacerado. Tentar combater o perigo das ideologias excludentes com outra ideologia de cor diferente é perpetuar o drama da divisão.

Querer arrancar do arco-íris dos valores democráticos uma de suas cores é perpetuar a luta ideológica, pois as verdadeiras democracias, aquelas que criam prosperidade e liberdade, abraçam em vez de dividir. Afirmar que veio libertar o Brasil do socialismo equivale a mutilar a democracia que se conjuga com todas as cores da política. Afirmar que somente com sangue, isto é, com violência, valores políticos que não são os seus seriam aceitos é convidar os brasileiros a alimentar sentimentos de perigosas rivalidades. Em vez de unir o país em uma esperança comum de convivência, ele o arrasta e incita a continuar não apenas dividido, mas a abrir uma guerra ideológica mais perigosa do que a que tenta combater.

Bolsonaro — que afirma querer governar em nome dos valores cristãos e judeus com uma bandeira mutilada — deveria se lembrar que o rei da divisão e inimigo da concórdia é Lúcifer e não Deus. O Deus cristão não apenas não divide nem discrimina, mas abraça até o que o mundo despreza.

Querer abrir uma guerra ideológica em um país já estressado politicamente é o que menos leva à utopia de que o Brasil “encontre seu destino”, como desejou em seu discurso ao Congresso. Na história humana, os povos, ontem e hoje, só descobrem e dão sentido a um destino que liberta as pessoas das correntes impostas pela tirania, caminhando juntos, diferentes, mas unidos e enriquecidos pelas diferenças. Querer apequenar as cores da democracia é empobrecer a beleza da diversidade. É querer combater fantasmas que só existem nas mentes dos frustrados.

Com o pretexto da segurança, o trabalho da imprensa foi restringido na posse

A necessidade real de segurança do presidente eleito foi usada como pretexto para restringir o trabalho da imprensa. É claro que a segurança do presidente eleito, Jair Bolsonaro, e dos chefes de Estado que estão entre nós exige a imposição de regras, mas o que aconteceu com os jornalistas é impensável e inaceitável.

Eles só podem ir e voltar para um ponto específico e com o transporte do governo. Mas assim: têm que chegar oito ou nove horas antes da parte do evento que cobrirá, só poderá ficar num mesmo cercado, sob pena de ser retirado do local e responder processo.


Exemplo, quem tem credencial para o Congresso teria que chegar às 7h para um evento que começa às 15h. Fica no seu setor e de lá não pode sair. Se tiver conseguido também a credencial para outro momento da posse não poderá ir. Terá que ficar no mesmo local, depois de tudo terminado no Congresso, esperando a hora que o governo quiser retirá-lo do local para levá-lo de volta ao ponto inicial.

Jornalistas precisam circular pelo local onde estão, falar com as diversas pessoas. É a chance de se aproximar dos novos ministros ou assessores, de fazer fontes ou de ouvir as notícias. Mas se ficam confinadas num local específico, como se fossem gado em um curral, não conseguem fazer seu trabalho.

Cubro posse desde o general João Figueiredo. Nunca houve nada tão restritivo. Naquela época, eu era uma jovem jornalista e tive acesso a vários pontos da cerimônia, circulei, fui convidada para o jantar de gala porque era responsável pela cobertura do Itamaraty. Lá pude falar com os novos ministros.

Durante a campanha e a transição, os sinais de hostilidade à imprensa, ou pelo menos à parte da imprensa que não está disposta a simplesmente fazer a louvação dos novos poderosos, foram muitos.

Este sinal de usar as regras de segurança para impor restrição física aos jornalistas e de exigir um desgaste físico, de horas de espera além do razoável, é um perigoso precedente.