quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Pensamento do Dia


O consolo é saber que nada dura para sempre

Tudo começa no voto. Maus eleitores causaram todo esse estrago na democracia brasileira, que está cada vez mais ameaçada. Lula, Dilma, Tiriricas do Congresso, anões do Orçamento, indicações políticas ao Supremo Tribunal Federal, ao Superior Tribunal de Justiça, ao Tribunal de Contas da União e similares, sabatinas furadas, tudo isso é consequência de eleitores despreparados.

Educação deficiente, desigualdade social extrema, miséria persistente, falta de cultura etc. são componentes que colaboram para que os brasileiros, em sua maioria, ainda não saibam escolher e muito menos fazer cobranças aos políticos que elegeram.


Enquanto a lei não for para todos e o Supremo puder legislar e até instituir a impunidade das elites, prática inexistente no resto do mundo civilizado, e enquanto não existir a regra de “um homem, um voto” também não poderemos afirmar que exister democracia no Brasil.


São campanhas caras, curtíssimas e sem debates aprofundados sobre os temas fundamentais. E o brasileiro em geral sequer se recorda em quem votou, não sabe para que servem os vários cargos eletivos nem as diferenças entre eles.

Como então fiscalizar a atuação parlamentar e, principalmente, a aplicação dos recursos públicos via orçamento. Na verdade, o povo jamais participou das decisões sobre como e onde aplicar o dinheiro que provém do próprio cidadão pagador de impostos.

 A recente decisão do Supremo garante a impunidade dos poderosos, confirmando a amarga realidade que o país enfrenta nos dias atuais. Mas devemos lembrar que nada é para sempre, nem mesmo a corrupção endêmica do Brasil de hoje.

A propósito, já escrevi aqui na Tribuna que a advertência do general Villas Boas certamente seria ouvida se Bolsonaro não tivesse se encontrado com alguns ministros do STF e dado carta branca para libertação dos réus após segunda instância, reforçando o tal pacto da impunidade.

Para não desanimar, é bom insistir na lembrança desta reflexão de Chico Mendes: “No começo, pensei que estava lutando para salvar seringueiras, depois pensei que estava lutando para salvar a floresta amazônica. Agora eu percebo que estou lutando pela humanidade”.

Sabe com quem está falando?

O outro é, em geral, o diferente, o adversário ou o inimigo — o “esquisito” como falamos no Brasil. Mas o que acontece quando ele fala a nossa língua, come a mesma comida, usa dos mesmos gestos e roupas, vive na mesma casa, experimenta o nosso sistema de valores, por duas vezes eleito presidente da República (um papel moralmente exemplar); e, no entanto, usa sua crença e seu modo de agir de modo radicalmente diverso do nosso?

Há uma trágica e frustrante perplexidade quando o irmão sentado à mesma mesa discorda, pensa e age de modo diferente de nós. O que vemos como crença ou ideologia é, para o crente de boa-fé, algo vivido e percebido como fato.

A questão que hoje se apresenta esbofeteando o bom senso é sobre a natureza dos fatos; esse ponto crítico da vida pública e da dimensão política numa sociedade de matriz aristocrática, patriarcal e escravocrata que tardiamente, e com feroz relutância, tem adotado formalmente a igualdade de todos perante a lei; esse ponto capital das democracias que, desde Aristóteles, são concebidas como governos de bem-estar para muitos e, em consequência, o controle da visão vergonhosa e bestial — mas “realista”, como se diz — de que tudo vale para “tomar” e permanecer no poder. E, uma vez no poder, supor, com o aval implícito dos nossos hábitos políticos, que, no “governo” — esse mecanismo dúbio situado entre o Estado e a sociedade —, o eleito, indicado ou nomeado, muda de estado social. Onde havia o candidato apresentado como simples, pobre e honesto; como operário, médico ou professor, renasce impávido o príncipe. Ou, como lembra Sérgio Buarque de Holanda, o barão sobranceiro e autoritário. Para a nossa decepção, surge o nobre que, premido pela ordem igualitária formal, pode e deve dela escapulir tendo o direito de usar o “Você sabe com quem está falando?”


O eleito pelo voto livre do povo retoma o baronato nacional; e a República democrática eternamente jovem recria inconscientemente nos seus quadros os privilégios das rotinas hierárquicas. O voto livre paradoxalmente reinstaura privilégios que se recobrem das molduras ideológicas, as quais, como viu Marx, estão sob as lentes de uma câmara invertida. O populismo, soi-disant
socialista, vira despotismo expresso no saque desavergonhado em escala jamais testemunhada da riqueza nacional. Completa-se o abuso nas diferenças criminosas entre o povo e os salários, benesses e privilégios dos seus representantes que dele foram definitivamente decolados.

O fato real é que o sistema tem uma weberiana “ética dúplice”, que não é mais tolerada ou complementar e que está em conflito. Assim, tal como o gondoleiro veneziano mencionado na “Ética protestante”, ele nada cobra dos seus parentes, amigos e compadres, mas exige o dobro dos estranhos. Ou seja: aos amigos, tudo (como revelou para a nossa vergonha a Operação Lava-Jato); para os desconhecidos, porém, a insensível impessoalidade do mercado! De um lado, o companheirismo “esquerdista” isento dos limites do “capitalismo” que quebrou o país; do outro, a subordinação do financeiro ao político como um modo de permanecer no poder. Se isso não é a alma do que alguns têm chamado de “corrupção sistêmica”, minha avó é bicicleta.

O affair amoroso entre Lula e o STF revela exemplarmente a duplicidade colocada anteriormente.

A regra real, justa e antiga não está em causa:in dubio pro reo. Mas se o paciente já foi julgado e condenado nas instâncias vigentes, a dúvida não é sobre o réu, mas também e sobretudo sobre o próprio corpo de magistrados. Por três vezes em dez anos, alterou-se o entendimento sobre a prisão em segunda instância. O STF oscilou publicamente sobre o mérito e, eu não tenho sombra de dúvida, de que o problema é a qualidade do réu. No antigo e hoje pós-moderno Portugal, os juízes somente decidiam depois de saber quem era o indiciado. Neste nosso Brasil tocado pelas ambiguidades de uma ética republicana igualitária em paralelo ao um tradicional viés que chamei de relacional, o resultado reafirma o englobamento da lei e da sensatez jurídica pelo favor pessoal. Com a devida vênia e o devido respeito pelo cargo, mas não pelo ator que fechou essa triste pagina do STF, eu afirmo que não houve um “voto de Minerva” (a deusa da inteligência). O que houve foi uma brasileiríssima retribuição de favor entre Dias e Luiz; e um boçal “você sabe com quem está falando?” para o povo brasileiro.
Roberto DaMatta

Mudar o jogo

Presidente boliviano forçado a renunciar, violência tomando conta das ruas, Chile em vias de mudar de Constituição pela pressão popular. Enfim, é a América Latina sendo América Latina.

Fora do Uruguai, o latino-americano gosta de emoção na política, de tensões elevadas, da vitória sofrida no último minuto, com a ajudinha de um golpe de sorte e a sensação de que venceu um grande inimigo.

A estabilidade produz impaciência. O Brasil não foge à regra. Lula está solto e rodando o país para galvanizar a oposição ao governo, esperando que um pouco dos ventos de esquerda que sopram no Chile e na Argentina venham para cá —isso se os ventos da direita da Bolívia não chegarem antes.


Neste momento, nem Lula nem Bolsonaro sequer tentam falar aos eleitores do campo contrário. É inútil. O grande objetivo —para ambos— é garantir que não exista nada fora desses dois campos.

Não é preciso afirmar uma equivalência de ambos para observar que se utilizam da mesma dinâmica social destrutiva para se alavancar. Ambos, quando puderam, atentaram contra a democracia brasileira.

Bolsonaro testa diariamente os limites com seus ataques e promoção do ódio às instituições entre sua horda de militantes desejosos de violência. Lula tentou cooptar nossa democracia pelo uso ilegal do dinheiro, bem documentado no Mensalão, Petrolão e propinas de empreiteiras.

O número dos que consideram o atual governo ótimo ou bom parece ter se estabilizado em torno de 30%.

Haddad, no primeiro turno das eleições de 2018, conseguiu quase 30% dos votos válidos, ou seja, cerca de 21% dos votos totais. Com a memória dos anos Dilma se esvaecendo e Lula candidato ou no mínimo solto e ajudando na campanha, o apoio à sigla deve partir no mínimo desse valor. Sobra pouco espaço para que alguém de fora da dobradinha Bolsonaro-PT chegue ao segundo turno em 2022.

Cabe lembrar que, a se consolidarem as tendências atuais, Bolsonaro tem a vantagem. A população que não está em nenhum dos extremos pende mais para o antipetismo e não gosta daquilo que associa à velha política. Ao mesmo tempo, a economia dá sinais de recuperação e a violência cai. Sendo ou não mérito do governo Bolsonaro, se a melhora durar até 2022, o apoio popular deve aumentar.

Será uma pena se, mais uma vez, o país se render à polarização, pela incapacidade de qualquer liderança em unir todos aqueles que não querem mais fake news, teorias da conspiração e demonização de metade do eleitorado.

O problema é que moderação e respeito ao jogo democrático (inclusive às suas regras não escritas) jamais serão valores capazes de animar a população.

Trabalhar em cima desses números buscando um eleitor não alinhado com os extremos parece, assim, fadado ao fracasso. A chance está em alguém que seja capaz de virar essa mesa e colocar a escolha popular em outros termos. Mudar o jogo em vez de apenas tentar vencê-lo.

A política atual oscila entre o medo e o ódio. Ódio ao inimigo e medo do que ele fará se, ou enquanto, tiver o poder. Está faltando um valor positivo, que toque outra paixão poderosa e capaz de unir a sociedade: a esperança de grandes feitos, o orgulho de se viver num país que possa inspirar o mundo com seu exemplo.

Um líder que encarne uma visão inspiradora do que o Brasil pode ser é a única esperança de sairmos do cabo-de-guerra destrutivo em que nos metemos. Existirá alguém à altura?

Paisagem brasileira

Casa à beira-mar, Benedito Calixto (1853 – 1927)

O governo Bolsonaro está no caminho certo para impulsionar a economia?

Talvez tivesse sido útil para o ministro da Economia, Paulo Guedes, testar seu recém-apresentado pacote de reformas num chamado elevator pitch ("discurso de elevador") – ou seja, tentar convencer alguém influente durante a duração de uma viagem de elevador, ou seja, no máximo 30 segundos.

Porque é exatamente isso que falta ao Plano Mais Brasil: trata-se de um pacote abrangente de reformas com muitas medidas individuais, das quais muitas são pertinentes, mas difíceis de explicar em uma ou duas frases. Isso é essencial para que reformas tenham uma chance de serem implementadas – afinal, o pacote de Guedes será agora discutido pela opinião pública durante meses.

Grupos de lobistas e políticos vão se posicionar até a votação final no Congresso. Mas se o objetivo e os benefícios de um pacote de reformas não forem imediatamente perceptíveis, há poucas chances de serem implementados.


Guedes pretende erradicar o problema fundamental do Estado brasileiro, que sobrecarrega a economia do país há décadas: o gasto excessivo. Ano após ano, o Estado gasta mais do que arrecada.

Antes da reforma econômica do Plano Real de 1994, a lacuna entre (muito pouca) receita e gastos (muito altos) era compensada com a inflação. Para poder gastar mais do que tinha em caixa, o governo imprimiu dinheiro. Até a inflação ficar tão alta que o dinheiro perdeu o seu valor. Então foi feita uma reforma monetária, e alguns zeros foram cortados, e tudo recomeçou. Nos 25 anos após o Plano Real, os gastos foram financiados por créditos (e um pouco por notas impressas).

O resultado: a dívida em relação ao desempenho econômico aumentou rapidamente. Consequentemente, o Estado teve que pagar cada vez mais juros sobre seus empréstimos, o que aumenta exponencialmente o déficit no orçamento da União. O crescente déficit orçamentário paralisa e economia como um todo, porque o Estado quita apenas os vencimentos de funcionários públicos, pensões e alguns gastos correntes com encargos sociais, mas nada sobra para investimentos.

Nos últimos anos, os governos federais aprovaram várias medidas que visavam frear a geração de dívidas – Lei da Responsabilidade Fiscal, Regra de Ouro e a chamada lei do teto (Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos). Mas elas todas foram, mais ou menos, contornadas e minadas por meio do Judiciário ou do Congresso.

Guedes pretende romper radicalmente essa espiral da dívida – ele quer criar mecanismos que acionam automaticamente os freios das despesas públicas. O objetivo é que o acionamento desses mecanismos de bloqueio nos gastos não dependa mais da vontade política de quem estiver no poder. Para isso, Guedes desenvolveu várias regras fiscais que devem ser consagradas na Constituição, o que faria com que elas não possam ser contornadas tão facilmente.

Por exemplo, caso as despesas fixas, as chamadas despesas obrigatórias, atingirem mais de 95% num determinado orçamento, as despesas do serviço público serão congeladas automaticamente. Nenhum novo funcionário pode ser contratado, não são permitidas promoções, os salários não são mais ajustados pela inflação. Com isso, busca-se garantir o cumprimento da lei do teto, promulgada pelo o Congresso em 2016 e que estabeleceu que, durante 20 anos, os gastos públicos só podem aumentar conforme a inflação.

O pacote de Guedes também prevê medidas drásticas para garantir o cumprimento da Regra de Ouro, segundo a qual as despesas correntes não devem ser quitadas com novos empréstimos. Caso a própria arrecadação for insuficiente, as prefeituras, os estados ou o próprio governo federal devem reduzir em até 25% a carga de trabalho do setor público – até que o orçamento esteja equilibrado novamente. Ou seja, em escritórios, hospitais ou universidades públicas, os funcionários trabalhariam apenas quatro, em vez de cinco dias por semana.

Além disso, o governo federal quer dissolver cerca de um quinto de todos os municípios do Brasil que possuem menos de cinco mil habitantes e geram menos de 10% de sua própria arrecadação. Guedes também quer dissolver cerca de 200 fundos especiais.

Essas são medidas liberais radicais, que são difíceis de implementar em sistemas democráticos porque, acima de tudo, a administração pública está no centro das medidas de austeridade. Portanto, aqueles que teriam de aplicar as medidas são os que precisariam apertar o cinto.

O governo federal quer tornar o pacote de austeridade mais atraente em todos os níveis federais, ao prometer a estados e municípios maiores receitas oriundas de privatizações, especialmente de campos de petróleo.

"Mais Brasil, menos Brasília" é o lema do governo. Prefeitos e governadores devem receber mais dinheiro no curto prazo, mas no longo prazo estarão concordando com um rigoroso espartilho fiscal.

No entanto, o leilão de campos de petróleo da semana passada não teve o sucesso esperado. Quase não há injeção de capital de investimento no Brasil, e, portanto, há menos para distribuir. Isso deve paralisar o entusiasmo reformista no Congresso, mas também em comunidades e estados.

Além disso, o espaço de tempo é extremamente curto para as complicadas mudanças constitucionais. Em outubro de 2020, estão previstas eleições municipais em todo o país. Nenhum político quer impulsionar reformas que muitos eleitores sentirão imediatamente.

Para efeito de comparação, as negociações em torno da reforma da Previdência, promulgada pelo Congresso nesta terça-feira, duraram muito mais do que os dez meses de governo Bolsonaro. Os primeiros debates ocorreram durante o governo de Michel Temer, e, no total, foram 35 meses de negociações até o Congresso aprovar a reforma.

As fracas reações nos mercados financeiros mostram que os investidores não acreditam realmente nos pacotes econômicos de Guedes. O real está notoriamente mais fraco após o fracassado leilão dos campos de petróleo e a apresentação do pacote de reformas.

Outro sinal negativo é que até agora nenhum banco de investimento apresentou uma análise ou avaliação do pacote. Parece que todo mundo está esperando para ver como serão as primeiras reações na política e na economia. E isso não é um bom indício para o Brasil, que precisa urgentemente de investimentos e de novos empregos.
Deutsche Welle

O tamanho do homem

Diz-se que o Sátrapa oriental ganhou, de outro potentado, um corte de maravilhosa seda, rara e transparente. Chamou imediatamente o alfaiate da corte e perguntou-lhe o que podia fazer com tal fazenda. O alfaiate examinou bem a fazenda, mediu a fazenda, mediu o tirano e disse-lhe, contrafeito, que o pano não dava para mais do que um colete. O Sátrapa estranhou, mas não disse nada. Meses depois, viajando por uma província distante, levou consigo a fazenda e consultou célebre alfaiate da região. O homem examinou a peça e disse que com ela poderia fazer uma toga. O tirano pegou, então, a fazenda e, numa viagem que fez a um pais vizinho, consultou outro alfaiate. Este lhe disse que a fazenda dava para uma toga e um colete. Já excitado em sua curiosidade, o Sátrapa esperou uma viagem que fez para o ponto mais distante a que jamais viajara, um pais do Ocidente, que até então lhe era completamente hostil, e lá consultou também um famoso alfaiate. Este, depois de examinar rapidamente a seda, disse-lhe que com ela poderia fazer uma toga, uma túnica, um colete, vários lenços e um turbante. O tirano então não se conteve e perguntou:

- “Como se explica, ó mestre, que você com esse pano possa fazer tanto, se o alfaiate da minha corte, destro e competente como é, declarou-me que com ele não podia fazer mais do que um colete?”.

- “Ah”, respondeu então o alfaiate, - “é que, na sua terra, o senhor é um grande homem”.
Millôr Fernandes

O indígena, o operário e o poder militar-religioso

As democracias latino-americanas são frágeis e suas crises profundas. A Organização dos Estados Americanos não garante a lisura do processo eleitoral que levou Evo Morales à reeleição. O processo judicial da Lava Jato que terminou na prisão do ex-presidente Lula se mostrou repleto de irregularidades. Morales foi pressionado a renunciar e conseguiu asilo político no México. Lula, após 580 dias na prisão, planeja uma caravana de esperança pelo país. Nos dois países se fala em polarização da política.

Entre os dois líderes políticos há mais do que proximidades ideológicas: Morales foi o primeiro presidente aymara de uma nação majoritariamente indígena; Lula foi o primeiro presidente operário de um país de trabalhadores. Bolívia e Brasil estão entre os países mais desiguais e racistas da América Latina —buscam apagar a história da colonização e seus efeitos, imaginando para si próprios um país em que o capital estrangeiro pode trazer desenvolvimento e prosperidade. Morales e Lula provocaram os imaginários de branquitude e elite entranhados em nossos países pela colonização.


Relembrar o rosto indígena de Morales e as mãos operárias de Lula não significa ignorar as misérias do populismo ou do clientelismo das políticas latino-americanas. Menos ainda ignorar que há fortes evidências de corrupção nos partidos que sustentaram Morales e Lula no poder. Porém, suas origens de raça e classe importam para compreender como as frágeis democracias responderam aos equívocos de governança de seus líderes de esquerda com cara de povo: não por coincidência, os dois países convocaram os poderes religioso e militar como alternativa, seja por eleições democráticas ou por tomada bruta do poder.

No Brasil, Jair Bolsonaro é um ex-militar, rodeado de generais da ativa, cujo filho anuncia possibilidades de medidas tirânicas se as ruas se rebelarem como ocorreu no Chile. Ao seu lado, estão pastores evangélicos no comando das políticas de direitos humanos para as mulheres e povos indígenas. A ordem não é governar o país à luz da Constituição, mas doutrinar, como faziam os evangelizadores do passado —ou pela fé, ou pela força. Tão parecidos aos evangelizadores do passado, a política se instaura pela arma e pela mentira. Se antes era a ameaça do inferno, agora é a mentira da polarização: “Eles querem destruir nosso país”. Para os bolsonaristas, o “eles” são todos aqueles que defendem a igualdade ou a justiça social.

Narrativa semelhante atravessa a Bolívia neste momento. Um tipo marginal à política, como sempre foi Bolsonaro no Brasil, emerge como alternativa a Morales. Luis Fernando Camacho é um representante da direita radical, com origens na cidade fronteiriça de Santa Cruz, terra de empresários e do capital global. Camacho não escondeu suas raízes na branquitude católica ao alcançar o palácio do Governo no domingo: depositou uma Bíblia, falou em nome da fé e pediu que Deus abençoasse a Bolívia. Diferentemente do Brasil, a presença de religiosos no poder político é ainda estranha na Bolívia, porém uma ameaça que se concretiza com a estratégica aliança militar para a acusação de fraude contra Morales.

As fragilidades democráticas dos países latino-americanos devem ser resolvidas pela via democrática. Para isso, é preciso promover a cultura política necessária para entender que oposição política não é o mesmo que polarização: a polarização é uma estratégia da ultradireita para impedir o confronto democrático das diferenças. Se houve corrupção nos governos de Lula ou Morales, há instituições para investigá-las. Se houve fraude na eleição de Morales, sua renúncia deve ser aceita e novas eleições com observadores internacionais convocadas. A rápida alternativa de retorno ao passado militar ditatorial é um resquício da cultura colonialista que jamais abandonou nossos países. É o patriarca que emerge com voz de salvador com arma na cintura e livro sagrado entre os braços para colonizar os selvagens que reclamam por direitos. E que não suporta a oposição ao poder que se quer instaurar como tirânico.
Debora Diniz,Universidade de Brown / Giselle Carino, diretora do IPPF/WHR

Bolsonaro criará novo problema, não um partido

Quando enganchou o seu projeto presidencial no PSL, Partido Social Liberal, Jair Bolsonaro sabia que estava lidando com uma legenda que era capaz de tudo, menos de demonstrar vocação social e de afastar do déficit público o seu hipotético pendor liberal. Tratava-se de uma legenda nanica à procura de bons negócios. A candidatura de Bolsonaro revelou-se um ótimo negócio, com dividendos milionários.

O site do TSE informa que há no país 32 partidos formalmente registrados. Se mudasse de legenda, Bolsonaro iria apenas trocar de problema, levando sua fábrica de crises para outra freguesia.


Se criar uma nova agremiação, como parece pretender, Bolsonaro vai apenas fundar um novo problema. Nada disso combina com aquilo que o atual presidente da República dizia representar.

A Presidência de Jair Bolsonaro foi vendida desde a campanha como uma flor do lodo. Depois de exercer sete mandatos parlamentares, Bolsonaro apresentou-se ao eleitor como uma fulgurante novidade. Ele dizia ser o único político radical o bastante para combater os maus costumes. De saída, a opção pelo PSL já transformou esse tipo de pregação numa teatralização da ética.

Como ocorre em todo matrimônio baseado em interesses pecuniários, o relacionamento de Bolsonaro com o PSL resumiu-se ao patrimônio. É por dinheiro que o presidente se desentende com seu partido. O bom senso recomendaria negociar. Mas Bolsonaro parece preferir, como de hábito, radicalizar. Perde votos no Congresso e corre o risco de chegar a pé nas eleições municipais de 2020, porta de entrada para 2022, pois não é simples criar um novo partido. Bolsonaro não tem muito talento para desfazer crises. Mas é genial na organização das próximas confusões.