domingo, 8 de dezembro de 2024
A culpa é dos direitos humanos?
O debate sobre a violência da polícia em São Paulo é uma boa oportunidade para esclarecer o público sobre o que, exatamente, é a defesa dos direitos humanos no debate sobre criminalidade.
A defesa dos direitos humanos tem uma dimensão moral, relacionada à dignidade da pessoa humana —inclusive dos criminosos sob a guarda do Estado. Esses valores são os que definem o liberalismo político e a civilização moderna.
Os países que consideramos desenvolvidos são os que mais respeitam os direitos humanos. O "agir dentro dos limites da lei" diante de criminosos é só um caso da regra geral "agir dentro dos limites da lei".
Mas essa coluna não é uma pregação moral. É um conselho de prudência sobre quanto poder devemos dar aos funcionários do Estado.
Não é "pena de bandido" que inspira quem defende que os policiais só possam agir dentro da lei. É medo de entregar para os policiais, que são seres humanos como todos os outros, poderes de vida e morte típicos de ditador.
A história não sugere que uma porcentagem grande dos ditadores soube usar seu poder com parcimônia.
Não se trata de discutir se o criminoso é santo, mas de admitir que o Estado não é.
Os episódios recentes de violência policial mostram bem isso. Quando Tarcísio e Derrite sinalizaram que a polícia não prestaria mais contas a ninguém, um policial se sentiu à vontade para jogar um cidadão brasileiro do alto da ponte.
Sabe as "amarras do sistema" que você achava que impediam o combate ao crime? Na verdade, elas impediam a polícia de jogar gente do alto da ponte.
Sim, as câmeras corporais colocam limites ao que o policial deve fazer. Mas também lhes dificultam receber suborno, jogar gente da ponte, omitir-se diante de um crime que deveriam reprimir.
Elas também registram atos de heroísmo policial, momentos em que policiais recusam suborno, ajudam a analisar o que deu certo ou errado em uma dada operação. E, sobretudo: elas garantem que o Estado vai agir dentro da lei.
No Brasil, os direitos humanos levam a culpa pela crise da segurança. É uma desculpa que serve para tudo. O delegado recebe suborno do tráfico de drogas. Quando cobrado por sua inação, mente que não faz nada por causa dos direitos humanos.
O governante que não sabe equipar, treinar e remunerar uma polícia eficiente mente que as ONGs de defesa dos direitos humanos lhe amarram as mãos. O deputado, o juiz, todos dizem que a culpa é do barbudinho da faculdade de humanas que tem muito menos poder do que eles.
Não faz sentido. A grande maioria dos homicídios no Brasil não são solucionados. Isto é, mesmo se você quiser autorizar a polícia a matar todos os culpados, ninguém sabe quem são os culpados pela grande maioria dos crimes cometidos no Brasil.
Se tivéssemos como investigar a contento, provavelmente já seríamos organizados o suficiente para não precisarmos matar ninguém que não estivesse atirando em nossa direção.
Se tirarmos da frente a ilusão de que o problema da segurança pública são os direitos humanos, nossa vida ficará mais difícil.
Teremos que encarar questões complexas sobre como organizar a polícia, como melhorar as leis. Debateremos problemas mais difíceis, mas, pelo menos, debateremos problemas reais.
A defesa dos direitos humanos tem uma dimensão moral, relacionada à dignidade da pessoa humana —inclusive dos criminosos sob a guarda do Estado. Esses valores são os que definem o liberalismo político e a civilização moderna.
Os países que consideramos desenvolvidos são os que mais respeitam os direitos humanos. O "agir dentro dos limites da lei" diante de criminosos é só um caso da regra geral "agir dentro dos limites da lei".
Mas essa coluna não é uma pregação moral. É um conselho de prudência sobre quanto poder devemos dar aos funcionários do Estado.
Não é "pena de bandido" que inspira quem defende que os policiais só possam agir dentro da lei. É medo de entregar para os policiais, que são seres humanos como todos os outros, poderes de vida e morte típicos de ditador.
A história não sugere que uma porcentagem grande dos ditadores soube usar seu poder com parcimônia.
Não se trata de discutir se o criminoso é santo, mas de admitir que o Estado não é.
Os episódios recentes de violência policial mostram bem isso. Quando Tarcísio e Derrite sinalizaram que a polícia não prestaria mais contas a ninguém, um policial se sentiu à vontade para jogar um cidadão brasileiro do alto da ponte.
Sabe as "amarras do sistema" que você achava que impediam o combate ao crime? Na verdade, elas impediam a polícia de jogar gente do alto da ponte.
Sim, as câmeras corporais colocam limites ao que o policial deve fazer. Mas também lhes dificultam receber suborno, jogar gente da ponte, omitir-se diante de um crime que deveriam reprimir.
Elas também registram atos de heroísmo policial, momentos em que policiais recusam suborno, ajudam a analisar o que deu certo ou errado em uma dada operação. E, sobretudo: elas garantem que o Estado vai agir dentro da lei.
No Brasil, os direitos humanos levam a culpa pela crise da segurança. É uma desculpa que serve para tudo. O delegado recebe suborno do tráfico de drogas. Quando cobrado por sua inação, mente que não faz nada por causa dos direitos humanos.
O governante que não sabe equipar, treinar e remunerar uma polícia eficiente mente que as ONGs de defesa dos direitos humanos lhe amarram as mãos. O deputado, o juiz, todos dizem que a culpa é do barbudinho da faculdade de humanas que tem muito menos poder do que eles.
Não faz sentido. A grande maioria dos homicídios no Brasil não são solucionados. Isto é, mesmo se você quiser autorizar a polícia a matar todos os culpados, ninguém sabe quem são os culpados pela grande maioria dos crimes cometidos no Brasil.
Se tivéssemos como investigar a contento, provavelmente já seríamos organizados o suficiente para não precisarmos matar ninguém que não estivesse atirando em nossa direção.
Se tirarmos da frente a ilusão de que o problema da segurança pública são os direitos humanos, nossa vida ficará mais difícil.
Teremos que encarar questões complexas sobre como organizar a polícia, como melhorar as leis. Debateremos problemas mais difíceis, mas, pelo menos, debateremos problemas reais.
Intentona sem pé nem cabeça
A reação popular e institucional ao autogolpe presidencial na Coreia do Sul suscita uma ponderação sobre a força da instituição no enfrentamento da trama golpista entre nós. Instituição, recorde-se, é um modo regulatório da vida social que funciona por um "fazer saber", constitutivo do processo de subjetivação. É o que fazem família, escola, religião e o próprio exército, instâncias pertinentes à convivência humana. Nelas Jean-Paul Sartre divisou uma característica contraditória, como conceito de algo inerte e, ao mesmo tempo, transformador.
A inércia cabe à parte estruturada, pretensamente imóvel. Reduzir processos vitais a "estruturas", aliás, é o vezo das ciências sociais desde fins do século 19, em tradições intelectuais europeias e norte-americanas. Por isso, o profundo mal-estar civilizatório conhecido como racismo continua a ser analisado como "estrutural" quando, no entanto, se trata de seres humanos em movimento, em entrecruzamentos múltiplos, numa situação histórica de extração colonialista. A força motriz da mudança não está na estrutura, mas na oscilação, na luta social.
No golpe militar de 64 havia algum peso da estrutura, na medida em que os conspiradores, embalados pela continuidade do processo de substituição de importações sem alterar o capitalismo dependente, assombravam-se com os rescaldos ideológicos da Guerra Fria. No imaginário, o bicho-papão comunista estaria à espreita para expropriar latifundiários e devorar criancinhas. Como diziam agir por procuração divina, golpe era palavra grosseira, a ser trocada por "revolução". Deus golpista? Não, revolucionário.
Na recente intentona, ninguém estava preocupado com estrutura nenhuma, porque nem sequer saberiam o que é isso, nem havia pelas costas nenhuma operação "Brother Sam", com porta-aviões para a eventualidade de uma resistência. A sedição sem fundamento ocorria dentro do funcionamento contraditório de aparatos do Estado, com posições divergentes: adesões, hesitações e recuos.
O golpe era também tentativa de auto-organização, pois se jogava à cabra-cega, num ambiente de barata-voa. Nas mensagens trocadas, as autodefinições falavam sozinhas: "grupo de malucos", "rataria", "aloprados". Antes de qualquer assassinato, torturavam o vernáculo. Poderiam ter sido contidos por uma prova de português do Enem.
Tratou-se de uma disfunção da instituição, contra ela própria enquanto núcleo de estabilidade. Instituição é feita de gente concreta e diversa. E a luta hoje não se trava entre abstrações como classes e ideologias, e sim entre indivíduos. A crueldade pessoal tem lugar de fala.
Vale, assim, considerar o estado psíquico de insurretos que procuram gato preto em quarto escuro inexistente. Foi o caso do presidente sul-coreano, numa intentona sem pé nem cabeça. Entre nós, militares querendo encontrar "comunismo" num país conservador, sem guerras, que os contempla em 2025 com um orçamento próprio de US$ 133 bilhões, valor maior do que o PIB da maioria dos países do mundo. Sem real motivação, resta um especial narcisismo sádico, em ações que envergonham Deus, pátria e família.
Daí a resistência de sujeitos institucionais, empenhados em afastar a nação do abismo. O golpe foi evitado por dois generais e pela hombridade de guardiões da Constituição, depois desvelado pela investigação exemplar da Polícia Federal. Mas fracassado também, no fundo, pela outra face da crueldade, a covardia, do suposto maior interessado, que amarelou, escafedeu-se, foi chorar pitangas na Disney.
A inércia cabe à parte estruturada, pretensamente imóvel. Reduzir processos vitais a "estruturas", aliás, é o vezo das ciências sociais desde fins do século 19, em tradições intelectuais europeias e norte-americanas. Por isso, o profundo mal-estar civilizatório conhecido como racismo continua a ser analisado como "estrutural" quando, no entanto, se trata de seres humanos em movimento, em entrecruzamentos múltiplos, numa situação histórica de extração colonialista. A força motriz da mudança não está na estrutura, mas na oscilação, na luta social.
No golpe militar de 64 havia algum peso da estrutura, na medida em que os conspiradores, embalados pela continuidade do processo de substituição de importações sem alterar o capitalismo dependente, assombravam-se com os rescaldos ideológicos da Guerra Fria. No imaginário, o bicho-papão comunista estaria à espreita para expropriar latifundiários e devorar criancinhas. Como diziam agir por procuração divina, golpe era palavra grosseira, a ser trocada por "revolução". Deus golpista? Não, revolucionário.
Na recente intentona, ninguém estava preocupado com estrutura nenhuma, porque nem sequer saberiam o que é isso, nem havia pelas costas nenhuma operação "Brother Sam", com porta-aviões para a eventualidade de uma resistência. A sedição sem fundamento ocorria dentro do funcionamento contraditório de aparatos do Estado, com posições divergentes: adesões, hesitações e recuos.
O golpe era também tentativa de auto-organização, pois se jogava à cabra-cega, num ambiente de barata-voa. Nas mensagens trocadas, as autodefinições falavam sozinhas: "grupo de malucos", "rataria", "aloprados". Antes de qualquer assassinato, torturavam o vernáculo. Poderiam ter sido contidos por uma prova de português do Enem.
Tratou-se de uma disfunção da instituição, contra ela própria enquanto núcleo de estabilidade. Instituição é feita de gente concreta e diversa. E a luta hoje não se trava entre abstrações como classes e ideologias, e sim entre indivíduos. A crueldade pessoal tem lugar de fala.
Vale, assim, considerar o estado psíquico de insurretos que procuram gato preto em quarto escuro inexistente. Foi o caso do presidente sul-coreano, numa intentona sem pé nem cabeça. Entre nós, militares querendo encontrar "comunismo" num país conservador, sem guerras, que os contempla em 2025 com um orçamento próprio de US$ 133 bilhões, valor maior do que o PIB da maioria dos países do mundo. Sem real motivação, resta um especial narcisismo sádico, em ações que envergonham Deus, pátria e família.
Daí a resistência de sujeitos institucionais, empenhados em afastar a nação do abismo. O golpe foi evitado por dois generais e pela hombridade de guardiões da Constituição, depois desvelado pela investigação exemplar da Polícia Federal. Mas fracassado também, no fundo, pela outra face da crueldade, a covardia, do suposto maior interessado, que amarelou, escafedeu-se, foi chorar pitangas na Disney.
Moribundo Constipado: Anistia?
As últimas semanas foram marcadas pelo debate sobre a possibilidade de anistia diante dos atos criminosos de 8 de janeiro de 2023. Diante disso, este texto aparece como um exercício de memória, para que retomemos alguns acontecimentos dos últimos anos, além de um convite à reflexão.
É difícil acreditar que o “8 de janeiro” realmente aconteceu, tamanha a bizarrice. Qualquer pessoa com algum vestígio de sanidade – sim, elas existem -, em algum momento se perguntou: isso realmente aconteceu? Pessoas rezando para pneu, pessoas pedindo intervenção militar, pessoas adultas e pirracentas questionando o resultado da urna segundo a regra “se meu candidato vencer, a urna é honesta. Caso contrário, foi fraude”. Tudo muito inacreditável para o século XXI. Realmente, estamos vivendo um surto coletivo.
Pedro Sanchez, nos últimos dias, em importante discurso, resumiu a extrema direita como a ala que vai contra qualquer avanço social plausível e possível. “Vai ser bom para o povo? Então, sou contra. É inteligente? Então, sou contra”. E mais: qualquer medida minimamente benéfica é classificada como comunista. Esse é o binarismo imbecil e retrógrado no qual a direita extrema chafurda dia após dia. Vai contra os avanços sociais, contra as minorias, contra as evidências científicas comprovadas há séculos, vai contra as artes. O mais importante é ir contra, fazer barulho e espernear.
Relembrando: é essa extrema direita que passou os últimos anos falando que ‘bandido bom é bandido morto’. A categoria ‘bandido’, para essa gente, tem cor e endereço. Defecar no Supremo Tribunal Federal, quebrar um relógio do século XVII, depredar a sede do poder político institucional federal e se tostar sobre uma cama de explosivos com o nítido objetivo de promover um atentado terrorista, para eles, não são práticas de bandidos.
Essa é a gente orquestrada pelo covarde manda-chuva constipado. Ele não faz nada, nunca fez. Nunca teve peito para assumir nenhum de seus atos. Porém, ele fundou uma seita sem que isso fosse dito de forma transparente. A seita é maior que ele, até porque ele é minúsculo. A seita, embora desprezível, burra e desajustada, é grande. Ele faz com que façam por ele, como qualquer manda-chuva esperto e covarde. Na emergência, forja-se internação hospitalar. Com fotógrafos, sempre.
O manda-chuva, como todo mafioso, embora mais histérico, cafona, estúpido, rústico, deselegante, bravateiro, arruaceiro, marginal e incivilizado do que um mafioso que se preze, se porta como um arauto da retidão. Foi ele mesmo que matou centenas de milhares de pessoas por não acreditar em um método preventivo comprovadamente seguro. Como ele sempre consegue se superar, ainda debochou das mortes e das famílias. Foi esse mesmo mafioso que colocou toda e qualquer instituição de produção de conhecimento científico sistematizado em um patamar deplorável de descrédito. Foi esse mesmo gângster que colocou artistas falidos, esquecidos e sorumbáticos em seu entendimento de arte, dando a eles cargos estratégicos, pois a arte de verdade cuspiu esses artistas para o ostracismo, pois eles não servem mais. Para nada. É importante relembrar aqui a fala do constipado: “O Presídio de Pedrinhas é um spa”. Por que, então, o desespero pela anistia? É importante resgatar também um dado estratégico: todo e qualquer dono de seita precisa de um séquito de pessoas intelectualmente mortas.
Como todo idiota, a inconsequência foi convocada e respondeu à chamada de forma rápida. É bem provável que atos como rezar para pneus, criar fake News, se agarrar a um caminhão em movimento, marchar gritando (apesar da artrose), xingar o alto escalão do Judiciário tenham sido vistos como pequenas travessuras. A coisa começou a desandar quando viram que tais atos são criminosos. É claro que já sabiam disso, pois a extrema direita sem crime vira ar poluído ou adubo. A extrema direita é fundamentalmente criminosa. Se há algo a separar a direita e a extrema direita é o apreço desta pela marginalidade, delinquência e ilicitude. O que eles não sabiam é que outras pessoas também saberiam disso e fariam com que a seita pagasse pelos crimes cometidos. E não há outro caminho: criminosos serão tratados como tal. Talvez tenham se assustado por não se enxergarem nessa posição. Mas a vida é como é.
Para piorar, recentemente investigações descobriram que o golpe de Estado estava sendo planejado pelo alto escalão das forças armadas e pelo único presidente que foi incompetente a ponto de não conseguir reeleição desde a redemocratização do país. Mas convenhamos, que para matar pessoas e roubar joias ele leva algum jeito.
O Brasil tem como um de seus pilares sociopolíticos a punição exemplar, tal fato é inegável. O desfecho da revolta Felipe dos Santos, todo o cenário montado para o julgamento e execução de Tiradentes, os castigos aplicados a pessoas escravizadas, as operações policiais, esses e tantos outros eventos possuem a visibilidade como um de seus objetivos. Não é a punição, apenas. É a punição assistida. Isso vem desde que o Brasil é Brasil. E a luz no fim do túnel não aparece.
A extrema direita, flagiciosa e atroz, como sempre foi, defende tudo isso. É ela quem defende a execução de bandidos; é ela que, em caso de discordância, ordena que levemos bandidos para nossas casas se for para mantê-los vivos; é ela que compara presídio a hotel, mesmo sabendo que o sistema prisional brasileiro é uma fábrica de membros de facções criminosas por ser impossível querer melhorar naquelas condições degradantes. Tudo em nome de Deus. E, agora, ela chora pedindo clemência. Merece? Se uma pessoa pobre que furta comida ou fralda – o que está errado, diga-se de passagem – merece apodrecer na cadeia, segundo a própria extrema direita, o que merece uma turba desordeira, disforme e delinquente que trama um golpe de Estado em um país que nunca consegue respirar com calma por vivenciar, experimentar e construir uma democracia decente? O que esse povo merece?
A necessidade de refundação de um país guiado por princípios minimamente democráticos soa como urgência, apesar da vaguidão. O próprio conceito de democracia possui inconsistências e o que pode ser democrático para um, pode não ser para outro. Atravessamos – e continuamos atravessando – um período marcado pela presença de uma seita em escala nacional, com muitas das atrocidades mencionadas ao longo do texto aqui apresentado. A refundação exige que pilares sejam estabelecidos a partir da alteridade, a partir do outro. Isso colocaria fim a uma ideia cínica de que tudo pode ser liberdade de expressão. A ideia de uma única democracia em moldes liberais é tão obtusa quanto a sacralização de um pneu em frente a um quartel de alguma cidadezinha. Isso precisa ser revisto. O projeto de fortalecimento da democracia exige diálogo, exige apreço pela diversidade, exige respeito, exige observação e exige astúcia, atributos que nunca estiveram presentes na extrema direita. Sem anistia.
Giam C. C. Miceli
É difícil acreditar que o “8 de janeiro” realmente aconteceu, tamanha a bizarrice. Qualquer pessoa com algum vestígio de sanidade – sim, elas existem -, em algum momento se perguntou: isso realmente aconteceu? Pessoas rezando para pneu, pessoas pedindo intervenção militar, pessoas adultas e pirracentas questionando o resultado da urna segundo a regra “se meu candidato vencer, a urna é honesta. Caso contrário, foi fraude”. Tudo muito inacreditável para o século XXI. Realmente, estamos vivendo um surto coletivo.
Pedro Sanchez, nos últimos dias, em importante discurso, resumiu a extrema direita como a ala que vai contra qualquer avanço social plausível e possível. “Vai ser bom para o povo? Então, sou contra. É inteligente? Então, sou contra”. E mais: qualquer medida minimamente benéfica é classificada como comunista. Esse é o binarismo imbecil e retrógrado no qual a direita extrema chafurda dia após dia. Vai contra os avanços sociais, contra as minorias, contra as evidências científicas comprovadas há séculos, vai contra as artes. O mais importante é ir contra, fazer barulho e espernear.
Relembrando: é essa extrema direita que passou os últimos anos falando que ‘bandido bom é bandido morto’. A categoria ‘bandido’, para essa gente, tem cor e endereço. Defecar no Supremo Tribunal Federal, quebrar um relógio do século XVII, depredar a sede do poder político institucional federal e se tostar sobre uma cama de explosivos com o nítido objetivo de promover um atentado terrorista, para eles, não são práticas de bandidos.
Essa é a gente orquestrada pelo covarde manda-chuva constipado. Ele não faz nada, nunca fez. Nunca teve peito para assumir nenhum de seus atos. Porém, ele fundou uma seita sem que isso fosse dito de forma transparente. A seita é maior que ele, até porque ele é minúsculo. A seita, embora desprezível, burra e desajustada, é grande. Ele faz com que façam por ele, como qualquer manda-chuva esperto e covarde. Na emergência, forja-se internação hospitalar. Com fotógrafos, sempre.
O manda-chuva, como todo mafioso, embora mais histérico, cafona, estúpido, rústico, deselegante, bravateiro, arruaceiro, marginal e incivilizado do que um mafioso que se preze, se porta como um arauto da retidão. Foi ele mesmo que matou centenas de milhares de pessoas por não acreditar em um método preventivo comprovadamente seguro. Como ele sempre consegue se superar, ainda debochou das mortes e das famílias. Foi esse mesmo mafioso que colocou toda e qualquer instituição de produção de conhecimento científico sistematizado em um patamar deplorável de descrédito. Foi esse mesmo gângster que colocou artistas falidos, esquecidos e sorumbáticos em seu entendimento de arte, dando a eles cargos estratégicos, pois a arte de verdade cuspiu esses artistas para o ostracismo, pois eles não servem mais. Para nada. É importante relembrar aqui a fala do constipado: “O Presídio de Pedrinhas é um spa”. Por que, então, o desespero pela anistia? É importante resgatar também um dado estratégico: todo e qualquer dono de seita precisa de um séquito de pessoas intelectualmente mortas.
Como todo idiota, a inconsequência foi convocada e respondeu à chamada de forma rápida. É bem provável que atos como rezar para pneus, criar fake News, se agarrar a um caminhão em movimento, marchar gritando (apesar da artrose), xingar o alto escalão do Judiciário tenham sido vistos como pequenas travessuras. A coisa começou a desandar quando viram que tais atos são criminosos. É claro que já sabiam disso, pois a extrema direita sem crime vira ar poluído ou adubo. A extrema direita é fundamentalmente criminosa. Se há algo a separar a direita e a extrema direita é o apreço desta pela marginalidade, delinquência e ilicitude. O que eles não sabiam é que outras pessoas também saberiam disso e fariam com que a seita pagasse pelos crimes cometidos. E não há outro caminho: criminosos serão tratados como tal. Talvez tenham se assustado por não se enxergarem nessa posição. Mas a vida é como é.
Para piorar, recentemente investigações descobriram que o golpe de Estado estava sendo planejado pelo alto escalão das forças armadas e pelo único presidente que foi incompetente a ponto de não conseguir reeleição desde a redemocratização do país. Mas convenhamos, que para matar pessoas e roubar joias ele leva algum jeito.
O Brasil tem como um de seus pilares sociopolíticos a punição exemplar, tal fato é inegável. O desfecho da revolta Felipe dos Santos, todo o cenário montado para o julgamento e execução de Tiradentes, os castigos aplicados a pessoas escravizadas, as operações policiais, esses e tantos outros eventos possuem a visibilidade como um de seus objetivos. Não é a punição, apenas. É a punição assistida. Isso vem desde que o Brasil é Brasil. E a luz no fim do túnel não aparece.
A extrema direita, flagiciosa e atroz, como sempre foi, defende tudo isso. É ela quem defende a execução de bandidos; é ela que, em caso de discordância, ordena que levemos bandidos para nossas casas se for para mantê-los vivos; é ela que compara presídio a hotel, mesmo sabendo que o sistema prisional brasileiro é uma fábrica de membros de facções criminosas por ser impossível querer melhorar naquelas condições degradantes. Tudo em nome de Deus. E, agora, ela chora pedindo clemência. Merece? Se uma pessoa pobre que furta comida ou fralda – o que está errado, diga-se de passagem – merece apodrecer na cadeia, segundo a própria extrema direita, o que merece uma turba desordeira, disforme e delinquente que trama um golpe de Estado em um país que nunca consegue respirar com calma por vivenciar, experimentar e construir uma democracia decente? O que esse povo merece?
A necessidade de refundação de um país guiado por princípios minimamente democráticos soa como urgência, apesar da vaguidão. O próprio conceito de democracia possui inconsistências e o que pode ser democrático para um, pode não ser para outro. Atravessamos – e continuamos atravessando – um período marcado pela presença de uma seita em escala nacional, com muitas das atrocidades mencionadas ao longo do texto aqui apresentado. A refundação exige que pilares sejam estabelecidos a partir da alteridade, a partir do outro. Isso colocaria fim a uma ideia cínica de que tudo pode ser liberdade de expressão. A ideia de uma única democracia em moldes liberais é tão obtusa quanto a sacralização de um pneu em frente a um quartel de alguma cidadezinha. Isso precisa ser revisto. O projeto de fortalecimento da democracia exige diálogo, exige apreço pela diversidade, exige respeito, exige observação e exige astúcia, atributos que nunca estiveram presentes na extrema direita. Sem anistia.
Giam C. C. Miceli
Como proteger as praias? Com ciência e natureza
Já pensou como seria Portugal sem as suas praias? Os areais são parte essencial da nossa identidade cultural e um recurso natural valioso. No entanto, a ocupação massiva do litoral e a artificialização das praias têm dificultado a sua adaptação natural às mudanças ambientais.
Em termos de areal, as praias não são mais do que acumulações de sedimentos de diferentes origens. Em Portugal, os rios são um os seus principais fornecedores. Além de serem espaços de lazer e turismo, as praias protegem o litoral da ação das ondas, funcionando como uma barreira natural ao avanço do mar e contribuindo para a nossa segurança.
A erosão costeira tem-se intensificado devido à subida mais acelerada do nível do mar, à redução do aporte sedimentar pelos rios devido à construção de barragens, à retenção de areia por obras de engenharia costeira como molhes portuários e esporões nas praias, e exploração de sedimentos costeiros para diversos fins.
Obras de prevenção e alimentação artificial da praia da Dona Ana em Lagos |
Para combater a falta de areia nas praias, uma prática comum em todo o mundo é a alimentação artificial. Esta técnica foi utilizada pela primeira vez nos EUA na década de 1920 e consiste em dragar sedimentos de locais onde tendem a acumular, como estuários, deltas e lagoas costeiras, para restabelecer praias em erosão. Em Portugal, a primeira alimentação artificial ocorreu em 1950, no Estoril.
A alimentação artificial pode ser feita de duas formas: diretamente na praia para aumentar o volume do areal (como na Costa da Caparica, em Almada) ou um pouco mais ao largo para criar bancos submersos que diminuem a energia das ondas (como na Costa Nova, em Aveiro). A qualidade do sedimento, a sua granulometria e os fatores económicos são os principais critérios de decisão.
Por outro lado, quando se dragam canais de navegação para manter o acesso a portos ou para melhorar a qualidade da água de lagoas, é frequente verificar que os sedimentos são muito mais finos, possuem muito mais conchas e são mais escuros do que os das praias. Quando estes sedimentos são depositados nas praias, algumas pessoas reagem mal ao verem o areal ficar escuro e a água ganhar uma cor nada fotogénica. Importa clarificar que esses efeitos são temporários e não têm quaisquer impactes significativos no meio ambiente ou na saúde humana. Em poucos dias, o sol e as correntes farão com que a – agora muito maior – praia recupere as suas cores.
Outro argumento habitual de quem se opõe às alimentações artificiais baseia-se na constatação de que, ao fim de uns anos ou ao fim de um temporal mais severo, o areal volta a desaparecer. Convém perguntar: o que teria acontecido a essa praia, aos paredões, aos passeios marítimos e às casas junto ao mar se o reforço extra de sedimento não tivesse sido feito? Ou seja, quando um grande temporal “apenas” leva toda a areia de uma praia, significa que a alimentação artificial teve sucesso. Sem ela, os danos poderiam ser muito mais graves, incluindo a destruição de infraestruturas e perda de vidas humanas.
A alimentação artificial é, portanto, uma medida baseada na natureza com impacte ambiental baixo e reversível, mas que requer repetição regular. Os seus efeitos colaterais são residuais se comparados com os das obras de engenharia pesada, como esporões e quebra-mares.
É, portanto, crucial assegurar que os recursos sedimentares, fluviais e costeiros, sejam geridos de forma integrada. Se até ao final da década de 90, os sedimentos comercializados, hoje, os dragados dos portos são utilizados, de forma muito mais sustentável, para alimentar praias, com 90% das alimentações artificiais a utilizarem estas fontes sedimentares.
A ciência apontou o caminho. Depois de alguns erros no passado, a governação já tomou o rumo certo. Por exemplo, em julho de 2024, assinou-se mais um protocolo para a realização de uma nova alimentação artificial na Costa da Caparica com cerca de 1 M m3. A alimentação artificial de praias é, de longe, a mais eficiente e mais sustentável forma de fazer face à erosão costeira. Apoiá-la é encorajar os nossos políticos a não voltar atrás.
Do que nos livramos
Longe de poder ser comparada às divertidas obras do cinema italiano na década de 1950 protagonizadas por Alberto Sordi ou à comédia em que o diretor Woody Allen desmoralizou os golpes de Estado numa republiqueta da América Latina na década de 1970, a tentativa de Jair Bolsonaro e seu bando de gente torpe de rasgar a Constituição, planejar o assassinato de seu sucessor, do vice-presidente eleito e de um ministro do Supremo Tribunal Federal e de substituir a democracia por uma ditadura militar despertou o País para o fato de que suas instituições políticas podem não ser tão sólidas quanto parecem.
A tentativa de golpe não se limitou a revelar crises de insubordinação no Exército, Marinha e Aeronáutica, a explicitar o risco de corrosão do princípio da autoridade nos tribunais superiores e a apontar os perigos inerentes às substituições das liberdades públicas e das garantias fundamentais pela irracionalidade, pela violência e pela impunidade. O mais grave é que o obscuro projeto de poder desse grupo golpista já circulava publicamente desde 2022, sob a forma de um documento elaborado por militares e áulicos vinculados ao Instituto General Villas Bôas. Tendo comandado o Exército entre fevereiro 2015 e janeiro de 2019, esse foi o militar que ameaçou investir contra o Supremo Tribunal Federal caso a corte não mandasse o ex-presidente Lula para a prisão, em abril de 2018.
Essa pressão não se limitou apenas a interferir radicalmente nas eleições daquele ano, retirando da eleição presidencial um dos candidatos mais competitivos à época. Ela também estimulou o pessoal desse Instituto, quatro anos mais tarde, a acreditar que teriam condições de permanecer no poder até 2035 – com Bolsonaro, por quatro anos, e algum outro militar nos dois mandatos presidenciais seguintes. Apresentando-se como um conjunto de “cenários prospectivos” formulados com base numa “revitalização dos valores morais, éticos e de civismo”, no “fortalecimento do sentimento de pátria como instrumento de coesão social”, no “combate à revolução cultural” e no propósito de “resgatar a identidade nacional”, o documento do Instituto General Villas Bôas – assinado por militares, juristas, embaixadores, educadores e doutrinadores – é um primor de delírios, de inconsequências e de absurdos. “Não se trata de uma vã tentativa de adivinhar o futuro, mas, sim, de um exercício baseado em métodos consagrados para alargar mapas mentais e identificar ameaças e oportunidades”, diz o texto em sua apresentação.
Como ele é longo, seleciono aqui algumas poucas passagens que ilustram bem a mentalidade golpista desse pessoal. Uma delas é a identificação do “globalismo como um movimento internacionalista cujo objetivo é massificar a humanidade, para dominá-la; para dirigir e controlar as relações internacionais e as dos cidadãos entre si”. No centro do globalismo estaria uma “Elite Financeira Mundial” – um “ator não estatal constituído por megainvestidores, por bancos transnacionais e por megacapitalistas”, alinhado com organismos internacionais e com ONGs e empenhado em utilizar pautas ambientalistas a reboque de seus interesses, enfraquecendo assim “a Nação em sua busca de seu desenvolvimento”.
Entre outros pecados, o globalismo e o movimento internacionalista teriam patrocinado “campanhas internacionais caluniosas para comprometer a imagem do Brasil como não cumpridor de critérios de preservação ambiental”. O globalismo e o movimento internacionalista também teriam deflagrado no Brasil “o ativismo judicial político-partidário”, levando “parte do Poder Judiciário, do Ministério Público e das Defensorias Públicas a atuarem sob um prisma exclusivamente ideológico, reinterpretando e agredindo o arcabouço legal vigente”.
No campo da educação, o documento diz que uma parcela das crianças e adolescentes brasileiros está sujeita a “uma doutrinação facciosa efetuada por professores militantes de correntes utópicas e radicais” e que as universidades públicas se transformaram “em centros de luta ideológica e de doutrinação político-partidária”. Enfatiza a “valorização dos vultos históricos do Brasil como forma de resgate da identidade nacional”, o aperfeiçoamento da “formação ética, moral e cívica dos docentes” e os esforços necessários para se “coibir a ideologização nociva do ensino que “divide a Nação”. E afirma que a percepção de liberdade no Brasil está sendo “confundida com liberalidade e falta de cidadania e espírito cívico” e com uma “liberdade de expressão sem as correlatas responsabilidades”.
Também assevera que o sistema jurídico brasileiro está submisso a “lideranças corrompidas”, razão pela qual ele “não garante leis iguais para todos”. Defende uma formação “conservadora evolucionista” para as novas gerações, ao mesmo tempo em que desqualifica os movimentos sociais e afirma que certos órgãos públicos estariam tomando “decisões ideologizadas”. Em outras passagens, o texto defende a tutela da sociedade por um estamento militar que é visto como uma “autoridade moderadora acima das instituições democráticas”.
Com uma visão de mundo da altura de um rodapé, os autores do documento se esqueceram do que a história aponta: quando um Estado dirigido com base em tanto civismo, patriotismo e formação moral define quais são seus inimigos, na prática ele tende a se converter num Estado totalitário. Não era isso que se podia depreender da leitura do AI-5, quando foi baixado em 13 de dezembro de 1968? Quando um regime político como o proposto pelo documento do Instituto General Villas Bôas almeja que todos os cidadãos cantem pelos hinos militares, o que pode ocorrer com quem quiser liberdade? Não era justamente este um dos lemas da ditadura militar de 1964 – “Brasil: ame-o ou o deixe”?
São esses os valores sombrios e as políticas sinistras a que estaríamos submetidos caso a tentativa de golpe de Bolsonaro e de seu grupo tivesse dado certo. É dessas ideias tão ultrapassadas quão perigosas para a democracia – como se depreende desse documento – que nos livramos. Se as nossas instituições funcionaram a contento, se o golpe falhou em decorrência das circunstâncias e de contingências e se o Estado brasileiro está preparado para deter novas conspirações autocráticas – estas são outras questões que ainda precisam ser discutidas com profundidade.
A tentativa de golpe não se limitou a revelar crises de insubordinação no Exército, Marinha e Aeronáutica, a explicitar o risco de corrosão do princípio da autoridade nos tribunais superiores e a apontar os perigos inerentes às substituições das liberdades públicas e das garantias fundamentais pela irracionalidade, pela violência e pela impunidade. O mais grave é que o obscuro projeto de poder desse grupo golpista já circulava publicamente desde 2022, sob a forma de um documento elaborado por militares e áulicos vinculados ao Instituto General Villas Bôas. Tendo comandado o Exército entre fevereiro 2015 e janeiro de 2019, esse foi o militar que ameaçou investir contra o Supremo Tribunal Federal caso a corte não mandasse o ex-presidente Lula para a prisão, em abril de 2018.
Essa pressão não se limitou apenas a interferir radicalmente nas eleições daquele ano, retirando da eleição presidencial um dos candidatos mais competitivos à época. Ela também estimulou o pessoal desse Instituto, quatro anos mais tarde, a acreditar que teriam condições de permanecer no poder até 2035 – com Bolsonaro, por quatro anos, e algum outro militar nos dois mandatos presidenciais seguintes. Apresentando-se como um conjunto de “cenários prospectivos” formulados com base numa “revitalização dos valores morais, éticos e de civismo”, no “fortalecimento do sentimento de pátria como instrumento de coesão social”, no “combate à revolução cultural” e no propósito de “resgatar a identidade nacional”, o documento do Instituto General Villas Bôas – assinado por militares, juristas, embaixadores, educadores e doutrinadores – é um primor de delírios, de inconsequências e de absurdos. “Não se trata de uma vã tentativa de adivinhar o futuro, mas, sim, de um exercício baseado em métodos consagrados para alargar mapas mentais e identificar ameaças e oportunidades”, diz o texto em sua apresentação.
Como ele é longo, seleciono aqui algumas poucas passagens que ilustram bem a mentalidade golpista desse pessoal. Uma delas é a identificação do “globalismo como um movimento internacionalista cujo objetivo é massificar a humanidade, para dominá-la; para dirigir e controlar as relações internacionais e as dos cidadãos entre si”. No centro do globalismo estaria uma “Elite Financeira Mundial” – um “ator não estatal constituído por megainvestidores, por bancos transnacionais e por megacapitalistas”, alinhado com organismos internacionais e com ONGs e empenhado em utilizar pautas ambientalistas a reboque de seus interesses, enfraquecendo assim “a Nação em sua busca de seu desenvolvimento”.
Entre outros pecados, o globalismo e o movimento internacionalista teriam patrocinado “campanhas internacionais caluniosas para comprometer a imagem do Brasil como não cumpridor de critérios de preservação ambiental”. O globalismo e o movimento internacionalista também teriam deflagrado no Brasil “o ativismo judicial político-partidário”, levando “parte do Poder Judiciário, do Ministério Público e das Defensorias Públicas a atuarem sob um prisma exclusivamente ideológico, reinterpretando e agredindo o arcabouço legal vigente”.
No campo da educação, o documento diz que uma parcela das crianças e adolescentes brasileiros está sujeita a “uma doutrinação facciosa efetuada por professores militantes de correntes utópicas e radicais” e que as universidades públicas se transformaram “em centros de luta ideológica e de doutrinação político-partidária”. Enfatiza a “valorização dos vultos históricos do Brasil como forma de resgate da identidade nacional”, o aperfeiçoamento da “formação ética, moral e cívica dos docentes” e os esforços necessários para se “coibir a ideologização nociva do ensino que “divide a Nação”. E afirma que a percepção de liberdade no Brasil está sendo “confundida com liberalidade e falta de cidadania e espírito cívico” e com uma “liberdade de expressão sem as correlatas responsabilidades”.
Também assevera que o sistema jurídico brasileiro está submisso a “lideranças corrompidas”, razão pela qual ele “não garante leis iguais para todos”. Defende uma formação “conservadora evolucionista” para as novas gerações, ao mesmo tempo em que desqualifica os movimentos sociais e afirma que certos órgãos públicos estariam tomando “decisões ideologizadas”. Em outras passagens, o texto defende a tutela da sociedade por um estamento militar que é visto como uma “autoridade moderadora acima das instituições democráticas”.
Com uma visão de mundo da altura de um rodapé, os autores do documento se esqueceram do que a história aponta: quando um Estado dirigido com base em tanto civismo, patriotismo e formação moral define quais são seus inimigos, na prática ele tende a se converter num Estado totalitário. Não era isso que se podia depreender da leitura do AI-5, quando foi baixado em 13 de dezembro de 1968? Quando um regime político como o proposto pelo documento do Instituto General Villas Bôas almeja que todos os cidadãos cantem pelos hinos militares, o que pode ocorrer com quem quiser liberdade? Não era justamente este um dos lemas da ditadura militar de 1964 – “Brasil: ame-o ou o deixe”?
São esses os valores sombrios e as políticas sinistras a que estaríamos submetidos caso a tentativa de golpe de Bolsonaro e de seu grupo tivesse dado certo. É dessas ideias tão ultrapassadas quão perigosas para a democracia – como se depreende desse documento – que nos livramos. Se as nossas instituições funcionaram a contento, se o golpe falhou em decorrência das circunstâncias e de contingências e se o Estado brasileiro está preparado para deter novas conspirações autocráticas – estas são outras questões que ainda precisam ser discutidas com profundidade.
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