domingo, 9 de janeiro de 2022

Humanidade às cegas

Tanto jornal, tanta rádio, tanta agência de informações, e nunca a humanidade viveu tão às cegas. Cada hora que passa é um enigma camuflado por mil explicações. A verdade, agora, é uma espécie de sombra da mentira.

Miguel Torga

As obstruções não param

A obstrução mental de Jair Bolsonaro não o impede, como a outra, de expelir suas produções repulsivas. Foi assim que, abalado ainda por uma das obstruções —a que o pôs em pânico e em prantos pelo medo de estar morrendo— retomou as falas incisivas contra a vacinação preventiva da Covid em crianças e suas consequências, já avançada mundo afora. A razão que outra vez liberou sua voracidade homicida só pode estar no apagamento aplicado às conclusões da CPI da Covid.

A proteção assegurada desse modo a Bolsonaro por Augusto Aras, procurador-geral da República, contém, no entanto, duas contradições. Uma, óbvia, está na finalidade de (também) obstrução da Justiça por parte de quem deve combater esse recurso criminoso.

A segunda vem de Bolsonaro contra Bolsonaro: suas falas antivacinação infantil confirmam de viva voz as conclusões sobre sua perversidade intencional, as determinações aos vassalos Pazuello e Queiroga, a indução de tratamento impróprio. E, sinal definitivo logo ao início, a dispensa e depois, como agora, a protelação da compra de vacinas.


Por si só, esse novo capítulo da obra homicida de Bolsonaro seria suficiente para ações no Tribunal Internacional, na Corte de Direitos Humanos da OEA quando Luis Almagro for retirado de lá e na Comissão de Direitos Humanos da ONU. Mesmo que o Judiciário brasileiro venha a deixá-lo em paz com seus atos mortíferos, a cada é dia mais improvável que Bolsonaro e asseclas passem por inocentes, e livres de problemas, no exterior.

Mas tal probabilidade não decorre, como substituta, da atitude de Augusto Aras. Nesta surgiu o ponto de partida da pregação e da inoperância governamental comprometidas na situação de crianças indefesas, dezenas de milhões, ao adoecimento e demais riscos por falta do principal preventivo. Nem as esperáveis represálias internacionais atenuam o dever do Supremo de encarar a conduta de Aras com o rigor requerido pela gravidade.

Para não instaurar de imediato o inquérito subsequente à CPI, Aras pretextou a necessidade de investigações preliminares. Era, porém, o que já estava em suas mãos, nas conclusões da CPI, e aí levadas até muito adiante. O Supremo não endossou o desvio. Nem por isso a tramitação do caso tomou o rumo e o ritmo próprios de qualquer caso. E nesse mais prementes, por se voltar para quase 630 mil mortes, além das incontáveis subnotificações.

Silenciar ou desviar o extraordinário resultado da CPI consiste não só em impunidade, mas também em permissividade para a continuação de crimes contra a população. É o que fazem Bolsonaro, o ex-médico Marcelo Queiroga e o engavetador-mor Augusto Aras, três aventureiros do cinismo e da exploração criminal do Estado e dos poderes de governo.

Os prazos fixados pelo Supremo, para certas medidas de Bolsonaro e do Ministério da Saúde, foram um começo. Não o necessário em respeito às instituições ultrajadas por práticas criminosas, como provado pela CPI. E em igual respeito aos pais e mães, filhos, netos e avós, cientistas, médicos e enfermeiros, escritores e músicos, trabalhadores de todos os trabalhos, atingidos pela mortandade a que foi juntado, sim, um genocídio —ainda não cessado e agora dirigindo-se a crianças.

É puro ouro

O general Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, anulou suas sete autorizações para garimpo de ouro em áreas preservadas do Amazonas e onde vivem dezenas de povos indígenas. Assim justificou o recuo: "Considerando as novas informações técnicas e jurídicas, apresentadas diretamente ao GSI", e segue.

A justificativa é falsa —velha característica das justificativas de Augusto Heleno.

Nada gerou informação nova sobre a área. Ou Augusto Heleno presenteou as concessões apesar do que sabia a respeito da área e dos privilegiados, ou as fez sem saber mais do que os interesses a serem agraciados. Nas duas hipóteses, cometeu prevaricação. Mais uma delinquência.

A anulação se deu, meio às pressas, em vista da decisão de Lucas Furtado, um procurador da República de olhos abertos: investigar no Tribunal de Contas as concessões a grupos já embargados pelo Ibama e a chefes de garimpo ilegal com dragas fluviais.

Investigar o motivo dessas concessões, e de mais 74 feitas antes por Augusto Heleno, aborreceria organizações originárias de São Paulo e Rio, mas seria muito interessante. Na política, na Justiça e na caserna.

Bolsonaro foi medicado, passa bem e não corre risco de começar a trabalhar

Após se recuperar da última internação, o presidente Jair Messias Bolsonaro retomou o tratamento preventivo ao trabalho. “Voltei a tomar hidroxiprocrastina, porra. As férias continuam”, celebrou numa rede social que é atualizada pelo filho, pois publicar sozinho dá muito trabalho. Em seguida subiu numa lancha e dançou “Ragatanga”.

A hidroxiprocrastina é indicada para pessoas que querem evitar a fadiga. O medicamento age no organismo provocando procrastinação ampla, geral e irrestrita. Além de preguiça generalizada, aversão a responsabilidades e ojeriza a compromissos. Entre os efeitos colaterais mais comuns estão a criação de uma realidade paralela para justificar a eterna inércia e a mitomania. Uma raiva febril pode emergir quando o paciente é pressionado a tomar atitudes. Erupções cutâneas costumam aparecer em caso de contato com carteiras de trabalho.


O uso da hidroxiprocrastina na prevenção ao trabalho, no entanto, não tem comprovação científica. Segundo especialistas, conseguir a comprovação científica de um medicamento dá muito trabalhonão corre risco de começar a trabalhar.

O presidente faz uso da hidroxiprocrastina desde a adolescência. O medicamento foi fundamental para que Bolsonaro fosse eleito sem elaborar um programa de governo, sem ter aprovado nenhum projeto de lei em décadas como parlamentar, sem ter feito nada relevante no Exército a não ser levantar suspeitas de planejar atos terroristas. Mas mesmo o plano de botar bombas no Guandu, divulgado pela revista Veja, nunca saiu do papel. Executar um atentado terrorista, como se sabe, dá muito trabalho.

Médicos alertam para as evidências de que Bolsonaro tem aumentado a dosagem do medicamento quando se sente acuado. “Quando o presidente recebeu as denúncias da Covaxin, ele tomou um tubo PVC inteiro de comprimidos. De lá pra cá, Bolsonaro aderiu à versão da hidroxiprocrastina em spray porque, segundo ele, engolir comprimidos dá muito trabalho”, explicou o médico Túlio Pessegueira.

Os efeitos de uma overdose de hidroxiprocrastina ainda não mereceram um estudo aprofundado, que daria muito trabalho. Mas estima-se que o paciente seja capaz de tomar atitudes drásticas para manter seu estado de procrastinação. Como, por exemplo, numa situação hipotética, dar um golpe de Estado para não ter trabalho de disputar nas urnas.

Mais um ano para Bolsonaro piorar

Superação é a marca mais notável do assim chamado governo de Jair Bolsonaro. O médico Marcelo Queiroga é pior que o general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde. O ministro da Educação, Milton Ribeiro, é tão incompetente quanto seu antecessor, mas avançou um passo, ao proibir a exigência, nas universidades federais, do comprovante de vacina. Teve de recuar, por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), mas poderá atacar de novo, a qualquer momento, se for açulado por seu chefe. O próprio Bolsonaro lidera a conquista de novos patamares de irresponsabilidade e barbárie. Em 2020, atrasou e dificultou a vacinação de adultos contra a covid-19, negando proteção a milhares de vidas. Sua nova façanha, mais sinistra, foi retardar a imunização de crianças de 5 a 11 anos – desprezando parecer da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – e, ainda, incitar seus seguidores contra funcionários da agência. Mais lances macabros poderão surgir nos próximos meses, no sombrio cenário econômico e político previsível para um ano de intensa disputa eleitoral.


O alerta mais estridente partiu dele mesmo no início do ano passado. Algo parecido com a invasão do Congresso americano, em 6 de janeiro de 2021, poderia ocorrer no Brasil, em 2022, avisou Bolsonaro. Várias foram as ameaças golpistas insinuadas por ele, em sua campanha contra o voto eletrônico. Palavras ameaçadoras também foram dirigidas ao STF, especialmente aos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Depois das manifestações antidemocráticas de 7 de setembro, houve uma declaração de trégua, aconselhada pelo ex-presidente Michel Temer. Mas seria imprudência levar a sério esse aparente recuo. Para isso seria preciso desconsiderar três anos de manifestações autoritárias e personalistas, voltadas principalmente para os interesses individuais e familiares do chefão do Executivo.

Bolsonaro jamais assumiu de fato as funções e responsabilidades presidenciais, mas nunca deixou de proclamar seu poder de mando. Como grande mandachuva, interveio na publicidade do Banco do Brasil, deu palpites nos preços da Petrobras, desarticulou a proteção ambiental, ofendeu parceiros comerciais do País, desprezou o Mercosul e devastou os Ministérios da Educação e da Saúde.

Dificilmente alguém terá esquecido, mas vale a pena lembrar: diante da pandemia, o presidente desprezou a ciência, defendeu o uso de drogas sem eficácia – e até perigosas para alguns pacientes – e conclamou os brasileiros a se expor ao contágio, em busca de uma suposta imunidade de rebanho. Ele desprezou a mortandade, negou ser coveiro e recusou tratar do assunto com a imprensa. Foi fiel a seu currículo, na quinta-feira passada, quando negou saber de mortes de crianças causadas pela pandemia e questionou os interesses de quem defende a vacinação do público infantil.

Segundo dados oficiais, 301 crianças com idades entre 5 e 11 anos morreram de covid-19 até 6 de dezembro. Nenhuma outra doença prevenível por vacina causou tantas mortes nessa faixa de idade, nesse período, de acordo com especialistas. Se Bolsonaro conhecia esses dados, mentiu. Se os desconhecia, foi por negligência, por mau assessoramento ou pelos dois fatores, frequentemente combinados em sua desastrosa carreira presidencial.

Mais uma vez, Bolsonaro aproveitou a divergência para atacar os técnicos da Anvisa, questionando seus propósitos. “Qual o interesse da Anvisa por trás disso aí? Qual o interesse daquelas pessoas taradas por vacina? É pela sua vida? É pela saúde? Se fosse, estariam preocupados com outras doenças no Brasil, e não estão.”

Um discurso como esse justificaria a destituição do síndico de um prédio. Mas é insuficiente, no Brasil de hoje, para derrubar um presidente conhecido por seu desprezo à saúde e à vida, direitos consagrados internacionalmente e reconhecidos na Constituição. Talvez isso mude, nos próximos meses, se ele continuar afundando nas pesquisas, mas qualquer previsão, neste momento, é muito insegura. Basta pensar na presidência da Câmara, nos aliados moralmente próximos de Bolsonaro, no padrão atual da Procuradoria-Geral da República e nas possibilidades de atendimento ao Centrão, faminto devorador de verbas.

Por enquanto, a neutralização de Bolsonaro como desgraça nacional parece depender principalmente dele mesmo. A lista de crimes elaborada pela CPI da Covid e por juristas só produzirá efeitos quando ele se tornar um peso excessivo para seus apoiadores. Devem contribuir para isso a inflação acelerada, o desemprego elevado, o empobrecimento e a estagnação econômica prevista para 2022. Ainda assim, ele poderá resistir até a eleição.

Neste caso, se nenhuma grande estupidez for cometida por outros candidatos, ele talvez caia antes do segundo turno. Mas o País terá de suportar suas barbaridades, incluídas, talvez, novas manobras golpistas, até o fim do ano. Não há como desprezar a capacidade bolsonariana de autossuperação para pior. Todos devem ficar atentos também às crianças de menos de cinco anos.

A certeza da incerteza

Os dois anos de pandemia vieram demonstrar, da forma mais global e eloquente, que a incerteza faz sempre parte do jogo da vida. Enquanto humanos, muito mais do que as outras espécies animais, temos esta capacidade, apurada por anos de evolução, de conseguir planear e até ler, com alguma acurácia, os sinais do futuro – mas não podemos admirar-nos quando tudo muda repentinamente. Geralmente, somos surpreendidos quando ficámos a olhar para os sinais errados, menosprezando as indicações ou as informações que poderiam ter-nos posto de sobreaviso. A ainda curta história deste século tem sido pródiga a demonstrá-lo: o mundo acordou horrorizado e espantado com os ataques de 11 de setembro de 2001, mas depois percebeu-se que, afinal, os serviços secretos americanos tinham recebido diversos alertas sobre o que estava a ser preparado; as grandes agências de rating foram incapazes de prever a crise financeira de 2008, apesar dos sinais evidentes que se iam acumulando; finalmente, o mundo inteiro ficou surpreendido com a erupção de uma pandemia de coronavírus, há anos anunciada por umas quantas vozes que, como se viu, pouco eram escutadas.

É importante ter consciência disso, nesta época, em que todos, de uma forma ou de outra, nos dedicamos ao exercício de fazer o balanço dos últimos 12 meses e tentamos, em simultâneo, projetar os próximos 12, com as habituais e tantas vezes ilusórias resoluções de Ano Novo.

O futuro é, por natureza e definição, sempre incerto, como o 2022 se encarregará de demonstrar, uma vez mais. E se há certeza que podemos ter é a de que continuaremos a viver com incertezas. Não devemos esperar, aliás, outra coisa em relação à evolução da Covid-19. E se aceitarmos esse facto, mais depressa deixaremos de aceitar que o espaço público seja continuamente inundado por vozes repletas de certezas, sempre a prometer um futuro que depois raramente se concretiza. O que se pede em matéria de saúde pública – e no combate a um vírus que há apenas dois anos ninguém sabia que existia e cujo comportamento continua a ser imprevisível – é, acima de tudo, mais humildade na comunicação e menos ânsia em querer ser o primeiro a trazer as “boas notícias”. A grande falha nas previsões radica sempre no mesmo problema: em concentrar a atenção e o discurso não na realidade, mas antes naquilo que gostaríamos que ela fosse – negligenciando os riscos mais difíceis de perceber e valorizando, tantas vezes, a solução mais fácil.

Já se percebeu que até poderemos libertar-nos da pandemia, mas não vamos libertar-nos tão cedo do vírus. Ele vai continuar a andar por aí. E, mesmo que adote versões menos malignas, ainda demorará algum tempo até percebermos todos os efeitos que este SARS-CoV-2 causa nos organismos que infetou. Para já, por exemplo, ficámos a saber por um estudo publicado na Nature que o vírus é capaz de se espalhar por todo o corpo e permanecer durante meses nos mais diversos órgãos. E ao termos a certeza desse facto aumenta, naturalmente, a incerteza sobre os efeitos da chamada Covid longa, que continuará a preocupar os profissionais de saúde sabe-se lá até quando.

O que podemos esperar deste 2022 é que algumas realidades que dávamos como certas vão ser abaladas e até, quem sabe, substituídas por outras. É isso que sucederá, de forma natural, se deixarmos a ciência seguir o seu caminho, sem interferências. E um dos acontecimentos mais excitantes que se preveem para o próximo ano é o da entrada em funcionamento do novo e superpotente telescópio espacial James Webb – um aparelho que vai permitir-nos ver algo que existe, mas que sempre esteve invisível para os nossos olhos. Vai ajudar-nos também a perceber melhor o nosso lugar na imensidão de um universo que, finalmente, poderemos passar a conhecer melhor. Esperam-se descobertas entusiasmantes – de certeza!