quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Pensamento do Dia

 

Ramsés (Suíça)

Computação quântica, inteligência artificial e o homo sapiens sapiens: O futuro de hoje

Este crescimento exponencial da tecnologia do chip ajudou a revolucionar a indústria da computação, permitindo máquinas mais rápidas e mais confiáveis que poderiam ser usadas para uma gama cada vez maior de aplicações. Serviu como uma pedra angular no desenvolvimento de computadores.

Hoje nossos aparelhos celulares tem a capacidade computacional superior a muitos dos nossos computadores pessoais, que nesse momento já excedem a necessidade básica de trabalho e entretenimento pessoal, da maioria das pessoas na pesquisa. Dito isto, questionamos se a lei de Moore vai se esvair pela falta de necessidade pessoal de tanto hardware e processamento? Claro que não, essa capacidade vai migrar para outras áreas de conhecimento trazendo novas respostas e necessidades que nem sabíamos que tínhamos

Aqui proponho um exercício futurologico, que como todo exercício de análise para o que há de vir, pode estar fadado ao fracasso pois baseado no presente projetamos o futuro, porém acredito que por conta do caminho que opera nossa tecnologia científica, podemos prever com bastante segurança o casamento inexorável da atual tão discutida inteligência artificial, com a pouco lembrada tecnologia computacional quântica.


A grosso modo para o leigo compreender o que é essa tecnologia, o sistema computacional atual e baseado no sistema binário de zero e um, respondendo basicamente sim ou não a cada pergunta proposta, o sistema binário é usado pelos computadores é e constituído como dito de dois dígitos 0 e o 1. A combinação desses dígitos leva o computador a criar várias informações, como, letras, palavras, textos, cálculos, ou seja, tudo que vivenciamos em nossas máquinas hoje.

Já a tecnologia quântica é um campo multidisciplinar que compreende aspectos da ciência da computação, da física e da matemática e que utiliza a mecânica quântica para resolver problemas complexos mais rapidamente do que em computadores tradicionais, a grosso modo além de responder com o zero e o um binários, tem uma terceira resposta que é zero e um ao mesmo tempo e isso muda tudo, seria o depende entre o sim e o não das questões propostas.

Agora sim entramos na nossa viagem ao futuro próximo, imaginem o casamento dos computadores quânticos com a inteligência artificial (IA)? Que mundo novo pode advir dessa unificação?

A questão não é se, mas, quando acontecer teremos uma modificação completa do mundo do trabalho, tecnologia, ciências, estudos e entretenimento.

O potencial é incalculável e irá transformar radicalmente a vida cotidiana das pessoas em várias áreas, impulsionando a revolução científico-tecnológica de maneiras que ainda são difíceis de imaginar completamente. Vamos explorar apenas algumas das possíveis mudanças que essa fusão pode trazer nesse admirável mundo novo:

1. Processamento de dados ultrarápido:

Os computadores quânticos podem processar enormes quantidades de dados de maneira incrivelmente rápida, tornando possível realizar cálculos complexos em uma fração do tempo que os computadores convencionais levariam. Isso pode melhorar significativamente a eficiência em diversas atividades, desde análises financeiras e previsões climáticas até a otimização de rotas de tráfego em tempo real;

2. Avanço nas ciências e medicina:

Com a capacidade dos computadores quânticos de modelar sistemas complexos de maneira mais precisa, a pesquisa científica e a medicina podem dar passos gigantescos. Por exemplo, novos medicamentos podem ser descobertos mais rapidamente, acelerando a cura de doenças e condições médicas atualmente incuráveis;

3. Inteligência artificial mais poderosa:

A união dos computadores quânticos com a IA pode aprimorar a capacidade de aprendizado e tomada de decisões dos algoritmos de IA. Isso permitirá que a IA compreenda e processe dados complexos em tempo real, levando a assistentes virtuais mais inteligentes, sistemas de reconhecimento de voz mais precisos, chatbots mais eficientes e avanços significativos em áreas como diagnósticos médicos e análise de grandes conjuntos de dados;

4. Criptografia e segurança mais robustas:

Embora a computação quântica possa ameaçar os sistemas de criptografia atuais, a unificação com a IA pode ajudar a criar algoritmos criptográficos quânticos mais seguros e eficientes. Isso garantiria uma comunicação mais segura e protegeria as informações pessoais dos usuários;

5. Realidade virtual e aumentada avançada: Com o poder de processamento dos computadores quânticos combinado com a inteligência artificial, a experiência de realidade virtual e aumentada pode ser revolucionada. Seria possível criar ambientes virtuais mais realistas, interativos e personalizados, permitindo novas formas de entretenimento, treinamento e comunicação;

6. Otimização de logística e transporte: Com a capacidade de resolver problemas complexos de otimização, a união da computação quântica com a IA pode melhorar significativamente a logística e o transporte. Isso inclui aprimorar a logística de cadeias de suprimentos, otimizar o tráfego em tempo real e planejar rotas mais eficientes para entrega de produtos e serviços;

7. Mudanças na indústria financeira:

A velocidade e a precisão dos computadores quânticos com IA podem revolucionar o setor financeiro. Algoritmos avançados podem detectar fraudes com maior eficiência, prever mudanças econômicas de forma mais precisa e aprimorar estratégias de investimento;

8. Avanço na inteligência de máquinas autônomas: 

A combinação de computação quântica e IA pode impulsionar veículos autônomos, drones e robôs inteligentes, permitindo que eles tomem decisões mais rápidas e precisas em ambientes complexos e em constante mudança.

Essas são apenas algumas das maneiras pelas quais a unificação dos computadores quânticos com a inteligência artificial pode modificar a vida cotidiana das pessoas. É importante ressaltar que, apesar do grande potencial positivo, essa revolução também apresenta desafios éticos e de segurança, como o controle e a responsabilidade dessas tecnologias avançadas. Portanto, um desenvolvimento cuidadoso e ético é essencial para aproveitar plenamente os benefícios dessa fusão tecnológica. Lógico que seremos impactados, sim muitos empregos deixarão de existir e muitos serão desempregados por essa nova etapa da evolução tecnológica fato que ocorreu em todas revoluções científicas e que consolidou saltos evolutivos do conhecimento da humanidade, mas diferente dos trabalhadores que quebravam as máquinas da revolução industrial vamos ter que saber absorver a mão de obra e inteligência humana para outras áreas mais necessárias onde a inventividade e criatividade das pessoas são fundamentais, chegará ao fim o modo de trabalho repetitivo baseado no taylorismo ou mesmo no fordismo.

Cabe a nós trazer para humanidade um momento único de crescimento da liberdade humana para progredir em aspectos até hoje não imaginados, novas relações de trabalho com jornadas menores porém mais eficientes, foco no lazer e também o ócio criativo como proposto por Domenico de Masi.

Como visto, esse mundo que se descortina pode ser o início de uma bela jornada para o ser humano se utilizada para o crescimento e igualdade de oportunidades na utilização dessa ferramenta maravilhosa, mas também pode ser um futuro distópico que esses instrumentos forem mantidos nas mãos de poucos representando a continuidade opressiva de um mundo onde o abismo entre os mais ricos e mais pobres cada vez se acentua. Temos mais uma oportunidade de fazer o certo e levar nossa sociedade a um outro patamar, mais inclusiva, ambientalmente justa e socialmente solidária, não percamos pois mais essa oportunidade, e como dizia o poeta, "é você que ama o passado e não vê que o novo sempre vem".

Força da grana move Brasília

No fim do século passado, um famoso artigo de Francis Fukuyama previu o fim da História. Errou o alvo, ainda bem, porque, sem as peripécias da História, nossa vida seria tomada pelo tédio e pela melancolia. Apesar disso, há momentos arrastados na História do Brasil, como essa briga do Congresso por verbas do Orçamento, algo tão chato como uma reunião de condomínio.

No entanto, se vencermos as barreiras do tédio, veremos que estamos diante de algo essencial para nossa vida cotidiana e mesmo para o futuro da democracia. Trava-se uma luta pela grana que todos pagam em impostos. Teoricamente, esse dinheiro deveria ser usado de uma forma racional para a prestação de todos os serviços que o Estado nos deve.

Isso é tão importante que, nas revoltas de 2013, segundo muitos observadores, houve protesto porque o Estado não devolvia em serviços eficazes o grande volume de impostos pagos a ele.

O avanço do Congresso sobre o dinheiro a ser gasto tem sido intenso nos últimos anos. Alguns ainda se lembram do orçamento secreto do período Bolsonaro. Era ilegal e acabou caindo por ordem do STF. Mas a força do Congresso é tão grande que ele continua impondo ao governo altos gastos em suas emendas parlamentares. Só no Orçamento deste ano, a coisa vai para mais de R$ 47 bilhões. Isso sem contar os quase R$ 5 bilhões que destinaram ao financiamento das eleições municipais.


Não vai dar certo. O dinheiro já é curto e, se não for usado com o máximo de racionalidade, com visão nacional, as frustrações podem aumentar. Salário mínimo um pouco melhor não basta. Há outros fatores — como escola pública de qualidade, saneamento, hospitais razoáveis — que influenciam a sensação de pobreza ou bem-estar.

Os deputados dizem que não há problemas se destinarem grande parte da grana nacional para suas obras. Afinal, argumentam, ninguém conhece melhor o país do que eles. Acontece que conhecem tão bem, a ponto de saber qual obra dá mais votos que a outra, e de modo geral sempre optarão por bons resultados eleitorais.

Na época do orçamento secreto, houve coisas do arco-da-velha que, provavelmente, continuarão acontecendo. Escolas receberam equipamento de robótica e não tinham sequer conexão com a internet. O episódio mais pitoresco ocorreu em Igarapé Grande, no Maranhão, onde a Polícia Federal fez a Operação Quebra-Ossos. O município tem 12 mil habitantes, mas registrou gastos de raio X com 7.500 dedos quebrados. Inimaginável o que fizeram com as mãos para chegar a esses números. Há registro também, noutros pontos do país, de tratoraços, a compra de tratores por preços superfaturados.

Sinceramente, não escrevo com intenções moralistas. A esta altura da vida, fora da política, trabalho outras categorias, distante do protesto indignado. Prefiro fazer parte de uma discreta versão moderna de um coro grego, como na Antígona. Qualquer procura humana que ignore limites, sugere Sófocles, inevitavelmente trará a desgraça.

Surfando numa conjuntura de tolerância com os erros, os políticos brasileiros estão passando dos limites, uma forma de perder a sabedoria. Com todos os pequenos deslizes recebidos com silêncio pela sociedade, avançam cada vez mais rumo a uma dominação indiscriminada, voltada apenas para o próprio umbigo.

Todos sabemos das grandes necessidades do país. Sabemos também que, mesmo usando racionalmente os recursos, não conseguiremos satisfazê-las, o cobertor é curto.

O uso leviano do dinheiro arrecadado, gastos milionários com partidos políticos, isso é muito perigoso. Em 2013, tudo parecia bem, até que alguma coisa explodiu. Há tempo de corrigir o rumo, embora seja difícil imaginar como o gênio voltará para a lâmpada, como o Congresso se conformará em não ter tanto dinheiro para se perpetuar no poder. Infelizmente, é disso que se trata. Os donos da grana se reelegem, e as coisas nunca mudam por lá.

Partido Miliciano, o sujeito oculto da política nacional

Apenas 12 dos 28 partidos e federações que disputaram as eleições de 2022 conseguiram alcançar a cláusula de desempenho fixada pela Emenda Constitucional 97, de 2017. De lá para cá, somente essas 12 legendas têm acesso ao Fundo Partidário e ao tempo de propaganda gratuita de rádio e televisão.

As novas regras em vigência desde 2018 impuseram às 16 legendas que não alcançaram o critério de desempenho três alternativas de sobrevivência – a fusão, incorporação ou federação com aquelas que obtiveram melhor desempenho nas urnas.

Bom para a política, esse enxugamento deu mais nitidez ideológica ao sistema partidário, com prevalência da corrente conservadora. Porém, nessa contabilidade partidária o sujeito oculto é o Partido Miliciano, infiltrado na direita como um cavalo de Tróia.

Camuflado em legendas majoritárias, serve-se do dinheiro público destinado ao desenvolvimento das atividades partidárias para alavancar sua estratégia de ampliação territorial. Como fez no Rio, a partir da Assembleia Legislativa.


Essa turma abraça as pautas conservadoras, embora pouco ou nada lhe importem os valores religiosos e morais da direita tradicional. O faz pela conveniência de atrair essa direita para temas próprios que aparentam similaridade ideológica.

Importa-lhes não aprimorar a política antidrogas e materializar um braço parlamentar do crime, blindando-se no bolsonarismo para impedir a ação dos poderes constituídos e consolidar-se como um poderoso grupo paramilitar a serviço de um estado paralelo, cujo comando divide com o tráfico.

Ao permitir a fusão de interesses distintos com uma pauta de valores comum apenas na aparência, a direita corre o risco de associar sua imagem – e suas biografias individuais – a temas que são caros apenas aos milicianos. E comprometer-se com uma associação criminosa infiltrada no parlamento.

É quando, por exemplo, a bancada do agronegócio defende a política bolsonarista de armar cada morador de Copacabana, quando o que lhe importa é garantir o direito de defender suas propriedades no campo.

Nesse contexto se inserem as recentes operações de busca e apreensão nos gabinetes parlamentares dos deputados Alexandre Ramagem e Carlos Jordy, cada um, a seu modo, flagrado em crimes contra o Estado.

Ambos são os únicos beneficiados , nesse momento, pela mobilização da direita contra o STF em decorrência do episódio. A soberania do Legislativo, nesse caso, é mero pretexto para acobertamento de ambos.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, e o do Senado, Rodrigo Pacheco, parecem já entender esses riscos. Evitaram dar repercussão às operações da PF contra Ramagem e Jordy. Mas se tornaram alvo indiscriminado da direita, novamente contaminada pelos interesses milicianos.

A carga sobre ambos para que comprem a briga contra o STF aumentou e levou Pacheco a abdicar de seu estilo mineiro e polido para desancar o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, que o chamara publicamente de “frouxo” por não agir contra Alexandre de Moraes.

O que mobiliza a direita contra o STF não é a mesma causa que mobiliza a milícia. Esta pretende neutralizar o STF para escapar da prisão; aquela pretende limitá-lo à interpretação da Constituição e impedi-lo de ultrapassar a fronteira entre o intérprete da Constituição e o legislador.

Tem-se que o agronegócio não precisa dos milicianos para enfrentar sua batalha com o STF, como estes precisam da direita para materializar a guerra contra o Judiciário, em nome da liberdade para delinquir. A direita pode resolver suas contendas pela via política; as milícias, não.

O experiente advogado de muitos políticos, de diferentes matizes ideológicas, Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, calcula em duas dezenas os parlamentares já alcançados pelas investigações que culminaram com o 8 de janeiro e que estão no mesmo roteiro de Jordy e Ramagem.

A ex-deputada Joice Hasselmann que, bem ou mal, transitou pela intimidade do bolsonarismo, concorda com esse cálculo, desde que ele se refira apenas aos ex-integrantes do PSL. “No macro, é bem mais”, diz ela. A tirar por ambos, vem mais encrenca aí no roteiro de operações judiciais contra parlamentares.

O STF dobrou a aposta e realizou uma operação de busca e apreensão contra o vereador Carlos Bolsonaro na extensão das investigações sobre a Abin paralela – a rede de espionagem política ilegal comandada por agentes de inteligência a serviço do governo Bolsonaro. Não daria esse bote se não estivesse já respaldado por informações seguras e ainda sigilosas.

Até 2019, a milícia era um fenômeno de alcance e ação estaduais. O ciclo Bolsonaro lhe deu escala nacional e se a direita conservadora, mas democrática, continuar a trata-la como igual, estará se associando à ideologia do crime e contribuindo decisivamente para que o Congresso Nacional se torne, em pouco tempo, uma Alerj federal.

Fábricas de fraude online são motivadas com trabalho escravo

Aaron mal podia acreditar na própria sorte: uma companhia de tecnologia da Tailândia lhe ofereceu o emprego de seus sonhos – salário alto, benefícios generosos, uma via para escapar de um futuro desolador no sul da África. "Eu torci para ir trabalhar em outro continente, e um dia me contatei. Eu descobri que tudo era legítimo – até que cheguei ao Bangcoc."

A Organização das Nações Unidas calcula que mais de 100 mil indivíduos estão confinados nos centros de fraude online de Mianmar, num regime praticamente de escravidão . A equipe investigativa da DW encontrou-se com diversos sobreviventes de uma dessas "fábricas", o KK Park, que descrevem vigilância rigorosa, tortura e assassinato atés.

No aeroporto, Aaron teve uma recepção calorosa e foi convidado a entrar num carro, junto com dois outros jovens da África Oriental. "Achamos que iríamos para um hotel que fica talvez a uns dez minutos do aeroporto. Mas o motorista tomou outra direção."

Depois de quase oito horas de viagem, o grupo chegou à cidade fronteiriça de Mae Sot, no norte de Taiwan, onde foi transportado através do rio Moei até o estado de Kayin, região de Mianmar devastada por uma guerra pela independência. "Tinha gente com armas. Eles disseram que era para entrarmos no barco. E nós atravessamos", relata Aaron.

Dali, ele e seus companheiros foram levados para o KK Park, uma central onde milhares são submetidos a ações criminosas, enganando internautas dos Estados Unidos, Europa e China. 

“A gente trabalhava 17 horas por dia, nada de férias, sem feriados, sem descanso”, conta o jovem Lucas, da África Oriental, que foi suspenso à força 12 meses na central de fraudes online. "E se a gente disse que queria ir embora, eles ameaçaram que iam vender a gente – ou matar."

Chegando ao KK Park, Aaron, Lucas e os demais receberam instruções sobre como praticar os golpes. Sua tarefa era convencer os “clientes” – como são designados internamente como vítimas – a investir em criptomoedas . Estes pensaram ter depositado suas economias em investimentos lucrativos, mas ao invés disso o dinheiro entraria numa conta controlada pelos criminosos. Assim que se alcançasse uma determinada soma, as contas eram zeradas.

KK Park, apenas uma entre pelo menos dez fábricas
de golpes online na fronteira Mianmar-Tailândia

Esse tipo de golpe online é apelidado pig abate (abate de porcos): os trapaceiros engordam suas vítimas e em seguida as levam para o matadouro. Os manuais distribuídos à chegada no centro descreviam em detalhes como estabelecer confiança e aproveitavam os pontos fracos dos alvos. Por exemplo: "Seja engraçado. Os clientes devem se apaixonar por você ao ponto de esquecer tudo."

Havia metas semanais: uma soma determinada que os "agentes de venda" à revelação deviam arrecadar ou um número de "clientes" para entrar em contato. Quem não alcançava essas metas, era punido.

“Quem até o meio-dia não conseguiu nenhum novo cliente, ficou sem almoço. Se alguém reparasse que deixou de atender a uma chamada, você era espancado, ou forçado a ficar horas de pé”, conta Lucas. Vídeos e os relatos de prisioneiros anteriores da fábrica de fraudes confirmam torturas psíquicas e físicas sistemáticas.

Confrontados com imagens exclusivas tiradas do interior do complexo, todos os entrevistados consideraram os crachás nos uniformes dos guardas: trata-se das insígnias da Força de Guarda de Fronteira, um grupo de ex-rebeldes que deixou de combater a junta militar birmanesa há uma década atrás , em troca do controle total sobre seus territórios. Os soldados policiais do KK Park, mas os chefes de operação são chineses, de acordo com diversas fontes.

A trilha de pagamentos de diversas vítimas de fraude leva até as carteiras de criptomoedas usadas pelo KK Park para recuperação das economias dos defraudados. Lá, o dinheiro é distribuído por outras carteiras que funcionam como contas digitais para armazenar criptomoedas.

Uma delas foi aberta por Wang Yi Cheng, um empresário chinês residente em Tailândia. Ele recebeu moedas de milhares de dólares em criptomoedas de carteiras usadas pelo KK Park, e integra uma rede maior, de empresários chineses no exterior, que inclui um notório chefão da máfia chinesa.

No período em que recebia transferências diretas de carteiras geridas pela fábrica de fraudes tailandesas, Wang era vice-presidente da Thai-Asia Economic Exchange Association, uma associação sedada em Bangcoc que promove relações entre a Tailândia e a China.

A Tailândia-Ásia partilha o seu edifício-sede com o Overseas Hongmen Culture Exchange Center, que em 2023 foi alvo de uma batida policial, juntamente com outros centros da Hogmen, por operar ilegalmente e servir como fachada para o crime organizado chinês.

Essas organizações têm conexões estreitas com Wan Kuok Koi, aliás "Broken Tooth". Ex-líder da tríade 14K, depois de passar mais de dez anos na prisão por atividades criminosas em Macau, em 2018 fundou a World Hongmen History and Culture Association. Nesse ínterim ela foi aplicada a avaliação pelos Estados Unidos, devido ao seu envolvimento com o crime organizado.

Jason Tower, especialista em crime organizado do American Institute for Peace, menciona que Wan Kuok Koi gosta de repetir que costumava lutar pelos cartéis, mas agora luta pelo Partido Comunista da China.

De fato, sua organização Hongmen também promove uma ambiciosa Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), um projeto de infraestrutura trilionário, também conhecido como Um Cinturão, Uma Rota ou Nova Rota da Seda, que envolve integrar a China ainda mais à economia global.

O terreno em que foi construído o KK Park é uma área-alvo dos investimentos da China na BRI: relatórios do governo saudaram projetos de construção em suas áreas específicas, embora mais tarde Pequim tenha se distanciado, devido a denúncias de fraude em ampla escala.

O complexo em si não é mencionado nos comunicados oficiais da China, nem foi palco de cerimônias pioneiras, como as realizadas em outros projetos de construção na área. Em vez disso, o KK Park foi construído sob medida para a aplicação de golpes online. Soldados armados vigiavam todas as entradas e tinham câmeras de vigilância por toda parte.

As relações de poder nebulosas na região de conflito de Kayin, na fronteira birmanesa, proporcionam solo fértil a atividades criminosas. O KK Park é apenas uma de pelo menos dez fábricas de golpes online da área.

Suas operações ilícitas remontam a uma complexa rede de firmas e associações usadas por criminosos para legitimar seus crimes e "lavar" milhões em capital originário de fraudes. Suas operações estão se expandindo continuamente do Sudeste da Ásia para a África, Europa e América do Norte.

“Estamos realmente vendo que essas redes criminosas se tornam cada vez mais poderosas, mais influentes, e mais ramificadas em países de todo o mundo”, comenta Tower. "E os esforços de aplicar a lei estão tocando a ponta do iceberg."

Aaron e Lucas tiveram sorte. Depois de o salário lhes ser negado diversas vezes, eles e outros prisioneiros se recusaram a continuar trabalhando, e receberam ordem de arrumar seus pertences. “Escutei eles dizendo que iam nos vender para uma outra organização”, recorda Lucas.

Os jovens africanos reagiram rapidamente e contataram o ativista australiano Judah Tana, conhecido por auxiliar refugiados na fronteira Mianmar-Tailândia. E assim Aaron e Lucas escaparam, escondidos no banco de trás de seu jipe. Algumas semanas depois, ambos puderam retornar ao seu país de origem: seu pesadelo de tráfico humano e escravidão chegou ao fim.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Pensamento do Dia

 


O racismo sem limites: agora a UNRWA

Que porcentagem de 30 mil empregados são 12 empregados? Pus num calculador da Net, deu 0,04. Imaginem agora 30 mil pessoas num hospital, numa escola, numa cidade. Suspeita-se que 12 estejam envolvidas num ataque brutal. Essas 12 são despedidas, uma investigação é iniciada. Mas mesmo assim, por causa de 0,04, todas as outras são castigadas. Todas as outras 29.988. Que no caso de que vou falar prestam uma assistência vital a 5,9 milhões de pessoas. Mais de metade da população portuguesa.

É o que está a acontecer desde ontem com os 30 mil empregados da UNRWA, a agência que em 1949 a ONU criou para apoiar os refugiados palestinianos. Em 1949: desde o fim da guerra que se seguiu à criação do Estado de Israel, que para os palestinianos é a Nakba, a Catástrofe. A UNRWA começou a trabalhar em 1950: eram 750 mil refugiados em tendas. Agora são 5,9 milhões de refugiados em campos de cimento. Que em Gaza, desde 7 de Outubro, voltaram a ser tendas amontoadas num espaço impossível.

O mais antigo problema de refugiados do mundo. Um limbo único, que nos envergonha a todos. Avós, pais, filhos, sucessivamente nascidos num buraco da justiça, aos quais toda a comunidade internacional deve uma solução desde 1948. Vamos em 76 anos.

Mas isto não impede que algumas das potências brancas se precipitem desde ontem a suspender toda a ajuda à UNRWA. Primeiro, os Estados Unidos. Depois, à hora a que escrevo, a Austrália, o Canadá, a Itália, a Finlândia e o Reino Unido. A UNRWA vive quase exclusivamente de fundos dos membros das Nações Unidas. E que faz a UNRWA? É a responsável por aquilo de que o mundo se descartou há 76 anos: a educação, saúde, habitação, alimentação, infra-estruturas, serviços sociais, assistência de emergência, microfinanciamentos de 5,9 milhões de palestinianos que tinham um território, mas continuam a não ter um Estado. Que estão em Gaza, na Cisjordânia, em Jerusalém Oriental e nos países vizinhos para onde foram forçados a fugir, Jordânia, Síria, Líbano. A UNRWA trabalha em todos eles. Há diferenças entre as condições que cada país lhes deu. Fora da Palestina, os que estão pior são os do Líbano. Campos miseráveis, vidas sem horizonte, interditas a inúmeras profissões.

Desde 7 de Outubro vimos escancarar-se como nunca a indecência de regimes do mundo branco. Aquilo a que podemos chamar “dualidade de critérios”, ou mais claramente “racismo”. Um racismo que ontem perdeu um pouco mais a vergonha. Não basta ao mundo branco que as pessoas suspeitas tenham já sido afastadas, e que a UNRWA tenha assumido a responsabilidade, e gravidade, da investigação. Estas potências querem provar uma vez mais como estão horrorizadas com os 1200 mortos israelitas (sem perderem o sono com os 26 mil mortos palestinianos, e todos os outros a ser bombardeados neste instante). Então, fazem questão de dar a Israel ainda isto: cancelar o dinheiro para que seis milhões de refugiados sobrevivam. E o verbo é “sobreviver”, porque o mundo lhes nega uma vida digna.

Tenho questões com a acção humanitária, e especificamente da ONU. Escrevi sobre isso antes e depois de 7 de Outubro. Sobre como a assistência pode contribuir para perpetuar os problemas que alivia, desresponsabilizando quem é suposto resolvê-los. Atalhando: se o mundo pode viver com 5,9 milhões de refugiados palestinianos atirados para debaixo do tapete, e isso continua a não ser cobrado a Israel, também foi porque a UNRWA esteve lá a fazer com que não morressem à fome. E claro que isso é parte do problema, se queremos olhar as coisas de frente. Um problema de todos nós.

Depois do que vi em Dezembro–Janeiro pela Cisjordânia e em Jerusalém Oriental (já que em Gaza os repórteres não podem entrar), deixei a Palestina com a sensação de mais uma Intifada a explodir, tal a aflição, o cerco. Enquanto Gaza morre, e os que não morrem sofrem danos para sempre.

Apesar de, também ontem, os juízes de Haia terem exposto de forma inédita num tribunal as violações de Israel à lei internacional, não foram ao ponto de pedir o cessar-fogo. E agora EUA, Canadá, Austrália, Reino Unido, Itália e Finlândia (para já) suspendem o ventilador da UNRWA. Porque os 5,9 milhões que dependem dele são palestinianos. E os palestinianos não contam como vidas brancas.

A cada dia, a mentira dos regimes brancos é mais visível. Digo regimes brancos porque as categorias Norte e Ocidente não dão conta (por exemplo, da Austrália). Regimes racistas e reféns de Israel. Da sua própria culpa.

Hoje mesmo, sábado, o ministro dos Estrangeiros de Israel pediu o fim da UNRWA, simplesmente. Que não faça parte do “day after” da guerra de Gaza. Num ponto estamos de acordo: sim, que a UNRWA deixe de existir — mas porque deixaram de existir refugiados palestinianos. É esse fim que queremos.

Poderá a União Europeia, entretanto, contrariar o racismo desta punição colectiva? Ou esperamos por uma Intifada geral?

Alexandra Lucas Coelho 

Tem alma os verdugos?

Uma alma que fosse possível considerar responsável por todo e qualquer acto cometido teria de levar-nos, forçosamente, a reconhecer a total inocência do corpo, reduzido a ser o instrumento passivo de uma vontade, de um querer, de um desejar não especificamente localizáveis nesse mesmo corpo. A mão, em estado de repouso, com os seus ossos, nervos e tendões, está pronta para cumprir no instante seguinte a ordem que lhe for dada e de que em si mesma não é responsável, seja para oferecer uma flor ou para apagar um cigarro na pele de alguém. Por outro lado, atribuir, a priori, a responsabilidade de todas as nossas acções a uma identidade imaterial, a alma, que, através da consciência, seria, ao mesmo tempo, juiz dessas acções, conduzir-nos-ia a um círculo vicioso em que a sentença final teria de ser a inimputabilidade. Sim, admitamos que a alma é responsável, porém, onde é que está a alma para que possamos pôr-lhe as algemas e levá-la ao tribunal? Sim, está demonstrado que o martelo que destroçou o crânio desta pessoa foi manejado por esta mão, contudo, se a mão que matou fosse a mesma que, tão inconsciente de uma coisa como da outra, tivesse simplesmente oferecido uma flor, como poderíamos incriminá-la? A flor absolve o martelo?


Ficou dito acima que a vontade, o querer, o desejar (sinónimos que, apesar de o não serem efectivamente, não podem viver separados), não são especificamente localizáveis no corpo. É certo. Ninguém pode afirmar, por exemplo, que a vontade esteja alojada entre os dedos médio e indicador de uma mão neste momento ocupada a estrangular alguém com a ajuda da sua colega do lado esquerdo. No entanto, todos intuímos que se a vontade tem casa própria, e deverá tê-la, ela só poderá ser o cérebro, esse complexo universo cujo funcionamento, em grande parte (o córtex cerebral tem cerca de cinco milímetros de espessura e contém 70 000 milhões de células nervosas dispostas em seis camadas ligadas entre si), se encontra ainda por estudar. Somos o cérebro que em cada momento tivermos, e esta é a única verdade essencial que podemos enunciar sobre nós próprios. Que é, então, a vontade? É algo material? Não concebo, não o concebe ninguém, com que espécie de argumentos seria defensável uma alegada materialidade da vontade sem a apresentação de uma “amostra material” dessa mesma materialidade…

O voluntarismo, como é geralmente conhecido, é a teoria que sustenta que a vontade é o fundamento do ser, o princípio da acção ou, também, a função essencial da vida animal. No aristotelismo e no estoicismo da antiguidade clássica observam-se já tendências voluntaristas. Na filosofia contemporânea são voluntaristas Schopenhauer (a vontade como essência do mundo, mais além da representação cognoscitiva) e Nietzsche (a vontade de poder como princípio da vida ascendente). Isto é sério e, por todas as evidências, necessitaria aqui alguém, não quem estas linhas está escrevendo, capaz de relacionar aquelas e outras reflexões filosóficas sobre a vontade com o conteúdo deste livro, cujo título é, não o esqueçamos, A alma dos verdugos. Aqui talvez tivesse eu de deter-me se, felizmente para os meus brios, não me tivesse saltado aos olhos, folheando com mão distraída um modesto dicionário, a seguinte definição: “Vontade: Capacidade de determinação para fazer ou não fazer algo. Nela se radica a liberdade”. Como se vê, nada mais claro: pela vontade posso determinar-me a fazer ou não fazer algo, pela liberdade sou livre para determinar-me num sentido ou noutro. Habituados como estamos pela linguagem a considerar vontade e liberdade como conceitos em si mesmos positivos, apercebemo-nos de súbito, com um instintivo temor, de que as cintilantes medalhas a que chamamos liberdade e vontade podem exibir do outro lado a sua absoluta e total negação. Foi usando da sua liberdade (por mais chocante que nos pareça a utilização da palavra neste contexto) que o general Videla viria a tornar-se, por vontade própria, insisto, por vontade própria, num dos mais detestáveis protagonistas da sangrenta e pelos vistos infinita história da tortura e do assassinato no mundo. Foi igualmente usando da sua vontade e da sua liberdade que os verdugos argentinos cometeram o seu infame trabalho. Quiseram fazê-lo e fizeram-no. Nenhum perdão é portanto possível. Nenhuma reconciliação nacional ou particular.

Importa pouco saber se têm alma. Aliás, desse assunto deverá estar informado, melhor do que ninguém, o sacerdote católico argentino Christian von Vernich que há alguns meses foi condenado a prisão perpétua por genocídio. Seis assassinatos, torturas a 34 pessoas e sequestro ilegal em 42 casos, eis a sua folha de serviços. É até possível, permita-se-me a trágica ironia, que tenha alguma vez dado a extrema unção a uma das suas vítimas…

23 de outubro de 2008
José Saramago, "O caderno"

Devorador do Tempo

A televisão mostra o que acontece? Nos nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão não o mostra.

A televisão, essa luz derradeira que nos salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: aos que se portam bem, o sistema promete um assento cômodo. 
Eduardo Galeano, "O Livro dos Abraços" 

Bolsonaro e seus filhos estão com água pelo nariz

O republicano Richard Nixon estava por trás da operação de espionagem ao comitê nacional do Partido Democrata no edifício Watergate, em Washington, no início dos anos 1970 e, por isso, foi obrigado a renunciar ao mandato de presidente dos Estados Unidos; o único a fazê-lo até aqui.

Bolsonaro não tem mandato para abrir mão: perdeu-o para Lula ao tentar renová-lo em 2022. Pelos próximos oito anos não poderá ser candidato a nada, uma vez que foi condenado por abuso de poder econômico e político. Só lhe resta ser preso ou mergulhar à espera que a tempestade passe.

Nixon não foi preso porque deixou o cargo ao concluir que essa seria a melhor saída política para ele. Seu sucessor, o vice Gerald Ford, anistiou Nixon, retirando-lhe as devidas responsabilidades legais perante qualquer infração que tivesse cometido. Nixon morreu amargurado.

De certo modo, pelo menos nos Estados Unidos, o chamado “Escândalo Watergate” tornou-se um caso paradigmático de corrupção. No total, cerca de 69 pessoas foram indiciadas, com 48 delas, a maioria integrante do governo Nixon, sendo condenadas.

É cedo, por ora, para especular sobre o número de integrantes do governo Bolsonaro que poderão ser indiciados e condenados. Mas pelo andar da carruagem, ou melhor, do inquérito que apura o “Escândalo da Abin paralela”, esse número não será pequeno.


Durante o governo Bolsonaro, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) esteve mais para Agência Brasileira de Intimidação. Sua inteligência foi usada para o mal, não para o bem do Estado de Direito Democrático. A dúvida é se ainda guarda resquícios disso.

Não se fala em Forças Armadas paralelas para distingui-las das oficialmente existentes que apoiaram Bolsonaro em todas as suas investidas para derrubar a democracia, apenas se dividindo na hora de dar o golpe para impedir a posse de Lula. O golpe acabou fracassando.

Não se deveria falar em Abin paralela. Enquanto esteve sob o comando do delegado Alexandre Ramagem, hoje deputado federal eleito pelo PL da dupla Bolsonaro-Waldemar Costa Neto, a Abin espionou adversários e aliados do governo, esses para chantageá-los se fosse necessário.

Bolsonaro nunca escondeu que queria uma Polícia Federal para chamar de sua. Como não pode fazer de Ramagem o diretor-geral da Polícia Federal, fê-lo diretor da Abin, caroneando o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional.

Antes mesmo de Ramagem assumir a Abin, Bolsonaro disse, em reunião ministerial de 22 de abril de 2020, que dispunha de um sistema de inteligência “particular”. E criticou:

“Sistemas de informações: o meu funciona. O meu particular funciona. Os oficiais desinformam. Prefiro não ter informação do que ser desinformado por sistema de informações que eu tenho”.

Trocou a marcha, apertou o acelerador com o pé e desabafou tresloucado:

“Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meus, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa”.

Em 22 de maio do mesmo ano, o segundo dele como presidente, depois que o vídeo da reunião foi tornado público por Celso de Mello, então ministro do Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro correu a se explicar:

“O que é meu serviço de informações particular? É o sargento do batalhão do Bope do Rio de Janeiro, é o capitão do grupo de artilharia lá de Fortaleza, é o policial civil que tá em Manaus, é meu amigo que tá na reserva e me traz informação da fronteira.”

Era tarde. O mais distraído dos deputados federais sabia que algo se movia e que sua vida poderia estar sendo bisbilhotada. Nenhum ministro de tribunal superior sentia-se mais seguro para atender ligações telefônicas, a não ser por WhatsApp.

Na última quarta-feira, a Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão contra suspeitos de integrarem o esquema de espionagem da Abin – Ramagem foi um dos alvos. Ontem, o alvo principal foi o vereador Carlos Bolsonaro, o Zero 3 do pai.

O meu Exército; a minha família; o meu Posto Ipiranga… Como autoridade número um do país, Bolsonaro achou que tudo lhe pertencia, que tudo estava a seu serviço, e que todos lhe deviam obediência. Triste fim. Mereceu. É só aguardar o desfecho.

Ao contrário de Nixon, não será anistiado.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Pensamento do Dia

 


Aniversários: do medo ao ódio em uma única etapa

G. me conta que fazia muito frio em Paris quando ele esteve lá há algumas semanas. G. é um artista imenso e o frio escuro de Paris me lembra algumas de suas pinturas perseguidas pelas profundezas desesperadas do inverno. Não sei que ruminações de pensamento me levaram do frio de Paris ao frio da indiferença.

Minha mente canibal, eu acho, sempre procurando algo para comer. Muito recentemente, passaram-se dois anos desde que, no dia 19 de janeiro de 2022, o fotógrafo francês René Robert, autor de alguns dos mais emblemáticos retratos do flamenco espanhol , caiu na rua, perdeu a consciência e ali permaneceu, num local muito movimentado, a dois quarteirões do a Place de la République, entre uma ótica e uma loja de vinhos, congelando durante nove horas.

Ninguém prestou atenção naquele embrulho doloroso, naquele homem cuja aparência devia ser muito parecida com a de um morador de rua, até o dia seguinte, quando uma mulher que morava na rua notificou os serviços de emergência. Robert, 84, já havia morrido.

Em julho do mesmo ano, na cidade de Civitanova Marche, Itália, a vendedora ambulante nigeriana Alika Ogorchukwu foi assassinada numa rua do centro da cidade pelo italiano Filippo Claudio Ferlazzo. Ferlazzo derrubou Ogorchukwu no chão, montou nela e a matou à vista de todos. Há um vídeo na web onde você pode revisar o massacre.

A pandemia, diziam os românticos, nos tornaria mais humanos. Somos, em vez disso, uma espécie sem cabeça que vive dentro de um telefone, copulando consigo mesma num conjunto de bytes cada vez maior e mais severo . Estas duas mortes não têm muito em comum, mas estão unidas pela frase do escritor turco Hakan Günday:

“Se conseguir vender o medo posso vender o ódio em cinco minutos, o racismo em três minutos e, ainda por cima, toda a quantidade de discriminação que quiserem”.

Os jornais em tempos cinzentos

A partir do momento em que a crise do modelo de negócio dos jornais e do jornalismo em geral ganhou uma enorme repercussão pública, iniciou-se uma mobilização colectiva em defesa desse “instrumento fundamental da democracia”, como ouvimos tantas vezes dizer. O jornalismo como uma ZAD – zona a defender – usa consciente ou inconscientemente o “imaginário” de uma esfera pública que já não existe. A par de uma reflexão sobre este colapso e sobre as hipóteses de resgatar o que está ameaçado, é preciso uma autoconsciência crítica que apreenda os sobressaltos de uma história que começou de maneira gloriosa e se encontra em fase de declínio.

O jornal foi, a partir do Iluminismo, o órgão por excelência de uma opinião pública racional. Mais do que meio ou instrumento da esfera pública, ele era o lugar da sua constituição. Tinha, pois, um poder constituinte, tal como a escola e a universidade. Através da crítica e do conhecimento, essas três instituições garantiam aquilo a que se chamava “socialização do pensamento”.

O conceito de “esfera pública” (que o filósofo Jürgen Habermas definiu e analisou nas suas transformações, num célebre livro com que iniciou o seu percurso intelectual), que está no centro da tradição iluminista, funda-se precisamente no confronto crítico das opiniões informadas e dotadas de “autoridade”, na circulação de informação que idealmente cria uma sociedade transparente em que a cultura e a crítica são instrumentos e aspirações fundamentais. A consubstancialidade entre jornalismo e democracia, tão reclamada actualmente, evoca implicitamente este momento glorioso da história do jornalismo, muito embora este tenha afunilado os seus bons ofícios.

Esta história que tem pouco mais de dois séculos não foi apenas uma caminhada triunfante até à época da “crise”, que emergiu com mais força a partir do momento em que a esfera pública começou a ser estruturada pela Internet e pelas novas tecnologias da informação, tendo-se criado uma esfera intermédia entre o espaço público e o privado. Nesse percurso, há também a exposição do jornalismo e dos meios de comunicação de massa a uma crítica severa, que tinha a pretensão de os denunciar. Nesta perspectiva crítica, eles são vistos como utensílios ideológicos que praticam a manipulação e adormecem os cidadãos com o entretenimento irresponsável.


Hoje estamos noutra fase. E perante outras formas de assédio que, entretanto, se levantaram, a crítica da ideologia tornou-se uma coisa do passado. É aliás ao declínio da crítica, na sua função cultural e de socialização, aquilo a que temos assistido. Nasceu um novo tipo de espaço multimediático que já não corresponde ao modelo da antiga esfera pública. A dimensão pública da produção de mensagens e a dimensão privada do seu consumo entrecruzam-se cada vez mais, criando um espaço público heterogéneo e atomizado, ao ponto de já se ter dito que agora o que existe são “esferículas públicas”. E isto não promove a relação – como fez o jornalismo moderno desde o seu nascimento – entre cultura e sociedade. A cultura perdeu uma boa parte do seu efeito, deixou de ter uma função de socialização. Um sintoma evidente deste estado é o quase desaparecimento, na esfera pública, da crítica das várias disciplinas artísticas.

Há quase meio século começou a falar-se de uma sociedade dos simulacros. Parece que a noção de simulacro perdeu, entretanto, pertinência e foi substituída pela “pós-verdade”. Não se trata propriamente da mentira, e quem diz que é a mesma coisa que dantes era designado com as palavras “mentira”, “boato”, “dissimulação” não apreende o essencial da “pós-verdade”, que é a anulação da fronteira entre verdade e falsidade.

A pós-verdade, como muito bem mostrou Myriam Revault d’Allonnes num livro já editado em português com o título A Verdade Frágil (Edições 70, 2023) consiste na indiferença ao que a realidade mostra. Não importa que um discurso seja verdadeiro ou falso, o que importa é que ele satisfaça as crenças, as convicções preestabelecidas. A ideia de que o jornalismo, quando bem exercido, tem o poder de repor a verdade deixou de ter a validade que tinha outrora. Um conjunto de novas condições determina as características actuais da esfera pública, com as quais o jornalismo tem tido dificuldade em confrontar-se, entrando muitas vezes na mesma lógica.

O modelo do comentário político, pela sua forma de proliferação e pela escolha de grande parte dos seus agentes (a classe que se move entre dois mundos ligados por um hífen: “político-mediático”), tem alguma responsabilidade nesta matéria.

A principal agência de ajuda da ONU a Gaza enfrenta uma tempestade diplomática

Em Gaza, uma faixa de terra que se está a transformar rapidamente num terreno baldio, poucos organismos de ajuda internacional ainda conseguem operar. As Nações Unidas são uma delas.

A sua Agência de Assistência e Obras para os Refugiados da Palestina, ou UNRWA, foi fundada em 1949, trabalhando em Gaza, na Cisjordânia, na Síria, no Líbano e na Jordânia, cuidando dos 700.000 palestinos que foram forçados ou fugiram de suas casas com a criação do estado. de Israel.

Agora, diz o chefe da agência, a assistência vital de que dependem dois milhões de habitantes de Gaza pode estar prestes a terminar, à medida que vários governos ocidentais suspendem o seu financiamento devido a alegações de que alguns funcionários da UNRWA estiveram envolvidos nos ataques de 7 de Outubro a Israel.

A missão gere atualmente abrigos para os deslocados e distribui a única ajuda que Israel permite - mas é muito mais do que isso. A UNRWA fornece infra-estruturas e ferramentas essenciais para a vida quotidiana que Gaza tem sentido falta durante os seus ciclos aparentemente intermináveis ​​de violência, cerco e empobrecimento.

Administra instalações médicas e educacionais, incluindo centros de formação de professores e quase 300 escolas primárias – bem como produz livros didáticos que educam os jovens palestinos. Só em Gaza, emprega cerca de 13 mil pessoas. Sendo a maior agência da ONU a operar em Gaza, tem sido fundamental para os esforços humanitários.

E também se tornou uma espécie de futebol político, lançado por vários lados ao longo dos anos. A sua própria existência é criticada por Israel por consolidar o estatuto dos palestinianos como refugiados, encorajando as suas esperanças contínuas de um direito de regresso à terra de onde foram expulsos em 1948 ou durante guerras sucessivas.


O destino dos refugiados tem sido uma questão central no conflito árabe-israelense. Muitos palestinos nutrem o sonho de regressar à Palestina histórica, parte da qual está agora em Israel. Israel rejeita esta afirmação e tem criticado frequentemente a criação da UNRWA pela forma como permite a herança do estatuto de refugiado.

Além disso, os governos israelitas há muito que denunciam os ensinamentos e os manuais da agência por, na sua opinião, perpetuarem opiniões anti-Israel.

Em 2022, o órgão de vigilância israelense IMPACT-se disse que o material educacional da UNRWA ensinou aos alunos que Israel estava tentando "apagar a identidade palestina, roubar e falsificar a herança palestina e apagar a herança cultural de Jerusalém", acrescentando que a agência promoveu "o anti-semitismo, ódio, intolerância e falta de neutralidade".

A Comissão Europeia identificou o que chamou de “material anti-semita” nos livros escolares, “incluindo até incitação à violência”. O Parlamento Europeu apelou repetidamente para que o financiamento da UE à Autoridade Palestiniana fosse condicionado à remoção de tais conteúdos. A UNRWA afirmou anteriormente que os relatórios feitos sobre o seu material educativo eram "imprecisos e enganosos" e que muitos dos livros em questão não eram utilizados nas suas escolas.

Agora, à medida que vários governos ocidentais congelam o seu financiamento, a agência enfrenta novamente problemas potencialmente graves - com implicações significativas para os 5,3 milhões de refugiados palestinianos registados nela. Os EUA, um dos países que tomam a decisão, são o seu maior doador, contribuindo com cerca de 340 milhões de dólares (268 milhões de libras) em 2022. A Alemanha, que também suspendeu o financiamento, vem a seguir, tendo enviado 162 milhões de dólares nesse ano.

Há muito que Israel acusa ramos da ONU de preconceito, anti-semitismo e coisas piores. E agora, um governo que enfrenta críticas crescentes, a nível interno e externo, devido à guerra em Gaza, aproveitou esta oportunidade para reforçar o seu argumento - e, de certa forma, mudar o foco.

Para os aliados ocidentais de Israel, esta é também uma oportunidade para mostrar compreensão e apoio a Israel, mantendo ao mesmo tempo a pressão sobre o seu governo para controlar a ofensiva.

Apesar da pausa nos fundos, o Conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby, fez questão de salientar que as violações cometidas por um punhado de funcionários "não deveriam impugnar toda a agência", que, acrescentou, "ajudou a salvar literalmente milhares de vidas em Gaza". fazer um trabalho importante".

O ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel rotulou a UNRWA de “o braço civil do Hamas” e disse que esta não deveria ter um papel na Faixa de Gaza pós-conflito, o que levanta a questão: se as Nações Unidas não forem autorizadas a recolher os pedaços de um território destruído, o que irá?

O novo negócio dos Bolsonaro: uma plataforma para treinar a direita

Fim de semana estafante, o que passou, para o ex-presidente Jair Bolsonaro, instalado na paradisíaca Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, e seus filhos presenteados por ele com mandatos – Flávio, senador, Eduardo, deputado federal, e Carlos, vereador, o mais esperto deles.

No sábado, o patriarca interrompeu o descanso para participar do lançamento da candidatura de Renato Araújo (PL) a prefeito de Angra dos Reis. E no domingo, acompanhado pelos três filhos Zero, estrelou uma “superlive” para promover mais um negócio promissor da família.

As duas ocasiões serviram também para que Bolsonaro se defendesse de antigas e novas acusações que carrega nos ombros. Uma: a de ter estado por trás do golpe do 8 de janeiro de 2023. Como é possível, ele indagou, falar-se em golpe se nenhum tiro foi disparado?

Simples: não houve disparos porque o golpe foi abortado a tempo. O que caracteriza golpes não são necessariamente disparos. Houve poucos em março de 64. Próxima questão: Bolsonaro chamou de abuso da Justiça a condenação de golpistas a penas que vão até 17 anos de prisão. Disse:

“Hoje vemos colegas condenados a 17 anos de prisão, muitos inocentes. E até mesmo aqueles que porventura invadiram o Congresso, o que nós somos contra, (receberam) uma condenação de 17 anos. Isso é um crime, uma maneira de tentar calar todos nós.”


Colegas de quê, cara pálida? De farda, como a que Bolsonaro usou até ser forçado a deixar o Exército por má conduta nos anos 1980? A farda ainda não sentou no banco dos réus. O Supremo Tribunal Federal condenou 30 golpistas pela invasão às sedes dos Três Poderes da República.

Dois dos golpistas a três anos de prisão cada um, penas que poderão ser cumpridas em regime semiaberto. Dos 28 que ficariam presos em regime fechado (pena maior de oito anos e cumprida em presídio de segurança máxima ou médio), somente oito estão presos.

Se bagrinhos receberam penas de até 17 anos de prisão, o que não irão receber os tubarões inspiradores, financiadores e promotores do golpe? É isso o que apavora Bolsonaro: ser julgado e condenado a uma pena muito mais severa. Daí porque sai em socorro dos seus colegas de ideias.

A “superlive” do domingo no Youtube foi uma fala descosturada e confusa de Bolsonaro em sua própria defesa, e na dos filhos. Sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), ele disse que foi “massacrado por cinco anos” pela suspeita de ter sido o mandante:

“O possível executor morava no meu condomínio, que tem 150 casas, daí o mundo começou a cair na minha cabeça. O que mais quero é que o fato seja elucidado. O meu filho Carlos tinha o gabinete dele no mesmo andar da Marielle, nunca tiveram problema”.

Bolsonaro e os filhos abordaram suas causas ideológicas usuais, com críticas ao aborto, legalização de drogas, marco temporal, projeto que criminaliza fake news, voto eletrônico, o ministro Alexandre Machado, o governo atual, Lula em particular e ditaduras de esquerda (de direita, não).

E divulgaram a criação de uma plataforma online de treinamentos para a direita conservadora, a exemplo da que tinha o falecido astrólogo e filósofo Olavo de Carvalho, guru da família. Para assistir às aulas de formação política e obter um certificado, o preço cobrado é de quase R$ 300.

Aí estava a cereja do bolo do pronunciamento de Bolsonaro: grana, grana, grana. A família empreendedora não se contenta com o patrimônio que acumulou, grande parte adquirido com dinheiro vivo, outra parte com dinheiro da rachadinha, e outra por meio de tenebrosas transações.

Apenas entre 1º de janeiro e 4 de julho do ano passado, Bolsonaro arrecadou R$ 17.196.005,80 por meio do Pix. Foi o que informou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Com a venda de joias roubadas ao Tesouro Nacional, ainda não se sabe quanto ganhou.

Em novembro do mesmo ano, o governador de São Paulo, o generoso Tarcísio de Freitas (Republicanos), que lhe deve o mandato, assinou lei que livrou Bolsonaro de pagar mais de R$ 1 milhão em multas por ter desrespeitado medidas de isolamento durante a pandemia da Covid-19.

Os Bolsonaro são movidos a dinheiro, assim como o mundo.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Pensamento do Dia

 

Ameen Alhabarah



Resiliência democrática

2024 será o ano do eleitor. Mais de metade da população mundial, em mais de 60 países em todos os continentes, vai às urnas este ano. São mais de quatro mil milhões de eleitores a votar em eleições presidenciais, legislativas ou locais. Umas realizam-se em democracias liberais e serão livres e justas. Outras em regimes iliberais, com mais ou menos liberdade, mas sem igualdade na competição eleitoral entre governo e oposições. Outras, enfim, em regimes autocráticos serão uma farsa: destinam-se apenas a legitimar o regime e a única questão em jogo é quanto se aproxima o incumbente dos 100%.

Para o bem ou para o mal, as escolhas destes eleitores vão determinar não só o destino dos seus países, mas também o futuro da democracia e da ordem internacional. O paradoxo, porém, é que no momento em que o maior número de pessoas em todo o mundo vai exercer o acto por excelência da democracia — o voto — a democracia está ela própria sob ataque. Sob ataque dos regimes autocráticos, no exterior, e das derivas iliberais e populistas no interior.

Longe vai o tempo do triunfo da democracia liberal e da universalização da democracia como único regime internacionalmente legítimo. E das políticas de promoção da democracia. Hoje, a democracia liberal está em retrocesso e à defesa. O número de democracias no mundo, o número de pessoas que vivem em regime democrático e a qualidade da democracia, todos estes três indicadores, estão em declínio. No seu relatório de 2023, a Freedom House confirma que há 17 anos consecutivos se regista uma queda progressiva dos indicadores das liberdades cívicas e políticas. E o Instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo, no seu relatório de 2023, afirma que, pela primeira vez em duas décadas, há hoje no mundo mais autocracias fechadas do que democracias liberais. E que 72% da população mundial vive sob regimes autocráticos ou em autocratização.

É este o contexto em que se vai disputar o ano eleitoral mais global da história. E é por isso que a prémio Nobel Maria Ressa dizia que, no fim de 2024, “saberemos se a democracia vive ou morre”. Porque as eleições em 2024 serão um teste à resiliência democrática. Todas as eleições. Mas, certamente, umas mais do que outras. No campo das autocracias como das democracias.

Na China, a eleição estava feita e Xi Jinping foi eleito por unanimidade para um histórico terceiro mandato, que lhe garantirá, provavelmente, um mandato vitalício. Na Rússia, Putin concorre, em Março, para o seu quinto mandato e não enfrentará qualquer oposição real. Todos os opositores possíveis estão presos, exilados ou envenenados. A vitória é certa e a coroação imperial também.


Tudo se joga, pois, no campo das democracias. Na Europa sob o efeito da inflação, da imigração, da corrupção e da fadiga da Guerra na Ucrânia, a direita radical tem vindo a conquistar posição. Está no poder em Itália, na Eslováquia e na Hungria, onde Orbán se tornou o modelo do iliberalismo. Venceu na Holanda e cresce na oposição, em França, na Alemanha, na Áustria e, pasme-se, em Portugal.

Mais importantes, porém, serão, em Junho, as eleições para o Parlamento Europeu. Nacionalista, eurocéptica e populista, a extrema-direita reforçará, certamente, a sua posição. Não chegará para ameaçar a hegemonia tripartida de sociais-democratas, democratas-cristãos e liberais, mas será suficiente para bloquear decisões e condicionar a agenda política dos partidos do centro moderado.

Mas, claro, decisiva, será a eleição presidencial americana, em Novembro. E o risco para a democracia e a ordem internacional será um regresso de Trump. Na política interna, significaria o ataque à independência do poder judicial, a tentativa de controlo dos media, a instrumentalização do Departamento de Justiça para perseguir os adversários, a promiscuidade entre interesse público e interesses privados e o Estado ao serviço de fins pessoais. E, pior que isso, nenhuma garantia teríamos de que as eleições americanas seguintes fossem livres e justas.

Na política externa, regressaria o bilateralismo transaccional, a hostilidade aos aliados e o fascínio pelos ditadores. A primeira decisão seria o fim do apoio à Ucrânia. E uma vitória da Rússia na Ucrânia não deixaria de encorajar outras ambições territoriais, particularmente, em Taiwan. É isso que está em jogo nas próximas eleições americanas: a democracia e a ordem internacional. Claro que os americanos não vão votar num ditador. Mas, atenção, os alemães em 1933 também não pensavam que iam votar num ditador.

A dependência da propriedade

Todos os homens são proprietários, mas na realidade nenhum possui. Não são proprietários apenas porque até o último dos pedintes tem sempre alguma coisa além do que traz em cima, mas porque cada um de nós é, a seu modo, um capitalista.

Além dos proprietários de terras, de mercadorias, de máquinas e de dinheiro, existem, ainda mais numerosos, os proprietários de capitais pessoais, que se podem alugar, vender ou fazer frutificar como os outros. São os proprietários e locadores de força física - camponeses, operários, soldados - e proprietários e prestadores de forças intelectuais - médicos, engenheiros, professores, escritores, burocratas, artistas, cientistas. Quem aluga os seus músculos, o seu saber ou o seu engenho obtém um rendimento, que pressupõe um patrimônio.


Um demagogo ou um dirigente de partido pode viver pobremente, mas se milhões de homens estão dispostos a obedecer a uma palavra sua, é, na realidade, um capitalista, que, em vez de possuir milhões de liras, possui milhões de vontades.

O talento visual de um pintor, a eloquência de um advogado, o espírito inventivo de um mecânico são verdadeiros capitais e medem-se pelo preço que deve pagar, para obter os seus produtos, quem não os possui e carece deles. E não existe ninguém, a menos que seja paralítico ou néscio, que não possua uma porção de capitais da segunda espécie, ainda que seja a sua capacidade de trabalho físico, vendível, como qualquer outro bem, com um contrato verdadeiro e apropriado.

Dir-se-á que os possuidores dos capitais pessoais são forçados, para viver, a cedê-los, dia a dia, aos capitalistas que dispõem dos bens visíveis e estão, por isso, ao seu serviço. Mas essa dependência, para quem vê claro, é recíproca: um proprietário de terras, mesmo que possua meio país, é como se não tivesse nada, se não encontra camponeses que façam frutificar os seus latifúndios; o grande fabricante tem de vender como sucata as suas excelentes máquinas, se não conta com operários que as façam funcionar e produzir lucros; o político está às ordens do especulador, mas este não poderá efetuar os seus negócios, se não dominar, por meio daquele, a opinião pública e o Estado; e se médicos, advogados e professores não poderiam viver sem doentes, culpados e ignorantes, é igualmente verdade que os segundos, em determinados momentos, não podem prescindir dos primeiros. Até o aleijado, o cego e o leproso obtêm um certo rendimento das suas muletas, da sua escuridão e das suas chagas.

Por conseguinte, aqueles a que os instigadores da plebe chamam ‘possuidores de nada’, ‘destituídos’ ou ‘deserdados’ não existem.
Giovanni Papini, "Relatório Sobre os Homens"

Farinha pouca, meu pirão primeiro

É o que mostra o diagnóstico do Banco Mundial, produzido para os debates do Fórum de Davos (Estadão, 22/01/24). Dois pontos chamam atenção no relatório. Primeiro, que “o enfrentamento da pobreza no mundo estagnou”, com 700 milhões de pessoas vivendo com US$2,25/dia em 2023. Segundo, que a desigualdade se manifesta de formas mais diversas do que apenas a pobreza, como na saúde, educação, espaços públicos, segurança, gênero e até mudança climática.

Em períodos de escassez, o razoável seria que a solidariedade inspirasse uma distribuição igualitária dos recursos existentes. Em tempos de abundância, melhor ainda, seria de se esperar que o espírito de partilha estimulasse uma divisão justa da riqueza produzida.

Desde que o homem virou gente não é isso que acontece. De um lado, a evolução tecnológica aumentou o degrau que distancia uma minoria rica da maioria pobre. Por outro lado, em tempos de crises, como o aquecimento global, os esforços de entendimento coletivos retrocedem, em favor de interesses arcaicos.


Aqui na Ilha da Vera Cruz, durante a pandemia de COVID-19, surgiram nove bilionários novos nas capas das revistas. Muito antes, Joaquim Nabuco (O Abolicionismo, 1883) já indicava que nossa desigualdade vem de longe.

“Um país já velho… com paisagem marcada pelo abandono… cultiva o desprezo pelos interesses do futuro e a ambição de tirar o maior lucro imediato…, qualquer que seja o prejuízo das gerações futuras… Queimou, plantou e abandonou… não edificou escolas, não construiu pontes, nem melhorou rios… não concorreu para progresso algum na zona circunvizinha”.

A desigualdade pode ser vista pela lente urbana. Patrícia Ellen, ex-secretária de desenvolvimento de São Paulo, lembrava que “a diferença da expectativa de vida entre um bairro rico e um bairro pobre pode chegar a um ano de vida por quilômetro”. A Suíça e o Haiti coexistindo numa mesma cidade.

Por sua vez, Beatriz Bracher, do Instituto Galo da Manhã, chama a atenção para a relação entre a segurança pública e a desigualdade, quando destaca que “grupos criminosos vêm espraiando seu poder para o restante da cidade e para outras menores, antes com baixos índices de criminalidade” (Folha de São Paulo, 22/01/24).

Enquanto isso, a FGV acaba de publicar uma pesquisa demonstrando que as mulheres ainda recebem salários até 29% mais baixos que os homens ocupando o mesmo cargo.

Nessa disputa milenar por tanta farinha e pirão, vale refletir sobre a relação entre os fatos de que 2023 tenha sido o ano mais quente dos últimos mil séculos (Serviço de Mudanças Climáticas, Copernicus) e que “2023 foi o ano da desigualdade social”, conforme o estudo do Banco Mundial. Ambos, em breve, serão caminhos sem volta.

A trama da desatenção

‘Eu não sei dizer, nada por dizer, então eu escuto’ — diz a bonita letra musical. Podia ser frase de psicanalista à espera de um sinal do inconsciente, em meio ao jorro de falas do analisando. Mas também um canto retraído e perplexo do sujeito atual, diante dos absurdos que o cercam. Afinal, dizer o quê? Como se a palavra já tivesse morrido, tamanha sua inocuidade. E o escritor, enquanto nada articula, escuta sua alma discutir a função e a utilidade da escrita. O dilema paralisante pode ser injusto com os que precisam manter o espírito aceso por ideias que os ajudem a encontrar sentido para suas perplexidades.

Será o escritor capaz de atender à expectativa, emergir da banalidade e articular ideias instigantes, ressuscitando a palavra — como na arte que se afasta ou distorce a realidade para, em seguida, desvelar suas nuances? Pois bem. Uma conspiração mundial estaria em curso — anônima, inconsciente, coletiva. Mas, ao mesmo tempo, como se houvesse um desígnio subterrâneo, um projeto intencional, tão efetivo que se expressa em sua universalidade automática. Com a cumplicidade das vítimas. A estratégia é deixar todos os indivíduos desatentos. É uma conspiração da desatenção, de manter os seres entorpecidos — mesmo aqueles que, na superfície, parecem resistir e criticar.


Sabemos muito bem dos meios usados para esse fim, todos os desfrutamos diariamente — aliás, acertaram em cheio, nos oferecendo preencher a incurável falta que nos habita. Não temos consciência de que aspectos a trama nos impede de enxergar e pensar, e esse é um dos êxitos de sua ação. Ela se alia a nosso dispositivo inato de negação da realidade frustrante. As questões podem ser as mais íntimas do ser, familiares, ou também as mais próximas da sociedade, da política e do planeta. E tais questões se agravam à medida que aumenta a desatenção individual e coletiva. A grande esperteza da conspiração é nos convencer, enquanto isso, de que seus meios foram feitos para aumentar o entretenimento, o conhecimento, a democracia e a comunicação.

Enquanto acreditamos que tudo se resume a essa dimensão positiva, a boiada da pulsão inata destrutiva vai passando e carrega consigo a deterioração da civilização que se infiltra de forma sorrateira. Ela expande a barbárie das guerras, agrava os riscos climáticos, produz soluções políticas com líderes extremos, em meio a conflitos sociais e disparidade de renda cada vez maior. Entre os mais lúcidos, cresce de forma assustadora o sentimento de que não é possível fazer nada — muito menos escrever alguma coisa. A máquina do mundo roda guiada por mãos invisíveis, com engrenagens anônimas, desígnios sinistros autônomos que já escaparam do alcance voluntário, mesmo de seus criadores e das esferas de maior poder.

O sentimento de impotência substitui o idealismo, e um realismo conformista e utilitário ocupa o lugar que outrora era do romantismo. Salve-se quem puder nesta feira moderna. Aqui, o convite é sensual, e a distância já morreu — numa livre citação da profética música do saudoso Som Imaginário. E a curiosa contradição é que, numa sociedade cada vez mais dispersa e desatenta, que tudo esquece, os indivíduos ainda lutem, na esfera mundana — às vezes de forma desesperada —, por conquistar atenção e lembrança, mesmo que seja por aqueles 15 segundos fugidios de fama. Mas a cultura da desatenção, da ausência de foco e do esquecimento de tantas questões cruciais de uma sociedade provoca nos sujeitos desnorteados o sentimento de desamparo e orfandade. A História já mostrou qual é o risco político desse virtual cenário.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Apenas rebanhos

A comunidade é uma coisa muito bela. Mas o que vemos florescer agora não é a verdadeira comunidade. Essa surgirá, nova, do conhecimento mútuo dos indivíduos e transformará por algum tempo o mundo. O que hoje existe não é comunidade: é simplesmente o rebanho. Os homens se unem porque têm medo uns dos outros e cada um se refugia entre seus iguais: rebanho de patrões, rebanho de operários, rebanho de intelectuais… E por que têm medo? Só se tem medo quando não se está de acordo consigo mesmo. Têm medo porque jamais se atreveram a perseguir seus próprios impulsos interiores. Uma comunidade formada por indivíduos atemorizados com o desconhecido que levam dentro de si. Sentem que já periclitaram todas as leis em que baseiam suas vidas, que vivem conforme mandamentos antiquados e que nem sua religião nem sua moral são aquelas de que ora necessitamos.

Hermann Hesse

Quando desistir pode nos salvar

Pode parecer um paradoxo. No entanto, desistir às vezes pode nos salvar. Querer ter sucesso, conseguir o que quer a qualquer custo, pode nos levar à pior derrota. Vivemos um momento em que, com mais força do que antes, o que nos valoriza é a conquista, a vitória a qualquer preço. A desistência aparece como covardia.

No passado, aqueles que persistiam eram descritos como teimosos e teimosos. “Vamos, deixe isso pra lá”, diziam nossos avós, quando nem cedíamos às evidências. Hoje, a neurociência avançou no estudo dos complexos labirintos do cérebro e está ajudando a psicologia clássica a aprofundar o estudo da mente e de seus mistérios.

Quando, por exemplo, a psicologia e a política andaram tão de mãos dadas como neste momento? Os estudos cada vez mais ampliados da neurociência, que examinam os labirintos do nosso cérebro, deparam-se com a crise política que está a ser vivida globalmente . E é nesta área que conceitos que podem parecer óbvios, mas que na verdade são os que transformam o mundo, são analisados com mais acuidade.


Há poucos dias, foi chocante a declaração ao jornal brasileiro Folha de São Paulo do psicanalista britânico Adam Phillips, de que “a ideia de nunca desistir é fascista”. E a persistência, não saber ceder, querer ter sucesso a qualquer preço, pertence à psicopatia. O aço não dobra, apenas quebra. Melhor ser uma cana que se molda sem nunca quebrar.

De acordo com os estudos que estão aparecendo na já rica análise do corpo da mente, velhos paradigmas estão começando a ruir. Hoje parece, por exemplo, que a verdadeira saúde mental é aquela que sabe combinar , dependendo do momento, tanto a perseverança quanto a desistência.

Se aqueles que não desistiram, chamados de “resistentes”, sempre foram exaltados como heróis, hoje começa a ficar mais claro que o que ontem foi condenado como fraqueza pode acabar sendo terreno fértil para a vitória. Ruth Aquino, em sua coluna no caderno literário do jornal O Globo , cita a obra: “O perigo de ser são”, de Rosa Montero e afirma: “Para se encontrar às vezes é preciso perder-se numa ilha para formar uma arquipélago.”

Vivemos numa era de tempos de mudança em que todas as águas parecem perturbadas, novas e velhas ao mesmo tempo. É como se tivéssemos que inventar outro alfabeto, outra língua, para podermos compreender o que se passa dentro e fora de nós. Assim, as publicações científicas se multiplicam a cada dia, focadas em desvendar os mistérios contidos em nosso punhado de gramas de cérebro, de autoajuda, que tornaram moda o rico mundo da psique .

E é a linguagem, esse enxoval que adorna apenas o Homo Sapiens, que cria as novas linhas de pensamento, os novos e inéditos labirintos para os quais a mente nos conduz. E assim renasce a força do paradoxo. É isso que estamos vendo quando dizemos que desistir pode ser mais fecundo e mais humano do que querer persistir, vencer, dominar, entregar-se ao outro a qualquer preço para sair vitorioso.

Saber desistir, mesmo que pareça uma derrota, pode, no entanto, ser a melhor das vitórias. Pela primeira vez em muito tempo, as obsessões dos conflitos do velho mundo parecem juntar-se de um lado ao outro do planeta, todos querendo persistir nos seus objetivos de guerra.

De um lado a outro do planeta, começam a ressoar sombrios presságios de guerras, sem esconder que, para não perdê-las, já sugerem sombrias soluções finais. Fala-se de um possível conflito atômico como se fosse uma simples discussão de bar. É curioso que a humanidade nunca tenha estado tão perto como hoje de desvendar os mistérios mais ocultos da natureza e da sua destruição total.

E é aí, nos momentos em que olhamos para o abismo, que precisamos abraçar conceitos simples mas fecundos, como ser capaz de desistir de triunfar, de passar da grosseira teimosia primitiva de não ceder, para o capacidade lúcida de desistir a tempo. Covardia ou sabedoria?

Citemos agora apenas dois exemplos que nos incomodam a todos: a guerra, que já parece eterna, entre a Rússia e a Ucrânia e a guerra cada vez mais complexa entre Israel e Hamas. Sem pensar no que o fim dessas batalhas pouparia em triliões de dólares em armas, estamos mais do que no passado confrontados com o sofrimento do sacrifício de mulheres e crianças inocentes. Portanto, o fato de “desistir” de continuar a matar e a destruir não seria uma covardia de ambos os lados, mas sim um gesto de humanidade.

A Rússia e a Ucrânia, apertando as mãos, fechando as portas do inferno em curso, e Israel e a Palestina parando a matança e criando juntos dois Estados que podem coexistir sem se destruir, podem parecer neste momento uma utopia infantil. Não é. Nem seria uma fraqueza militar por parte dos contendores. Seria uma nova primavera histórica, uma ressurreição do alegre Maio francês de 68, do “faça amor, não faça guerra”.

Seria a melhor demonstração de que tantas vezes, tanto a nível pessoal como universal, desistir, perdoar, desistir de vencer a qualquer preço, é a melhor e mais digna forma de existir e ter sucesso.

Diante dos delírios da guerra, onde os inocentes sempre perdem, desistir não é uma derrota. É a única coisa que pode nos salvar da loucura sem volta.