sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Farinha pouca, meu pirão primeiro

É o que mostra o diagnóstico do Banco Mundial, produzido para os debates do Fórum de Davos (Estadão, 22/01/24). Dois pontos chamam atenção no relatório. Primeiro, que “o enfrentamento da pobreza no mundo estagnou”, com 700 milhões de pessoas vivendo com US$2,25/dia em 2023. Segundo, que a desigualdade se manifesta de formas mais diversas do que apenas a pobreza, como na saúde, educação, espaços públicos, segurança, gênero e até mudança climática.

Em períodos de escassez, o razoável seria que a solidariedade inspirasse uma distribuição igualitária dos recursos existentes. Em tempos de abundância, melhor ainda, seria de se esperar que o espírito de partilha estimulasse uma divisão justa da riqueza produzida.

Desde que o homem virou gente não é isso que acontece. De um lado, a evolução tecnológica aumentou o degrau que distancia uma minoria rica da maioria pobre. Por outro lado, em tempos de crises, como o aquecimento global, os esforços de entendimento coletivos retrocedem, em favor de interesses arcaicos.


Aqui na Ilha da Vera Cruz, durante a pandemia de COVID-19, surgiram nove bilionários novos nas capas das revistas. Muito antes, Joaquim Nabuco (O Abolicionismo, 1883) já indicava que nossa desigualdade vem de longe.

“Um país já velho… com paisagem marcada pelo abandono… cultiva o desprezo pelos interesses do futuro e a ambição de tirar o maior lucro imediato…, qualquer que seja o prejuízo das gerações futuras… Queimou, plantou e abandonou… não edificou escolas, não construiu pontes, nem melhorou rios… não concorreu para progresso algum na zona circunvizinha”.

A desigualdade pode ser vista pela lente urbana. Patrícia Ellen, ex-secretária de desenvolvimento de São Paulo, lembrava que “a diferença da expectativa de vida entre um bairro rico e um bairro pobre pode chegar a um ano de vida por quilômetro”. A Suíça e o Haiti coexistindo numa mesma cidade.

Por sua vez, Beatriz Bracher, do Instituto Galo da Manhã, chama a atenção para a relação entre a segurança pública e a desigualdade, quando destaca que “grupos criminosos vêm espraiando seu poder para o restante da cidade e para outras menores, antes com baixos índices de criminalidade” (Folha de São Paulo, 22/01/24).

Enquanto isso, a FGV acaba de publicar uma pesquisa demonstrando que as mulheres ainda recebem salários até 29% mais baixos que os homens ocupando o mesmo cargo.

Nessa disputa milenar por tanta farinha e pirão, vale refletir sobre a relação entre os fatos de que 2023 tenha sido o ano mais quente dos últimos mil séculos (Serviço de Mudanças Climáticas, Copernicus) e que “2023 foi o ano da desigualdade social”, conforme o estudo do Banco Mundial. Ambos, em breve, serão caminhos sem volta.

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