segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Michelle é farinha do mesmo saco patrimonialista

Descobriu-se que o Pronampe, programa lançado pelo governo para oferecer dinheiro com juros camaradas e condições adocicadas a micro e pequenas empresas durante a pandemia possui duas vias de acesso. Numa, o empreendedor vai a uma agência da Caixa Econômica Federal, entra na fila, toma chá de cadeira do gerente e tropeça na burocracia. Noutra, o felizardo toma um atalho, atravessa um tapete vermelho, encontra a porta da primeira-dama Michelle Bolsonaro aberta e entra sem bater..

Quem toma a primeira trilha precisa rezar para que o dinheiro saia antes que seu negócio vá à breca. Reportagem da revista Crusoé revela que os amigos com acesso ao balcão de Michelle são mais afortunados. Arrolados numa lista de clientes preferenciais, eles saltam todos os obstáculos e chegam ao gabinete do presidente da Caixa, o bolsonarista Pedro Guimarães, por meio de mensagens encaminhadas por uma assessora da Presidência da República.

Em inspeção de rotina, auditores da Caixa apalparam a lista de apadrinhados de Michelle. Numa das mensagens enviadas pela assessoria da primeira-dama, lia-se o seguinte: "A pedido da sra. Michelle Bolsonaro e conforme conversa telefônica entre ela e o presidente Pedro, encaminhamos os documentos dos microempresários de Brasília que têm buscado créditos a juros baixos."

Os auditores manusearam documentos internos da Caixa. Um deles anotava: "Cliente veio através de lista de empresas indicadas pela primeira-dama Michele Bolsonaro ao presidente Pedro Guimarães." Outro dizia: "Direcionamos para análise e tratativas necessárias solicitações de microempresários de Brasília enviadas pelo gabinete da primeira-dama Michelle Bolsonaro."

Amiga de Michelle, a doceira Maria Amélia Campos obteve para sua confeitaria empréstimo de R$ 518 mil. E ainda convenceu a mulher de Bolsonaro a incluir no rol de beneficiários um salão assentado na Asa Sul de Brasília. Sócio do empreendimento, Waldemar Caetano Filho disse à reportagem da Crusoé que "o contato com a primeira-dama foi fundamental. É o famoso QI [quem indica]". Dono de uma floricultura brasiliense que tem Michelle como cliente, Rodrigo Resende também foi favorecido pelo QI elevado da primeira-dama, apontada na auditoria da Caixa como uma PEP, acrônimo de "pessoa exposta politicamente."

Em nota oficial, a Caixa declarou que todas as operações de crédito do Pronampe passaram por "rigorosa análise de riscos do banco, que ocorre mediante processo totalmente automatizado, independente e sem interação humana." Para o Ministério Público Federal, o rigor e a impessoalidade da Caixa só valem até certo ponto: o ponto de interrogação. Na dúvida, procuradores que conduzem inquérito aberto para investigar suspeitas de influência política na Caixa decidiram incluir Michelle no processo.

Mal comparando, sucedeu com o programa de créditos da Caixa fenômeno análogo ao que infectou o processo de aquisição de vacinas contra a Covid. O que parecia ser apenas negacionismo revelou-se um caso de negocismo. A Pfizer e o Butantan enviaram dezenas de memorandos e e-mails para o governo. Deram com muitas portas na cara antes de assinar contratos com o Ministério da Saúde. Esgueirando-se pelos atalhos da burocracia brasiliense, a indiana Covaxin subiu pelo elevador privativo e encontrou portas escancaradas para um contrato mutretado de R$ 1,6 bilhão, que teve de ser cancelado depois que a picaretagem virou escândalo.

Numa de suas manifestações para os devotos do cercadinho do Alvorada, Bolsonaro proclamou certa vez: "Eu sou a Constituição!" A frase desceu à crônica política de Brasília como uma versão tupiniquim do célebre "l'État c'est moi!". O presidente, naturalmente, não é a Constituição. Mas sua declaração serviu para acentuar a percepção de que Bolsonaro traz o patrimonialismo enterrado na alma.

Aos pouquinhos, Michelle vai se revelando farinha do mesmo saco patrimonialista em que se misturam os membros da família Bolsonaro. A exemplo do marido, madame jamais sentiu a necessidade de explicar os R$ 89 mil que o operador de rachadinhas Fabrício Queiroz depositou em sua conta. Agora, ao virar matéria-prima para investigação do Ministério Público, a primeira-dama consolida-se como integrante de uma organização familiar cujo futuro está sub judice, pendente de apreciação judicial.

Tomado pelas pendências que acumula no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral, Bolsonaro tem a aparência de um delinquente em série. Acumula pelo menos sete processos. Quatro no Supremo, onde correm as investigações sobre aparelhamento da PF, prevaricação no caso da vacina Covaxin, ataques às urnas eletrônicas e vazamento de inquérito sigiloso. Outros três no TSE, onde tramitam o inquérito das mentiras sobre urnas eletrônicas e um par de pedidos de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.

A rachadinha no gabinete de Flávio resultou numa denúncia em que o primogênito é acusado de peculato, organização criminosa e lavagem de dinheiro. Carlos arrasta pela conjuntura um inquérito que prenuncia a repetição da trajetória do irmão. Eduardo Bolsonaro, o Zero Três, é alvo de uma investigação preliminar sobre a utilização de R$ 150 mil em dinheiro vivo na compra de dois apartamentos no Rio. Jair Renan, o Zero Quatro, é investigado pelo Ministério Público Federal sob a suspeita de cometer o crime de tráfico de influência ao abrir a maçaneta de ministros para empresários.

Os Bolsonaro, uns a cara esculpida e escarrada dos outros, firmam-se como uma família dura de roer. A dinastia presidencial considera-se autorizada a transpor as limitações constitucionais que atrapalham o gerenciamento do empreendimento familiar. Nesse ambiente, Michelle sente-se à vontade para dar carona aos interesses dos amigos.

A batalha do ódio e da mentira

O Brasil está alastrando os seus campos de batalha. Alguns, por obra de mentiras e ficção. Por exemplo: milhares de pessoas, de aglomerações já passadas, são apresentadas em vídeos de eventos que ocorreram ontem ou hoje. O maior ajuntamento de massas, no movimento pelas eleições diretas, em 16 de abril de 1984, foi suplantado por 126 mil pessoas na avenida Paulista em apoio a Jair Bolsonaro. A mentira campeia. E o ódio sai do congelador para arrebentar as correntes de emoção das massas. Ora, trata-se da maior dispersão de energia já vista na história recente do país. Uma insanidade. Um retrocesso. Um atraso. Infelizmente, a campanha de 2022 ganha as ruas, sem nem termos certeza de que Lula e Bolsonaro sejam candidatos. Tudo pode mudar na undécima hora.


As campanhas eleitorais, regra geral, se dirigem a dois tipos de públicos: eleitores interessados na política, racionais, com intenção de voto definida; e grupamentos dispersos, desinformados, instáveis e emotivos. Os primeiros se interessam pelos discursos de seus candida­tos, sendo pouco suscetíveis às mensagens dos adversários, enquanto os segundos, pragmáticos, podem mudar de posição, de acordo com os benefícios – maiores ou menores – oferecidos pelos contendores por meio de propostas para áreas como saúde, educação, transpor­tes, segurança, habitação, emprego e bem-estar social. Os perfis de eleitores, sejam os engajados ou os dispersos, se guiam por critérios variados, não havendo um padrão exclusivo para decidir sobre o voto. Entre eles se incluem proximidade, qualidade das ideias, viabilidade da promessa, demagogia, populismo, história pessoal (facadas) e até empatia gerada pela maneira como o candidato se apresenta.

Essas divisões eleitorais constituem o alvo dos tiroteios de campa­nhas, donde se pinça a indagação: o combate direto – com a arma da desconstrução do adversário – dá resultados? É sabido que campanha negativa afeta a opção eleitoral. O impacto é mais forte junto a indecisos que aguardam a reta final para tomar partido. Será que teremos campanha negativa até outubro de 2022?

Campanha negativa é também tradição noutras praças. Nos EUA, Lyndon Johnson, candidato democrata a presidente em 1964, foi o primeiro a pagar anúncios para desmoralizar o rival Barry Goldwater. Uma menina no campo desfolhava pétalas de uma margarida, enquanto as contava uma a uma, até que, chegando ao dez, uma voz masculina começava a rever­ter a contagem. Na hora do zero, sob um ruído ensurdecedor, via-se na tela uma nuvem de cogumelo, simbolizando a bomba atômica, e a voz de Johnson: “Isto é o que está em jogo – construir um mundo em que todas as crianças de Deus possam viver ou, então, mergulhar nas trevas. Cabe a nós amar uns aos outros ou perecer.” O arremate: “Vote em Lyn­don Johnson. O que está em jogo é demais para que você se possa per­mitir ficar em casa.”

Em nenhum momento se mencionava Goldwater. O anúncio saiu apenas uma vez, mas as TVs o repetiram. Outros foram criados e massacraram o falcão republicano.

Esse modelo tenta associar candidatos aos valores da sociedade. Às vezes, o ataque dá errado, os atingidos se transformam em vítimas e as agressões se voltam contra os agressores. Aluízio Alves, candi­dato a governador do Rio Grande do Norte em 1960, acusado pelo adversário de correr o Estado dia e noite liderando multidões pelas estradas, apropriou-se do termo “cigano” a ele atribuído. Enfeitiçou as massas. Os comícios pegavam fogo. Dinarte Mariz, o governador, patrono da candidatura de Djalma Marinho, menosprezava: “Quem vai a esses comícios é uma gentinha analfabeta.” Aluízio adotou o ter­mo: “Minha querida gentinha.” Ganhou a eleição.

Mil dias de assombração

O governo Bolsonaro comemora mil dias. Já escrevi e falei sobre o tema, analisando a trajetória política desse experimento. Mas ainda não parei para me perguntar como foi possível manter, ainda que de forma precária, a sanidade mental neste país enlouquecido.

Jamais poderia imaginar um governo tão singular como o de Bolsonaro, no qual crimes e trapalhadas se entrelaçam de tal maneira, tragicômico. Quando comecei a entender de política, o confronto esquerda-direita tinha outros contornos. Nosso bairro proletário era getulista. A simpatia juvenil estava ao lado dos vizinhos. Mas havia gente como meu pai, que votava no brigadeiro Eduardo Gomes.

A encarnação da direita naqueles anos tinha outro perfil. Votem no brigadeiro, diziam as mulheres que o apoiavam, ele é bonito e é solteiro. Até um doce foi criado em homenagem a ele.

Quando Bolsonaro postou aquela famosa cena de golden shower, perguntando do que se tratava, percebi que estávamos num outro momento histórico. A clássica e austera direita dava margem a um sensacionalismo radiofônico que, sob a máscara de moralidade, usava as cenas de crime e sexo para garantir audiência.

Quando o então secretário de Cultura, Roberto Alvim, fez um discurso imitando o líder nazista Joseph Goebbels, dizendo que a arte brasileira seria heroica e imperativa, percebi também um novo tom.

Dificilmente os governos militares que dominaram o país a partir de 1964 aceitariam um discurso abertamente nazista, sobretudo porque um dos orgulhos nacionais foi exatamente a participação na Segunda Guerra no lado oposto a Hitler.

Não só a vulgaridade, mas uma certa visão moderna de inconsequente colagem de ideologias estava em jogo. Assim como uma concepção também muito moderna de que não existe a verdade dos fatos, mas apenas versões. O que é mais um componente assombroso da atualidade.

Alguém definiu assim o diálogo com os novos atores políticos: é como se jogasse xadrez com pombos, eles desarrumam o tabuleiro e saem cantando vitória.

A versão cinematográfica de quase todas as taras do governo pode ser encontrada, em cores, naquele vídeo da reunião de 22 de abril de 2020. Em primeiro lugar, a assombrosa fala de Bolsonaro defendendo que as pessoas se armem para combater a ditadura, insinuando que ela se encarnava nos governadores que defendiam restrições sociais contra a pandemia.

Interessante ver como os generais que o apoiam assistiam calados e satisfeitos com o discurso, algo que no passado seria impensável. Na mesma reunião, o então ministro do Meio Ambiente propunha derrubar as regras ambientais, deixar a boiada passar, enquanto o Brasil se preocupava com a pandemia. No mesmo filme, veremos Bolsonaro dizendo que precisa da PF para proteger a família e aliados e um ministro da Educação propondo a prisão de ministros do STF.

Em Leipzig, no início dos anos 90, cobri manifestações dos skinheads, jovens que têm simpatias pelo nazismo. Creio que posso dizer isto com tranquilidade: entre eles havia mais consciência ambiental que no governo Bolsonaro, para o qual devastar os recursos naturais é um ato de fé.

Há todo um capítulo ainda dos rituais próprios do governo Bolsonaro: conversas no cercadinho, motociatas, o escudo com a expressão “imbrochável”, os dedos imitando armas, empunhar o violão como se fosse um fuzil.

Em termos feministas, isso seria uma masculinidade tóxica. Eu diria, a começar pelas motociatas, uma masculinidade evanescente.

Você monta numa motocicleta, ostenta um escudo de imbrochável e, a cada instante, imita uma arma com os dedos: creio que até um estagiário de psicologia arriscaria a óbvia interpretação.

É difícil classificar tudo isso. Não me parece longe de algo que possa ser descrito como a carnavalização do fascismo. É, ao mesmo tempo, engraçado e letal, uma fanfarra em verde-amarelo com 600 mil mortes na pandemia, milhares de árvores derrubadas, milhões de animais carbonizados.

Pensamento do Dia

 


Verde e amarelo: o último refúgio dos canalhas

Achava que tinha chegado no limite do abuso com o verde e o amarelo, principalmente, quando eles vinham em forma de camisa da CBF. Mas, nesta quarta-feira, minha má vontade com as cores da “Pátria” superaram todos os limites ao ver o empresário Luciano Hang prestar depoimento na CPI da Covid. O espalhafatoso dono da Havan fez seu show de horrores, diante dos senadores, vestido dos pés até a cabeça nas cores da bandeira do Brasil. Nem os sapatos escaparam.

A postura Hang na CPI condiz com a de um autêntico canalha que busca refúgio em um patriotismo tão falso quanto tosco. Desrespeitoso, arrogante e falastrão, mentiu o quanto quis (o Aos Fatos checou tudo direitinho). Usou máscara com propaganda de sua empresa, levou placas em defesa da “liberdade de expressão”, reafirmou a cartilha negacionista, provocou senadores, gerou tumulto e mandou seu recado para o fiel público bolsonarista.


Hang seguiu um roteiro prévio, cumpriu à risca o que tinha planejado e saiu contando vantagem nas redes sociais. Faltou alguém para dar um basta no dono da Havan, como o senador Fabiano Contarato (Rede/ES) fez com o também empresário bolsonarista, patriota e “cidadão de bem” Otávio Fakhoury, no dia seguinte, na mesma CPI da Covid.

Com coragem, equilíbrio e firmeza, Contarato reagiu a uma postagem homofóbica do depoente comentando um tuíte seu. Foi emocionante e histórico, vale demais ver o vídeo. O machão Fakhoury ficou com o rabo entre as pernas. Foi colocado no seu devido lugar e vai apodrecer no lixo da história.

Como demonstrou Fabiano Contarato, os homofóbicos – e de maneira geral, todos os fascistas – precisam ser enfrentados, confrontados e expostos. Para que todos possam ver que, escondido atrás das cores da bandeira, existe apenas mais um canalha covarde.

O esquecimento é a borracha

O brasileiro, que já se esqueceu do departamento de propinas da Odebrecht, vai acabar se esquecendo também dos 600 mil mortos.
Diogo Mainardi


A cobertura política que facilita a emergência de fascistas

Lavar a roupa suja do governo de Donald Trump tem sido uma bonança para a indústria editorial americana. A rotina começou cedo, com o republicano ainda na Casa Branca. Autores revelam um homem corrupto, desequilibrado, ignorante e um traidor dos interesses do próprio país.

O novo exemplo é o livro de uma trumpista de primeira hora, Stephanie Grisham. Ela foi assessora de imprensa da Casa Branca e chefe de gabinete de Melania Trump. Só saltou do navio no dia da invasão do Capitólio, quando a primeira-dama se recusou a interromper uma sessão de fotos de um tapete para se inteirar do ataque terrorista.

O título do livro de Grisham, “I’ll Take Your Questions Now: What I Saw at the Trump White House” (vou responder a suas perguntas agora: o que vi na Casa Branca de Trump), é uma referência ao fato de que Grisham nunca realizou sequer uma das entrevistas coletivas regulares na sala de imprensa da Casa Branca.

Como a maioria dos que servem a canalhas e depois tentam faxinar a reputação para não serem incomodados com vaias em restaurantes, a desculpa de Grisham para o blecaute com a imprensa é pífia: ela confirma que Trump mentia demais e não queria ser citada na imprensa proferindo absurdos.

As revelações vão da gravidade geopolítica à obsessão de Trump com o próprio pênis. No encontro com Vladimir Putin, na cúpula do G20, em 2019, o americano agiu como um vira-latas buscando aprovação do ditador russo e disse a ele: “Vou parecer meio durão com você por alguns minutos, mas é só para as câmeras, depois que saírem a gente conversa”.

Quando a atriz pornô Stormy Daniels ridicularizou o formato do pinto presidencial, Trump telefonou para Grisham do avião Air Force One para informar que seu pênis tinha forma e tamanho ideais.

O que os livros não cobrem em detalhes é o papel da imprensa política em facilitar a ascensão e o desgoverno de Trump. Sim, o jornalismo americano demorou, mas passou a classificar de “mentira” do presidente o que antes descrevia com eufemismos. Mas figuras grotescas como Trump ou Jair Bolsonaro não são simples exceções extremistas. Chegam ao poder, provocam caos e morte em massa a bordo de um sistema que boa parte da imprensa ainda cobre como um território de equivalentes.

Um ex-editor de dois outrora influentes jornais americanos admitiu com singeleza seu papel de cúmplice não intencional na emergência do “fascismo que ameaça a nossa democracia”. Mark Jacob é autor de livros de história e trabalhou nos jornais Chicago Tribune e Chicago Sunday Times.

Numa série de postagens no Twitter, ele lembra que, quando editava reportagens políticas, contava o número de citações de republicanos e democratas, para manter a suposta objetividade. Mas ele conclui que, se antes a corrupção era distribuída entre os dois partidos, nas últimas décadas a decadência ética do Partido Republicano provocou fadiga na mídia, o que ajudou a normalizar o inaceitável.

Afinal, argumenta Jacob, Hillary Clinton usar servidor privado para emails não é o mesmo que George W. Bush mentir para iniciar uma guerra catastrófica no Iraque.

Bolsonaro foi eleito com apoio de jornalistas que vomitam asneiras como “bolsopetismo”, um chocalho ideológico, não um fato. Pouco importa se hoje é criticado por arrependidos. A mídia deve ao público a defesa da democracia, não a neutralidade diante de fascistas.

Quanto vale o poeta

Sim, ele tinha de fato um olhar triste. Os olhos azuis, de um azul profundo, que vinha do fundo dos séculos. Da ancestral Escócia, ou de um afluente celta que passava pelo Portugal nortenho. Naquele remotíssimo ano, ali na avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, a gente via pela primeira vez, em carne e osso, o poeta. Seus versos entravam na conversa e dela saíam sem aspas. Palavras de passe, o código.

Perdi o bonde e a esperança, dizia um, enquanto passava o bonde. Havia bondes e havia esperança. Pouco importava o que diziam os jornais. Havia jardins, havia manhães naquele tempo. Volto páido para casa, dizia o outro. A tragédia lá fora, a guerra. Nossos ombros suportavam o mundo e ele não pesava mais do que a mão de uma criança. O amor não tem importância. Que é a velhice?

A cidade ainda cheirava a roça. E cheirava a tinta, novinha em folha. Todavia, velha cidade! Era ali mesmo, naquele cenário, que se situavam os versos tão repetidos. As árvores tão repetidas. Debaixo de cada árvore faço minha cama. Eu via a árvore, por que não veria a cama? Em cada ramo dependuro meu paletó. A avenida tinha muitas árvores, muitos ramos. E ali estava o poeta, com o seu paletó. Escovadíssimo, nos trinques. E os tristes olhos azuis.

Ao Paulo, o que impressionou foram os sapatos de camurça. Volta e meia, anos a fio, os sapatos voltavam à conversa. O poeta achava graça e ria. Um simples detalhe, desses que ficam para sempre. Como um cisco que se recusa a sair. Há três anos, desde março de 1989, a efígie do poeta está numa cédula que começou sendo de cinquenta cruzados novos. Hoje é de cinquenta cruzeiros. Não vale um caracol.

O raio dessa nota me persegue. Vira e mexe, tenho duas, três no bolso. Nem de óculos consigo ler os quatro versos da "Prece de mineiro no Rio". Fujo da "Canção amiga", que está inteira na cédula. Quanta coisa no anverso e no reverso de um papelucho que não vale nada. Está fiel o desenho. É a sua cara. Mas fechada demais. E ele ria, sabia rir. Aqui está tristíssimo, como nunca o vi. Deve ser o diabo dessa inflação. Fujo da efígie e reencontro, remoto, em Minas, o poeta Carlos Drummond de Andrade.

Otto Lara Resende, Folha SP 22/02/1992

Um governo sem remédio

A inflação está de volta aos dois dígitos com seu efeito devastador sobre os mais pobres, num momento em que há um forte aumento da pobreza. Isso deveria estar no centro das atenções do governo, mas o presidente está ocupado em fazer campanha antecipada, em jogar a culpa dos problemas sobre os governadores. O Ministério da Economia não conseguiu formular uma boa proposta de combate à inflação, de redução da pobreza, e está num jogo de faz de conta fiscal.

Faz de conta que o teto de gastos está sendo respeitado, faz de conta que a Lei de Responsabilidade Fiscal está sendo obedecida. O teto fica onde está, mas muitas despesas vão sendo depositadas sobre ele. E quanto mais despesas sobem, mais fictícia se torna essa trava fiscal. A ideia de financiar um novo programa social com receitas ainda a serem criadas é delirante. E sim, fere a LRF. O secretário especial de Fazenda, Bruno Funchal, diz que se o projeto do Imposto de Renda não for aprovado não haverá o novo programa. Isso é de tranquilizar, por um lado, mas não resolve a outra questão. Há necessidade de mais dinheiro para as transferências de renda. E isso é necessário porque os pobres ficaram mais pobres, e há mais pobres no país.


Na visão do mercado financeiro o que está claro é que o governo não quer cortar despesas para compensar a ampliação da rede de proteção aos mais pobres. Espaço há, como as emendas bilionárias de relator, que só servem para comprar o apoio dos políticos do centrão. A saída, então, será através do velho truque do aumento de impostos. Por isso subiu o IOF e o governo quer urgência na aprovação do seu projeto de IR. Ainda assim, as contas não fecham, porque existe a limitação do teto de gastos. A proposta inicial era ruim, foi piorada na Câmara e empacou no Senado. Não há qualquer certeza de que ela de fato vai arrecadar mais. O governo diz que o projeto será neutro, mas que com o aumento da receita vai financiar o programa. Ou é neutro ou aumentará a receita. Mas vários economistas estão prevendo que, na verdade, haverá perda de arrecadação. Os estados sabem que perderão.

O que o Brasil não precisa? De inventar um programa de transferência de renda só para tirar a marca do PT do Bolsa Família. E foi exatamente o que governo fez. Ele baixou uma Medida Provisória extinguindo o programa e criando o novo Auxílio Brasil, mas não sabe ainda como vai financiar. Enquanto isso, cria-se o que já existiu, como o vale-gás. Ele foi extinto quando o governo Lula eliminou vários programas para concentrar no Bolsa Família, porque uma política potente é melhor do que a pulverização dos programas sociais.

Tempo para formular ideias melhores houve. E foi desperdiçado neste improviso constante que domina o governo Jair Bolsonaro. O negacionismo é ruim em si mesmo e por todos os efeitos colaterais. Ele impede que o governo tenha uma visão da sequência dos eventos e planeje a ação pública. Bolsonaro achou que a pandemia seria curta, negou a segunda onda, combateu as vacinas, brigou com os dados, desuniu o país e só agiu empurrado. Agora, unido ao Ministério da Economia, o presidente lança mão de medidas populistas para ver se consegue reverter a queda forte de popularidade.

A inflação vai atingir, com o dado de setembro, 10,2% segundo o Banco Central. As famílias estão endividadas, empobrecidas, e os juros terão que subir porque o BC tem que cumprir seu mandato de atingir a meta de inflação. Seria melhor se o presidente não atrapalhasse tanto a economia, com suas ameaças, mentiras e ataques.

O Brasil já reduziu tanto a sua expectativa em relação ao comportamento adequado de um presidente da República que comemora o fato de ele não falar de golpe desde o dia 7 de setembro. O país vai contando os dias como se, por decurso de prazo, Bolsonaro fosse deixar de ser o que é. Nesse meio tempo ele usou descaradamente o dinheiro público em campanha antecipada, atacou os governos estaduais por causa do preço do combustível, mentiu inúmeras vezes, fez apologia de armas colocando uma criança no ombro com um fuzil de brinquedo na mão, ameaçou as famílias dizendo que quem não se armar terá que atirar com balas de feijão quando invadirem sua casa. Não há o que salve esse governo. Ele não tem remédio.