sexta-feira, 2 de setembro de 2022
A fome e a desalma
Há exatos 30 anos, por pressão do economista e sanitarista Eduardo Kertesz, a Câmara dos Deputados instalou e concluiu a primeira e única (até agora) CPI da Fome. Encaminhado ao TCU, o relatório trouxe dados chocantes. As conclusões, entretanto, ficaram restritas aos que tinham algum interesse no tema. Ainda não existiam redes sociais. Era 1992.
No processo TC 000134/92-9, o então ministro Fernando Gonçalves, atestou que o relatório trouxe “à tona, com abundância de dados e depoimentos” a gravidade do problema da fome que então assolava o País. Graus variados de desnutrição atingiam 30% das crianças de zero a 5 anos, no Brasil. No Nordeste, o índice atingia 56% da primeira infância.
Hoje, quando se fala em fome, agravada nos últimos anos, nas ruas das pequenas e grandes cidades, há clareza de que houve apenas um curto intervalo em nossa história em que o flagelo foi substancialmente reduzido e os mais pobres tiveram acesso a comida. Inquestionável. Nos dois mandatos de Lula e no primeiro de Dilma Rousseff, o Brasil saiu do mapa da fome da ONU.
Isso é fato. Em abril de 2014, relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e do Programa Mundial de Alimentos (PMA) mostrou para o mundo que nos 10 anos anteriores (2004 a 2014), o Brasil reduziu pela metade a parcela da população que sofre com a fome.
O documento da ONU destacou que a taxa de desnutrição no Brasil caiu de 10,7% para menos de 5% desde 2003 (até 2014). A pobreza no país foi reduzida de 24,3% para 8,4% entre 2001 e 2012, enquanto a pobreza extrema também caiu de 14% para 3,5%. Tem mais: nos governos Lula e Dilma, o Brasil tornou-se líder do ranking de países em desenvolvimento com as políticas mais eficientes no combate à fome, segundo a ONG Action Aid.
A fome no Brasil de Bolsonaro afeta 15,5% da população. Em comparação a 2020, são 14 milhões a mais de pessoas sem ter o que comer.
Bolsonaro diz que não há milhões de famélicos no País porque não se interessa pelos pobres, miseráveis, invisíveis. Quem entende do assunto vê claramente retrocesso no Brasil: “Chegamos a um nível próximo ao de 1990”, diz o presidente do Conselho Federal de Nutricionistas, Élido Bonomo. “Assistimos a cenas horripilantes, como a ‘fila dos ossos’, algo inaceitável para um país que já foi referência no combate à fome”.
Exemplos não faltam. O menino Miguel, de 11 anos, ligou para o 190, em Belo Horizonte e pediu socorro: a família estava sem comer há três dias. Sim, casos de polícia. Semana passada, a juíza Mariana de Queiroz Gomes, de Novo Gama, determinou a soltura de Jonatas Edson Schafer, preso por roubar duas peças de carne em um supermercado de Novo Gama, em Goiás. Trata-se de caso nítido de furto famélico, escreveu a Juíza.
No debate da Band, o tema foi abordada de forma rasa. Citado entre frases pelos candidatos. Ciro indagou o Capitão a respeito. Bolsonaro não se deu ao trabalho de estender o assunto: “Talvez alguns passem fome”, disse, apressado. Alguns? Sao 33 milhões de brasileiros, Bolsonaro.
O foco do negacionista, obviamente, não é a fome, nem os brasileiros pobres. Sabemos bem. Já estamos nesse desgoverno há quase quatro anos. Seu miolo mira apenas, e unicamente, Lula, seu maior adversário, à frente na preferência dos eleitores. O sujeito tem prazer de chamar Lula de presidiário.
Esquece o Capitão Bolsonaro que também já foi preso? Nos anos 80, por atos considerados terroristas, indisciplina e desordem nos quartéis, onde servia.
Entre um presidiário e outro, no dia 2 de outubro, a escolha será fácil: fico com Lula.
KERTESZ – Eduardo Kertesz foi um dos mais aguerridos militantes em defesa da saúde pública. Um dos funcionários públicos mais dedicados e interessantes que conheci em Brasilia. Engenheiro, economista, sanitarista respeitado em todo o País, atuou no IPEA, na Secretaria de Planejamento da Presidência da República e foi presidente do INAN (Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição), em 1989. Em 1997, o INAN foi extinto. Eduardo morreu aos 59 anos, de câncer, em abril de 2000. Faz enorme falta.
Desalma vem do verbo desalmar. O mesmo que: desapieda, tornar-se perverso e desumano; desapiedar.
No processo TC 000134/92-9, o então ministro Fernando Gonçalves, atestou que o relatório trouxe “à tona, com abundância de dados e depoimentos” a gravidade do problema da fome que então assolava o País. Graus variados de desnutrição atingiam 30% das crianças de zero a 5 anos, no Brasil. No Nordeste, o índice atingia 56% da primeira infância.
Hoje, quando se fala em fome, agravada nos últimos anos, nas ruas das pequenas e grandes cidades, há clareza de que houve apenas um curto intervalo em nossa história em que o flagelo foi substancialmente reduzido e os mais pobres tiveram acesso a comida. Inquestionável. Nos dois mandatos de Lula e no primeiro de Dilma Rousseff, o Brasil saiu do mapa da fome da ONU.
Isso é fato. Em abril de 2014, relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e do Programa Mundial de Alimentos (PMA) mostrou para o mundo que nos 10 anos anteriores (2004 a 2014), o Brasil reduziu pela metade a parcela da população que sofre com a fome.
O documento da ONU destacou que a taxa de desnutrição no Brasil caiu de 10,7% para menos de 5% desde 2003 (até 2014). A pobreza no país foi reduzida de 24,3% para 8,4% entre 2001 e 2012, enquanto a pobreza extrema também caiu de 14% para 3,5%. Tem mais: nos governos Lula e Dilma, o Brasil tornou-se líder do ranking de países em desenvolvimento com as políticas mais eficientes no combate à fome, segundo a ONG Action Aid.
A fome no Brasil de Bolsonaro afeta 15,5% da população. Em comparação a 2020, são 14 milhões a mais de pessoas sem ter o que comer.
Bolsonaro diz que não há milhões de famélicos no País porque não se interessa pelos pobres, miseráveis, invisíveis. Quem entende do assunto vê claramente retrocesso no Brasil: “Chegamos a um nível próximo ao de 1990”, diz o presidente do Conselho Federal de Nutricionistas, Élido Bonomo. “Assistimos a cenas horripilantes, como a ‘fila dos ossos’, algo inaceitável para um país que já foi referência no combate à fome”.
Exemplos não faltam. O menino Miguel, de 11 anos, ligou para o 190, em Belo Horizonte e pediu socorro: a família estava sem comer há três dias. Sim, casos de polícia. Semana passada, a juíza Mariana de Queiroz Gomes, de Novo Gama, determinou a soltura de Jonatas Edson Schafer, preso por roubar duas peças de carne em um supermercado de Novo Gama, em Goiás. Trata-se de caso nítido de furto famélico, escreveu a Juíza.
No debate da Band, o tema foi abordada de forma rasa. Citado entre frases pelos candidatos. Ciro indagou o Capitão a respeito. Bolsonaro não se deu ao trabalho de estender o assunto: “Talvez alguns passem fome”, disse, apressado. Alguns? Sao 33 milhões de brasileiros, Bolsonaro.
O foco do negacionista, obviamente, não é a fome, nem os brasileiros pobres. Sabemos bem. Já estamos nesse desgoverno há quase quatro anos. Seu miolo mira apenas, e unicamente, Lula, seu maior adversário, à frente na preferência dos eleitores. O sujeito tem prazer de chamar Lula de presidiário.
Esquece o Capitão Bolsonaro que também já foi preso? Nos anos 80, por atos considerados terroristas, indisciplina e desordem nos quartéis, onde servia.
Entre um presidiário e outro, no dia 2 de outubro, a escolha será fácil: fico com Lula.
KERTESZ – Eduardo Kertesz foi um dos mais aguerridos militantes em defesa da saúde pública. Um dos funcionários públicos mais dedicados e interessantes que conheci em Brasilia. Engenheiro, economista, sanitarista respeitado em todo o País, atuou no IPEA, na Secretaria de Planejamento da Presidência da República e foi presidente do INAN (Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição), em 1989. Em 1997, o INAN foi extinto. Eduardo morreu aos 59 anos, de câncer, em abril de 2000. Faz enorme falta.
Desalma vem do verbo desalmar. O mesmo que: desapieda, tornar-se perverso e desumano; desapiedar.
Covid: o Nordeste é o que o Brasil poderia ter sido
Atenção à ciência e desprezo pelas recomendações de Bolsonaro. Essas são as duas principais razões elencadas por Sérgio Machado Rezende para o relativo – mas expressivo – sucesso do Nordeste em evitar mortes por covid durante os dois anos e meio de pandemia. A região tem o menor IDH e o segundo menor PIB per capita do país, mas contabilizou 40% óbitos a menos, na pandemia, que São Paulo – estado mais rico do país.
Rezende, professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), foi ministro de Ciência e Tecnologia do governo Lula, entre 2005 e 2010. Em março de 2020, um mês após o início da pandemia, foi chamado para coordenar, junto do cientista Miguel Nicolelis, o Comitê Científico do Combate ao Coronavírus (C4) do Consórcio Nordeste. Criado em 2019 após ataques de Bolsonaro aos governadores da região, o Consórcio reúne os nove estados em busca de integração política e desenvolvimento econômico.
Desde as primeiras semanas da crise sanitária que atingia o Brasil, o Nordeste agiu de maneira diametralmente oposta ao governo federal, explica Rezende, em entrevista ao Outra Saúde. O C4 formou nove subcomitês científicos para compreender a pandemia de vários pontos de vista: epidemiológico, virológico, de políticas públicas, de vacinação, entre outros. Foram lançados 25 boletins de recomendações para orientar os governadores – sempre utilizando argumentação científica para defender medidas de contenção ao vírus. No primeiro boletim, o comitê já indicava enfaticamente o isolamento social, ações de apoio material aos mais necessitados e monitoramento da situação epidemiológica.
Os boletins subsequentes recomendavam o uso de máscaras e distanciamento social, e incluíam pesquisas que mostravam como medicamentos como a hidroxicloroquina eram ineficazes para o tratamento. De fato, o extremo oposto do que o governo Bolsonaro propagava. E os governadores agiram de acordo, afirma Rezende, na medida do possível com os recursos disponíveis.
Um exemplo surpreendente é o Maranhão: tem a menor porcentagem de mortes por covid do país. São 155,3 por 100 mil – índice menor que países como a Suíça e a Alemanha. O estado fez o primeiro lockdown do país, obrigando o fechamento de todos os serviços não-essenciais. Investiu em testagem e na construção de hospitais, para fortalecer a rede – ao invés de optar por hospitais de campanha, temporários. Isso no estado com o menor PIB per capita do Brasil e onde 57,9% da população vive na pobreza, com menos de R$ 497 por mês.
Mas todos os estados do Nordeste têm um número proporcional de mortes menor que a média do país, que é de 325,4 por 100 mil habitantes. A média nordestina é de 230,8 por 100 mil. Os números, ainda assim, são altos e bastante acima da média mundial, mas se o Brasil tivesse seguido o exemplo da região, mais de 200 mil mortes poderiam ter sido evitadas. Entre os dez estados mais vacinados do país, cinco são nordestinos. Piauí, Ceará e Paraíba só perdem para São Paulo na adesão à campanha de imunização.
Há ainda outro fator bastante intrigante para explicar as vidas que foram poupadas nos estados do Nordeste: sua baixíssima adesão ao bolsonarismo. Rezende, autor da tabela acima, encontrou uma forte correlação entre a porcentagem de votos em Bolsonaro, em 2018, e o número de mortes em cada estado. De fato, a clareza visual espanta.
Rezende, professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), foi ministro de Ciência e Tecnologia do governo Lula, entre 2005 e 2010. Em março de 2020, um mês após o início da pandemia, foi chamado para coordenar, junto do cientista Miguel Nicolelis, o Comitê Científico do Combate ao Coronavírus (C4) do Consórcio Nordeste. Criado em 2019 após ataques de Bolsonaro aos governadores da região, o Consórcio reúne os nove estados em busca de integração política e desenvolvimento econômico.
Desde as primeiras semanas da crise sanitária que atingia o Brasil, o Nordeste agiu de maneira diametralmente oposta ao governo federal, explica Rezende, em entrevista ao Outra Saúde. O C4 formou nove subcomitês científicos para compreender a pandemia de vários pontos de vista: epidemiológico, virológico, de políticas públicas, de vacinação, entre outros. Foram lançados 25 boletins de recomendações para orientar os governadores – sempre utilizando argumentação científica para defender medidas de contenção ao vírus. No primeiro boletim, o comitê já indicava enfaticamente o isolamento social, ações de apoio material aos mais necessitados e monitoramento da situação epidemiológica.
Os boletins subsequentes recomendavam o uso de máscaras e distanciamento social, e incluíam pesquisas que mostravam como medicamentos como a hidroxicloroquina eram ineficazes para o tratamento. De fato, o extremo oposto do que o governo Bolsonaro propagava. E os governadores agiram de acordo, afirma Rezende, na medida do possível com os recursos disponíveis.
Um exemplo surpreendente é o Maranhão: tem a menor porcentagem de mortes por covid do país. São 155,3 por 100 mil – índice menor que países como a Suíça e a Alemanha. O estado fez o primeiro lockdown do país, obrigando o fechamento de todos os serviços não-essenciais. Investiu em testagem e na construção de hospitais, para fortalecer a rede – ao invés de optar por hospitais de campanha, temporários. Isso no estado com o menor PIB per capita do Brasil e onde 57,9% da população vive na pobreza, com menos de R$ 497 por mês.
Mas todos os estados do Nordeste têm um número proporcional de mortes menor que a média do país, que é de 325,4 por 100 mil habitantes. A média nordestina é de 230,8 por 100 mil. Os números, ainda assim, são altos e bastante acima da média mundial, mas se o Brasil tivesse seguido o exemplo da região, mais de 200 mil mortes poderiam ter sido evitadas. Entre os dez estados mais vacinados do país, cinco são nordestinos. Piauí, Ceará e Paraíba só perdem para São Paulo na adesão à campanha de imunização.
Há ainda outro fator bastante intrigante para explicar as vidas que foram poupadas nos estados do Nordeste: sua baixíssima adesão ao bolsonarismo. Rezende, autor da tabela acima, encontrou uma forte correlação entre a porcentagem de votos em Bolsonaro, em 2018, e o número de mortes em cada estado. De fato, a clareza visual espanta.
Nossa viagem sem destino
As eleições de outubro, vistas de agora, parecem um jogo de vida e morte para todos nós, mas no fundo não passam de uma pura luta pelo poder. Todos sabemos, ou deveríamos saber, que o poder político entre nós é reserva de grupos e interesses muito restritos e passa muito longe de quase toda a população. Essa luta, portanto, não é a luta de quase nenhum de nós, pois nada do que sonhamos ou desejamos está propriamente em jogo. Vamos às urnas, até por uma absurda obrigação legal, que não deveria existir numa sociedade civilizada e livre, sem uma verdadeira esperança de vencer, apenas com o propósito de perder o menos possível.
Faço parte de uma geração que sonhou muito alto com o Brasil, pois nascemos e nos tornamos adultos num tempo em que nosso país se desenvolvia rapidamente na economia, na cultura e nos esportes. Éramos um povo que começava a se afirmar e a cultivar a autoestima. Nossa ilusão foi logo interrompida. A primeira coisa que perdemos foi a liberdade, e a perdemos tão completamente que lá pelos idos dos anos 70 grande parte dos brasileiros chegou a perder a vontade de ser livre e apoiou sem constrangimentos o regime dos generais.
O regime militar, como quase todos os sistemas de governança autoritária, teve êxitos no seu início ao executar sem oposição reformas modernizadoras há muito necessárias. Terminou, no entanto, em fracasso e caiu sozinho, deixando como legado um país em crise e ameaçado de colapso, com inflação sem controle, baixo crescimento e próximo ao calote de sua divida com o mundo.
Ainda convalescendo dos efeitos da ditadura no caráter e nos sonhos de todos nós, nos reunimos para votar uma nova Constituição democrática. Ela foi escrita basicamente com os olhos no passado e foi generosa nas promessas, mas nela veio embutido um pacto social perverso, no qual os prêmios efetivos ficaram com as altas burocracias do Estado e alguns interesses organizados, restando às grandes maiorias apenas as belas proclamações, quase sempre irrealizáveis, com a notável exceção do Sistema Único de Saúde, um claro avanço civilizatório.
O pior defeito da Constituição foi ter cristalizado uma ordem política velha e desconectada das grandes mudanças sociais que vinham ocorrendo no país desde os anos 50. Instituições políticas são padrões que se estabelecem em resposta às necessidades de um determinado período histórico. De 1950 até 1980 a sociedade e a economia brasileira mudaram completamente e o sistema político existente não era capaz de lidar com a emergência de novos atores, de novas relações sociais e as grandes mudanças tecnológicas, mas mesmo assim o Constituinte de 1988 optou por não mudar nada no funcionamento das instituições políticas. Os políticos, como ostras, se agarravam aos troncos carcomidos da velha ordem para conservarem para sempre o seu poder. Esta é a ordem que ainda nos governa.
Muitos governos se sucederam, mas o país permaneceu basicamente estagnado, a pobreza e a desigualdade continuaram muito altas, o Estado tornou-se impotente para buscar o crescimento e para corrigir as desigualdades e a agenda política virou apenas um palco para conflitos sobre trivialidades, preconceitos e delírios ideológicos, nada de importante ou de construtivo. Mais do que um problema de homens, o problema brasileiro é uma questão das instituições. Sem que elas mudem, nada mudará de fato na vida das pessoas.
No horizonte de qualquer sociedade civilizada duas metas estão acima de qualquer coisa : a liberdade democrática e o progresso econômico para as grandes maiorias. Toda eleição deveria ser um debate sobre os caminhos para aqueles destinos. Não é o que estamos vendo.
A idade madura nos ensina que não podemos ter muita certeza sobre nada e que é preciso ter muita humildade diante das questões da história. No entanto, não tenho receio de dizer que estamos diante de uma das eleições mais vazias de nossa história e que no mês de outubro não estaremos escolhendo nada, apenas embarcando para uma viagem sem destino.
Faço parte de uma geração que sonhou muito alto com o Brasil, pois nascemos e nos tornamos adultos num tempo em que nosso país se desenvolvia rapidamente na economia, na cultura e nos esportes. Éramos um povo que começava a se afirmar e a cultivar a autoestima. Nossa ilusão foi logo interrompida. A primeira coisa que perdemos foi a liberdade, e a perdemos tão completamente que lá pelos idos dos anos 70 grande parte dos brasileiros chegou a perder a vontade de ser livre e apoiou sem constrangimentos o regime dos generais.
O regime militar, como quase todos os sistemas de governança autoritária, teve êxitos no seu início ao executar sem oposição reformas modernizadoras há muito necessárias. Terminou, no entanto, em fracasso e caiu sozinho, deixando como legado um país em crise e ameaçado de colapso, com inflação sem controle, baixo crescimento e próximo ao calote de sua divida com o mundo.
Ainda convalescendo dos efeitos da ditadura no caráter e nos sonhos de todos nós, nos reunimos para votar uma nova Constituição democrática. Ela foi escrita basicamente com os olhos no passado e foi generosa nas promessas, mas nela veio embutido um pacto social perverso, no qual os prêmios efetivos ficaram com as altas burocracias do Estado e alguns interesses organizados, restando às grandes maiorias apenas as belas proclamações, quase sempre irrealizáveis, com a notável exceção do Sistema Único de Saúde, um claro avanço civilizatório.
O pior defeito da Constituição foi ter cristalizado uma ordem política velha e desconectada das grandes mudanças sociais que vinham ocorrendo no país desde os anos 50. Instituições políticas são padrões que se estabelecem em resposta às necessidades de um determinado período histórico. De 1950 até 1980 a sociedade e a economia brasileira mudaram completamente e o sistema político existente não era capaz de lidar com a emergência de novos atores, de novas relações sociais e as grandes mudanças tecnológicas, mas mesmo assim o Constituinte de 1988 optou por não mudar nada no funcionamento das instituições políticas. Os políticos, como ostras, se agarravam aos troncos carcomidos da velha ordem para conservarem para sempre o seu poder. Esta é a ordem que ainda nos governa.
Muitos governos se sucederam, mas o país permaneceu basicamente estagnado, a pobreza e a desigualdade continuaram muito altas, o Estado tornou-se impotente para buscar o crescimento e para corrigir as desigualdades e a agenda política virou apenas um palco para conflitos sobre trivialidades, preconceitos e delírios ideológicos, nada de importante ou de construtivo. Mais do que um problema de homens, o problema brasileiro é uma questão das instituições. Sem que elas mudem, nada mudará de fato na vida das pessoas.
No horizonte de qualquer sociedade civilizada duas metas estão acima de qualquer coisa : a liberdade democrática e o progresso econômico para as grandes maiorias. Toda eleição deveria ser um debate sobre os caminhos para aqueles destinos. Não é o que estamos vendo.
A idade madura nos ensina que não podemos ter muita certeza sobre nada e que é preciso ter muita humildade diante das questões da história. No entanto, não tenho receio de dizer que estamos diante de uma das eleições mais vazias de nossa história e que no mês de outubro não estaremos escolhendo nada, apenas embarcando para uma viagem sem destino.
Uma campanha eleitoral para somente metade da população
O primeiro debate televisivo e as sabatinas dos presidenciáveis no Jornal Nacional na semana passada transmitiram a imagem de um Brasil que até pouco tempo atrás era a dominante na publicidade: uma sociedade que parece ser composta exclusivamente por brancos.
Entre os principais candidatos e candidatas à Presidência não há nenhum representante negro. E das extensas entrevistas individuais com os quatro que lideram a corrida e do debate de domingo ficaram completamente de fora temas que são existenciais para a maioria da sociedade brasileira: o racismo e suas consequências para o país.
Cerca de 56% dos brasileiros se autodeclaram pretos ou pardos. Eles convivem com o racismo cotidiano, que continua sendo a raiz do desfavorecimento social da maioria da sociedade. Três quartos de todas as vítimas de violência são negras. Quase tão alta é a taxa de evasão escolar entre os jovens negros. Ou a parcela de negros que passam fome. O desemprego também é maior entre eles. E sobretudo os negros estão à mercê da violência policial, de quadrilhas de drogas, criminosos e milícias.
Nos últimos anos, as consequências do racismo e da escravidão vêm sendo intensamente discutidas pela sociedade civil. Também no Brasil houve atos de violência motivados pelo racismo como o sofrido por George Floyd, nos EUA. E Marielle Franco foi assassinada, uma vereadora que sempre se posicionou fortemente contra o racismo.
É verdade que a proporção de candidatos negros aumentou nos últimos anos. Isso vale especialmente para os níveis federais mais baixos: entre os candidatos a deputado estadual, a parcela de negros é proporcional à da população brasileira como um todo. Entre os candidatos a deputado federal, já são menos. E entre os que concorrem aos cargos de senador ou governador quase não há negros.
À mais alta esfera da política, no entanto, o debate sobre o racismo na sociedade civil parece ainda não ter chegado. A política parece ser feita em uma espécie de vácuo, que pouco tem a ver com a realidade brasileira.
Os negros são os mais afetados pelas falhas do atual governo nas políticas de saúde e educação. Sob Bolsonaro, também estagnou a política de inclusão das duas últimas décadas. No gabinete do presidente, nunca houve um ministro negro. À frente da Fundação Palmares, Bolsonaro colocou um negro que afirmou não haver racismo no Brasil.
É ainda mais espantoso que nenhum dos candidatos da oposição aproveite a oportunidade de conquistar esse potencial eleitorado.
Não apenas Bolsonaro, mas também Lula, Ciro e Simone Tebet, ou seja, os candidatos mais promissores à Presidência, estão rodeados de assessores e gerentes de campanha majoritariamente brancos. E eles parecem não se dar conta de que ignoram sistematicamente metade da população.
Raramente a política brasileira pareceu tão envolvida em sua própria bolha como agora.
Entre os principais candidatos e candidatas à Presidência não há nenhum representante negro. E das extensas entrevistas individuais com os quatro que lideram a corrida e do debate de domingo ficaram completamente de fora temas que são existenciais para a maioria da sociedade brasileira: o racismo e suas consequências para o país.
Cerca de 56% dos brasileiros se autodeclaram pretos ou pardos. Eles convivem com o racismo cotidiano, que continua sendo a raiz do desfavorecimento social da maioria da sociedade. Três quartos de todas as vítimas de violência são negras. Quase tão alta é a taxa de evasão escolar entre os jovens negros. Ou a parcela de negros que passam fome. O desemprego também é maior entre eles. E sobretudo os negros estão à mercê da violência policial, de quadrilhas de drogas, criminosos e milícias.
Nos últimos anos, as consequências do racismo e da escravidão vêm sendo intensamente discutidas pela sociedade civil. Também no Brasil houve atos de violência motivados pelo racismo como o sofrido por George Floyd, nos EUA. E Marielle Franco foi assassinada, uma vereadora que sempre se posicionou fortemente contra o racismo.
É verdade que a proporção de candidatos negros aumentou nos últimos anos. Isso vale especialmente para os níveis federais mais baixos: entre os candidatos a deputado estadual, a parcela de negros é proporcional à da população brasileira como um todo. Entre os candidatos a deputado federal, já são menos. E entre os que concorrem aos cargos de senador ou governador quase não há negros.
À mais alta esfera da política, no entanto, o debate sobre o racismo na sociedade civil parece ainda não ter chegado. A política parece ser feita em uma espécie de vácuo, que pouco tem a ver com a realidade brasileira.
Os negros são os mais afetados pelas falhas do atual governo nas políticas de saúde e educação. Sob Bolsonaro, também estagnou a política de inclusão das duas últimas décadas. No gabinete do presidente, nunca houve um ministro negro. À frente da Fundação Palmares, Bolsonaro colocou um negro que afirmou não haver racismo no Brasil.
É ainda mais espantoso que nenhum dos candidatos da oposição aproveite a oportunidade de conquistar esse potencial eleitorado.
Não apenas Bolsonaro, mas também Lula, Ciro e Simone Tebet, ou seja, os candidatos mais promissores à Presidência, estão rodeados de assessores e gerentes de campanha majoritariamente brancos. E eles parecem não se dar conta de que ignoram sistematicamente metade da população.
Raramente a política brasileira pareceu tão envolvida em sua própria bolha como agora.
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