quarta-feira, 5 de junho de 2024

Pensamento do Dia


 

A sustentabilidade já era

As condições atuais são tão desfavoráveis aos humanos que a simples postura em defesa da sustentabilidade não tem mais o efeito que se imaginava há 30 ou 40 anos atrás. Não é mais suficiente. Por isso, Francisco Nilson Moreira está coberto de razão quando diz em seu Ted X ESMPU: “A sustentabilidade já era. Hoje temos que ser regenerativos”. E o Rio Grande do Sul está aí para provar.

Por milênios, os homo sapiens têm habitado a terra destruindo-a. Alguns, os menos informados, imaginam que tudo começou com a revolução industrial nas dobras dos séculos XVIII/XIX, como também imaginam que o movimento ambientalista começou com a Conferência de 1972 em Estocolmo (Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente Humano). Antes desta conferência, Rachel Carson já havia publicado Primavera Silenciosa, com enorme impacto sobre o nascente movimento ambientalista, e o mundo já conhecia a criação de áreas protegidas, o Brasil inclusive. Antes da revolução industrial, os Sapiens já haviam dizimado os Neandertais, enfraquecidos pelos fortes efeitos da era glacial na Eurásia, como também os megamamíferos, os mamutes, entre 50 e 10 mil anos atrás. Incluindo o Brasil, onde foram extintos os tigres dentes de sabre, as preguiças gigantes e os toxodontes, entre outros.

A revolução industrial com a adoção do modelo econômico baseado na reprodução ampliada e nos combustíveis fósseis acelerou exponencialmente o processo já existente, a destruição da fauna selvagem. E a expandiu à biodiversidade. Segundo David Attenborough, mais da metade do número de indivíduos dos vertebrados, sobretudo mamíferos, já foi extinta. E a outra o será em breve. A sociedade humana destruiu também a maior parte das florestas, incluindo, mais recentemente, as tropicais. Inspirada na grande ideologia do crescimento, aquela que perpassa regimes capitalistas e socialistas, a sociedade humana consome cada vez mais recursos naturais e emite gases de efeito estufa (GEE) para a atmosfera.


A invenção do desenvolvimento sustentável, nos anos 1980/1990, implicou múltiplos esforços de mudança, mas, por enquanto, inócuos. Os GEEs continuam a se acumular provocando o aquecimento global, e com ele, os seus efeitos nocivos largamente conhecidos.

Já estamos adentrando a meta da COP de 2015, em Paris: 1,5º C acima da temperatura média global de antes da revolução industrial. Se o mundo alcançar 3oC ingressaremos em um patamar catastrófico. E se formos a 5oC será um patamar desconhecido, ou seja, que não sabemos o que ocorrerá com o clima e seus eventos críticos, incluindo neste caso ameaças existenciais à humanidade.

As concentrações desses gases na atmosfera são frequentemente medidas em partes por milhão (ppm) ou partes por bilhão (ppb). Segundo os relatórios do IPCC, em 1990, a atmosfera continha cerca de 354 ppm de CO2; em 2000, cerca de 369 ppm; em 2010 - 389 ppm. Em 2024, cerca de 415 ppm. No caso do metano, a variação foi de 1.700 partes por bilhão (ppb), em 1990, para cerca de 1.870, atualmente. E, no caso do óxido nitroso (N2O), variou de cerca de 310 ppb para cerca de 333, em 2024. Ou seja, todas as medidas tomadas no mundo, sob o signo de criar um desenvolvimento sustentável, não diminuíram os gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera. Eles continuam aumentando, os eventos críticos climáticos tornam-se mais frequentes e intensos.

É de conhecimento público, com exceção dos negacionistas, que são as atividades humanas que produzem poluição, destroem a biodiversidade e provocam as mudanças climáticas (sugiro esgotamento de recursos não-renováveis). No entanto, estamos adentrando um período em que este fenômeno será superado: crescimento constante de eventos críticos climáticos, mais frequentes e mais intensos, que se farão independentemente das atividades econômicas dos humanos.

Como as mudanças climáticas tendem a ganhar vida própria, ou seja, independente das atividades humanas? Basicamente pelo círculo vicioso que está se formando entre o degelo dos Polos, que reduz o chamado efeito albedo (medida da proporção da radiação solar que é refletida de volta à atmosfera e ao espaço), a exposição do permafrost, que emite GEEs e o aumento da temperatura dos oceanos, somado à perda da vegetação e da biodiversidade.

As geleiras do mundo inteiro, particularmente dos polos, possuem a capacidade de refletir a radiação solar, evitando que a terra absorva o seu calor (efeito albedo). Na medida em que a terra se aquece, e ela tem se aquecido desde o século XIX com a industrialização, porém mais acentuadamente nas últimas três décadas, a terra perde superfície de gelo e, assim, reduz o efeito albedo. Com isso, o planeta tem que absorver uma maior quantidade de calor. A consequência da perda de superfície de gelo reflete-se, também, em outro aspecto: o ressurgimento do permafrost à luz do sol. Esta é a terra que está sob as geleiras, às vezes há milhões de anos, repleta de micróbios e germes ancestrais, mas sobretudo de CO2 e metano, dois dos mais poderosos gases de efeito estufa. Com isso, aumenta o acúmulo de GEE na atmosfera e a terra se aquece ainda mais. O que produz, por sua vez, mais degelo. Ao que se deveria acrescentar a redução da capacidade dos principais sumidouros de CO2: oceanos e cobertura vegetal. Os oceanos porque, com o aquecimento, perdem vida, sobretudo algas, e absorvem menos CO2. A cobertura vegetal, como no caso das florestas já foram em grande parte destruídas, e continuam a sê-las.

Em resumo: mesmo que os humanos cessassem hoje de emitir gases de efeito estufa, as mudanças climáticas, com seus eventos críticos continuariam, e de forma mais frequente e intensa. O aquecimento continuaria a se elevar, e não apenas, como diz Tomas Tarquínio, em belíssimo artigo aqui publicado, resultado dos gases já emitidos nas últimas décadas.

Neste sentido, Richards, Lupton e Allwood em artigo publicado na revista Climatic Change (2021), chamam a atenção, para o fato de que hoje “Há uma preocupação crescente de que as alterações climáticas representem um risco existencial para a humanidade”. Previsões similares, e mesmo mais graves, têm sido feitas constantemente por outros estudiosos das mudanças climáticas. O risco existencial se faz também presente junto a animais não-humanos.

Muitos cientistas evitam falar em desastre ou colapso. Em parte, pelas idiossincrasias próprias da cultura científica, sempre atrelada aos cuidados de objetividade, verificação e adequação à empiria, ou seja, aos fatos e experimentos. Um dos intelectuais mais brilhantes neste campo foi sem dúvida Jared Diamond, com seu famoso, e muito debatido internacionalmente, livro – Colapso. Como as sociedades escolhem o fracasso ou sucesso. Livro cujas partes mais interessantes rezam sobre as sociedades antigas: os Maias da América Central, os Rapa Nui da ilha de Pascoa, os Polinésios das Ilhas de Pitcairn e d’Henderson, os Anasazis do Novo México no sudoeste dos Estados Unidos e os Vikings da Groelândia.

Para Diamond, cinco são os fatores centrais na destruição dessas civilizações pretéritas: (i) destruição dos recursos naturais, (ii) mudanças climáticas, (iii) conflitos internos e externos, (iv) dependência de parceiros comerciais e (v) respostas inadequadas aos problemas ambientais. Fatores que em geral se retroalimentam.

Os cinco fatores causais do colapso, citados por Diamond, estão presentes de forma relevante em todos os casos, e igualmente presentes hoje, no mundo: (i) mais da metade da vegetação de florestas tropicais já foram destruídas e mais de 60% dos indivíduos da fauna selvagem, particularmente mamíferos; (ii) o aquecimento é um fato inconteste assim como o aumento da frequência e da intensidade dos eventos críticos; (iii) a polarização e, sobretudo, o negacionismo são os exemplos mais visíveis dos conflitos de risco; (iv) o mundo hoje é economicamente globalizado, e o que ocorre em um determinado país pode desorganizar cadeias produtivas globais como ocorreu com a invasão da Rússia na Ucrânia, e, finalmente, (v) as respostas mais evidentes para vencer o risco climático são largamente insuficientes. Os GEE se acumulam na atmosfera. A cada ano o mundo bate recorde de aquecimento. Tudo se conjuga para provocar a sexta extinção da vida no planeta, e com ela, os sapiens correm o risco de irem juntos.

Ora, no caminhar atual da carruagem, ou seja, se não forem tomadas medidas drásticas de mudanças nos defrontaremos, antes de 2050, com perda de vidas humanas aos milhões, senão bilhões. Enquanto isso, muitos políticos, governos e empresas tendem a escamotear o problema ou simplesmente negá-lo. Em plena tragédia climática do Rio Grande do Sul, o Congresso Nacional continua a aprovar medidas para reduzir as restrições à destruição da natureza no Brasil.

E a sociedade, como um todo, resiste à adoção de medidas radicais que, no entanto, com o aumento da frequência dos eventos críticos terão de ser tomadas, para não tornar a terra um lugar inabitável aos humanos. Se não tomarmos medidas radicais de mudança de rumo, como propugna Edgar Morin9, o Rio Grande do Sul será o Brasil de amanhã. E como diz Przeworski, “nossos filhos e netos morrerão ou queimados ou afogados”.


Sem medidas radicais de mudança, o ser matricida, que somos nós, será expulso da vida. Para regozijo de todos os seres vivos da terra. Por isso, sustentabilidade já era. Adentramos a fase de atividades regenerativas a começar da própria agricultura: é preciso reduzir a monocultura e o uso excessivo e mortal de pesticidas, estimular a agricultura orgânica e a agroecologia. É preciso recuperar a biodiversidade, ampliando áreas protegidas; parar de emitir gases de efeito estufa, com novas tecnologias e estímulo à economia de proximidade e à economia circular; reduzir o consumo dos ricos; findar com a obsolescência programada; reduzir as embalagens e adotar material reciclável; acelerar a transição energética, adotar um novo e radical sistema tributário, e mudar nossos hábitos e valores.

Não temos que pensar que “não tem mais jeito”, nem julgar que medidas paliativas resolverão o problema. Ainda temos tempo.

Porém para sobreviver, os humanos devem produzir uma metamorfose, como dizem Ulrich Becker e Edgar Morin, uma revolução não basta.
Elimar Pinheiro do Nascimento

O nacionalismo ameaça a ordem mundial

O próximo presidente dos Estados Unidos declara que seu país não cumprirá mais o compromisso assumido sob o tratado da Otan, de sair em defesa de um membro da organização. Os europeus não conseguem encontrar um substituto confiável. Temendo a ameaça de uma Rússia revanchista, alguns passam a ser leais à Rússia e à China. A Europa se dissolve.

Isso é plausível? Espero que não. Mesmo assim, por trás do pesadelo está a realidade. Estamos entrando em um período de ressurgimento do nacionalismo, da xenofobia e do autoritarismo.

Como Oscar Wilde poderia ter observado: “Eleger Donald Trump presidente uma vez pode ser considerado um infortúnio, mas elegê-lo duas vezes parece descuido”. Sua volta indicaria algo muito perturbador sobre o estado da superpotência ocidental.

Robert Kagan, da Brookings Institution, observa em um podcast que fez comigo que a proximidade de Trump com o poder se deve a forças antiliberais poderosas. As implicações dessas atitudes para a democracia dos EUA são preocupantes. Mas essa preocupação não está limitada ao âmbito interno.


O “América em primeiro lugar” de Trump foi um slogan usado pelo aviador Charles Lindbergh em oposição ao apoio dos EUA ao Reino Unido na Segunda Guerra Mundial. Essa oposição só cessou depois que o ataque do Japão a Pearl Harbor em dezembro de 1941 forçou os EUA a entrarem na guerra.

Putin é inimigo da ordem europeia pacífica. A decisão de Pequim de apoiá-lo foi um divisor de águas. O Ocidente precisará se manter unido para se defender da competição da China. Mas Trump e seus imitadores na Europa tornariam tal parceria quase impossível

Lindbergh era um isolacionista. Na medida em que pode ser definido, Trump é um unilateralista não confiável. Mas, no contexto da guerra da Rússia na Ucrânia, esta pode não ser uma diferença crucial. Ele ajudaria, ou ele veria isso como “uma disputa num país distante, entre pessoas sobre as quais não sabemos nada”, nas notórias palavras de Neville Chamberlain sobre a Tchecoslováquia em 1938?

Por mais de um século a segurança da Europa dependeu da presença dos EUA. Infelizmente, depois da Primeira Guerra Mundial, o Senado repudiou a Liga das Nações e assim os EUA se retiraram. Isso levou ao ressurgimento da Alemanha como potência militar dominante no continente e assim à Segunda Guerra Mundial. Felizmente, os EUA continuaram empenhados na era do pós-guerra. Após o colapso da União Soviética em 1991, eles podem ter acreditado, de modo plausível, que deveriam se retirar novamente.

Mas agora, depois da invasão não provocada da Ucrânia pela Rússia, esse não pode ser o caso. A China, também cada vez mais vista pelos EUA como uma ameaça, está fornecendo um forte apoio moral e prático à Rússia, incluindo bens de dupla utilização valiosos para o prosseguimento de sua guerra. Mais uma vez isso justifica o compromisso. O que Trump faria? Esta poderá ser em breve uma questão relevante.

O colapso da ordem de segurança da Europa liderada pelos EUA teria repercussões globais. A derrota da Ucrânia certamente encorajaria a China em relação a Taiwan. Mas, além disso, as dúvidas sobre as garantias de segurança na Europa teriam implicações à credibilidade dessas garantias para o Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia. Por toda a Ásia, países tentariam se aproximar da China.

Infelizmente, a União Europeia também está ameaçada por nacionalistas, xenófobos e autoritários internos. Os partidos com essas atitudes deverão ampliar substancialmente sua presença nas eleições parlamentares europeias. Com o tempo, espera-se que mais deles chegarão ao poder: Marine Le Pen poderá até mesmo ser o próximo presidente da França. Quando se pensa nas dificuldades criadas apenas pelo putinismo de Viktor Orbán, as perspectivas são sombrias.

O nacionalismo também está refletido no afastamento do comércio liberal, que vem ganhando força no mundo todo. Trump teve um papel de liderança na legitimação do protecionismo durante o seu mandato. Biden fez o mesmo. A atual suspeita em relação ao comércio tem muitas causas: o aumento da competição da China na produção industrial; as interrupções nas cadeias de abastecimento após a pandemia de covid-19; a competição estratégica; a crença crescente na política industrial; e o repúdio à própria noção de multilateralismo, com a notável inclusão da Organização Mundial do Comércio (OMC).

O governo Biden desenvolveu uma agenda relativamente sofisticada em torno da ideia de “reduzir os riscos” no comércio. Mas a ação está ficando mais brutal. Assim, os EUA impuseram tarifas de 100% sobre as importações de veículos elétricos da China, por uma mistura de motivações de segurança e política industrial. Em resposta, Trump disse que “eles também têm que fazer isso em outros veículos e precisam fazer isso com muitos outros produtos porque a China está comendo nosso almoço neste momento”. É altamente provável que, no poder, ele adote medidas agressivas contra as importações não só da China, mas de seus aliados.

A reviravolta no comércio já é profunda. Ao longo do período do pós-guerra, os EUA, influenciados pelas lembranças da década de 30 e os objetivos estratégicos do pós-guerra, promoveram o multilateralismo e as economias de mercado liberais. Há agora um entendimento cada vez mais bipartidário de que isso foi um erro grave. Embora o governo Biden deseje permanecer relativamente próximo de seus aliados, sua agenda, também, é de certa forma a “América em primeiro lugar”. Mas Trump é muito mais descaradamente nacionalista do que Biden.

Putin é um inimigo inequívoco de uma ordem europeia pacífica. A decisão da China de apoiá-lo foi, para mim, um divisor de águas. Mas quanto mais o mundo ocidental quiser se defender da competição da China, mais ele também precisará para se manter unido. O nacionalismo de Trump ou de seus imitadores na Europa tornaria tal cooperação quase impossível.

Mesmo na nossa era da competição estratégica, a cooperação com a China continua sendo essencial, especialmente em relação ao clima. O Ocidente também precisa responder mais generosamente às preocupações dos países em desenvolvimento e emergentes. Mas, acima de tudo, ele precisa sobreviver como uma comunidade de democracias liberais. Esta é uma necessidade moral e prática. Se o nacionalismo autoritário destruir isso, o Ocidente terá perdido a luta.

Em 1939, o poeta WH Auden escreveu sobre o que ele considerou uma “década má e desonesta”. Como parecerá a nossa em 2029? 

Vocês vão se arrepender disso

Se destruírem a Amazônia, o que será do mundo? O pensamento indígena me interessa há muito tempo. Cresci no Norte do Canadá. Então, quando diziam que os povos nativos haviam desaparecido, eu sabia que não era verdade. Os indígenas tinham mais poder quando os ingleses queriam se aliar a eles contra os franceses e vice-versa. Após o declínio do comércio de peles, fornecidas pelos nativos, colonos passaram a ser incentivados a invadir terras indígenas, impor suas leis e até matar búfalos para que os nativos não tivessem o que comer. Toda essa história está sendo desenterrada. Os indígenas podem nos ensinar como impedir que nossas utopias igualitárias se tornem ditaduras. Várias sociedades indígenas têm arranjos sociais igualitários em que as habilidades individuais também são premiadas.

Margaret Atwood

Palavras sobreviventes

Não há fita métrica que possa medir as perdas decorrentes de uma tragédia como a que ocorreu no Rio Grande Do Sul. A dor e o sofrimento igualam todas as catástrofes e expõem a fragilidade humana, de forma mais contundente, quando na identificação de suas causas, estão o descaso, o descuido, a ação predatória do ser humano.

A Natureza vive “eras” que, ao longo de milhares de anos, se transformam a partir mudanças climáticas, geológicas, independente da perturbação de fatores antrópicos. Porém, quando a ação predatória do homem corrompe o ritmo das mudanças estruturais, a resposta cobra o preço devastador da destruição.

O momento atual afeta severamente o clima e ameaça a integridade do Planeta. Os fatos vêm confirmando o que a ciência já alertou: o fenômeno da emergência climática em decorrência do aquecimento global.

Nascemos para ser viventes e não meros sobreviventes à própria audácia de desafiar os limites biofísicos da natureza. A cada tragédia, restam vítimas reais e potenciais. Enfermidades no corpo, marcas inapagáveis na alma e perdas com que passamos a conviver.

De outra parte, existe um tipo de morte e sonho que a sutil percepção de Ruy Castro mencionou, a do livro (coluna Palavras Submersas, Folha, edição de 22/05/24): “Se cada exemplar de um livro pode ser insubstituível, pelo que representou na vida de uma pessoa, imagine essa morte em massa de páginas talvez ainda não lidas. É duro constatar que o objeto em que se assentou o conhecimento humano nos últimos mil anos é tão frágil”.

Por coincidência, estava concluindo a leitura de FACA – Reflexões sobre um atentado de autoria de Salman Rushdie (Ed. Companhia da Letras. São Paulo, 2024, abril) nascido na Índia, Bombaim (1947), historiador, com formação no King´s College, Cambridge.

Em 1981, já era um autor consagrado ao receber o Prêmio Booker com o livro Os Filhos da Meia-Noite, ao qual se juntariam duas dezenas obras o que lhe valeria a classificação de 13º (2008) colocado pelo The Times entre os 50 maiores escritores britânicos e um processo movido por Indira Gandhi que se sentiu atacada pelo escritor.

De fato, a valiosa obra de Rushdie lhe garantiu uma numerosa premiação. Porém, a fama e a projeção internacional do autor obtiveram enorme dimensão histórica em razão da sanguinária intolerância do líder iraniano, aiatolá Ruhollah Khomeini que decretou (fatwa, em 14 fevereiro de 1989) sua execução sob a acusação de haver cometido o crime de abandono da fé islâmica, ao publicar o livro Versos Satânicos, cujo longo enredo revela os dilemas do imigrante entre desenraizamento e integração, no caso, à sociedade britânica. Segundo o autor “um simples romance antigo e não uma espécie de batata quente teológica”.

A partir de então, Salman passou a viver escondido e sob a proteção do serviço secreto inglês. É possível afirmar que o autor foi um dos cidadãos mais perseguidos do mundo pelo imperdoável delito que afronta as tiranias: a liberdade de expressão, nela contida a tolerância religiosa, pilares do regime democrático.

Os ditadores, tiranos, déspotas têm sede de sangue e detêm um arsenal de extermínio cruelmente utilizados na eliminação dos “inimigos” que defendem a liberdade da palavra, um crime imprescritível.

Decorridos 33 anos do fatwa, a tentativa de executar a cruenta sentença ocorreu dia 12 de agosto de 2022. Ao subir no palco do anfiteatro, do Instituto Chautauqua, condado do Estado de Nova York, quando daria uma palestra sobre a criação de espaços seguros nos EUA para escritores de outros lugares do mundo, Salman Rushdie sofreu um brutal atentado, assim descrito pela vítima: “Ainda vejo o momento em câmara lenta. Acompanho com os olhos o homem que corre, salta da plateia e avança até mim […] ergo a mão esquerda para me defender. Ele crava nela a faca. Depois de vários golpes, em meu pescoço, peito, olhos, em tudo. Sinto as pernas cederem e caio”.

A cena é de uma brutal ferocidade. Com o sugestivo nome de Hadi Matar, o fanático desferiu, em 27 segundos, mais de dez facadas, na vítima agonizante. A partir de então, exangue, Salman que não professa qualquer religião, ateu convicto, se deparou com uma luta de gigantes, o ano da morte e o anjo da vida, títulos que deu às duas partes em que dividiu o magnífico livro A Faca – Reflexões sobre um atentado. Sem perder o refinado senso de humor, mesmo em momentos críticos, afirmou que, embora não acreditasse em Deus, sua cura foi milagrosa.

Somente uma brilhante vocação literária, transformaria uma faca, dores severas, a beira do desconhecido, cicatrizes e a mutilação (perda do olho esquerdo) na ampliação do autoconhecimento, no significado terapêutico do tempo, na luz da ciência médica, na força do acolhimento solidário da amizade e, sobretudo, no amor desmedido da poeta, romancista, artista, sua mulher, Rachel Eliza Griffiths (1978).

Escrever o livro, “o desfecho”, foi a cura. O anjo da vida venceu, mas as únicas vitoriosas são as palavras sobreviventes aos impérios. Para o autor, a grande lição é tomar a liberdade de expressão como um fato consumado. Leitura emocionante!

Gustavo Krause