Não há fita métrica que possa medir as perdas decorrentes de uma tragédia como a que ocorreu no Rio Grande Do Sul. A dor e o sofrimento igualam todas as catástrofes e expõem a fragilidade humana, de forma mais contundente, quando na identificação de suas causas, estão o descaso, o descuido, a ação predatória do ser humano.
A Natureza vive “eras” que, ao longo de milhares de anos, se transformam a partir mudanças climáticas, geológicas, independente da perturbação de fatores antrópicos. Porém, quando a ação predatória do homem corrompe o ritmo das mudanças estruturais, a resposta cobra o preço devastador da destruição.
O momento atual afeta severamente o clima e ameaça a integridade do Planeta. Os fatos vêm confirmando o que a ciência já alertou: o fenômeno da emergência climática em decorrência do aquecimento global.
Nascemos para ser viventes e não meros sobreviventes à própria audácia de desafiar os limites biofísicos da natureza. A cada tragédia, restam vítimas reais e potenciais. Enfermidades no corpo, marcas inapagáveis na alma e perdas com que passamos a conviver.
De outra parte, existe um tipo de morte e sonho que a sutil percepção de Ruy Castro mencionou, a do livro (coluna Palavras Submersas, Folha, edição de 22/05/24): “Se cada exemplar de um livro pode ser insubstituível, pelo que representou na vida de uma pessoa, imagine essa morte em massa de páginas talvez ainda não lidas. É duro constatar que o objeto em que se assentou o conhecimento humano nos últimos mil anos é tão frágil”.
Por coincidência, estava concluindo a leitura de FACA – Reflexões sobre um atentado de autoria de Salman Rushdie (Ed. Companhia da Letras. São Paulo, 2024, abril) nascido na Índia, Bombaim (1947), historiador, com formação no King´s College, Cambridge.
Em 1981, já era um autor consagrado ao receber o Prêmio Booker com o livro Os Filhos da Meia-Noite, ao qual se juntariam duas dezenas obras o que lhe valeria a classificação de 13º (2008) colocado pelo The Times entre os 50 maiores escritores britânicos e um processo movido por Indira Gandhi que se sentiu atacada pelo escritor.
De fato, a valiosa obra de Rushdie lhe garantiu uma numerosa premiação. Porém, a fama e a projeção internacional do autor obtiveram enorme dimensão histórica em razão da sanguinária intolerância do líder iraniano, aiatolá Ruhollah Khomeini que decretou (fatwa, em 14 fevereiro de 1989) sua execução sob a acusação de haver cometido o crime de abandono da fé islâmica, ao publicar o livro Versos Satânicos, cujo longo enredo revela os dilemas do imigrante entre desenraizamento e integração, no caso, à sociedade britânica. Segundo o autor “um simples romance antigo e não uma espécie de batata quente teológica”.
A partir de então, Salman passou a viver escondido e sob a proteção do serviço secreto inglês. É possível afirmar que o autor foi um dos cidadãos mais perseguidos do mundo pelo imperdoável delito que afronta as tiranias: a liberdade de expressão, nela contida a tolerância religiosa, pilares do regime democrático.
Os ditadores, tiranos, déspotas têm sede de sangue e detêm um arsenal de extermínio cruelmente utilizados na eliminação dos “inimigos” que defendem a liberdade da palavra, um crime imprescritível.
Decorridos 33 anos do fatwa, a tentativa de executar a cruenta sentença ocorreu dia 12 de agosto de 2022. Ao subir no palco do anfiteatro, do Instituto Chautauqua, condado do Estado de Nova York, quando daria uma palestra sobre a criação de espaços seguros nos EUA para escritores de outros lugares do mundo, Salman Rushdie sofreu um brutal atentado, assim descrito pela vítima: “Ainda vejo o momento em câmara lenta. Acompanho com os olhos o homem que corre, salta da plateia e avança até mim […] ergo a mão esquerda para me defender. Ele crava nela a faca. Depois de vários golpes, em meu pescoço, peito, olhos, em tudo. Sinto as pernas cederem e caio”.
A cena é de uma brutal ferocidade. Com o sugestivo nome de Hadi Matar, o fanático desferiu, em 27 segundos, mais de dez facadas, na vítima agonizante. A partir de então, exangue, Salman que não professa qualquer religião, ateu convicto, se deparou com uma luta de gigantes, o ano da morte e o anjo da vida, títulos que deu às duas partes em que dividiu o magnífico livro A Faca – Reflexões sobre um atentado. Sem perder o refinado senso de humor, mesmo em momentos críticos, afirmou que, embora não acreditasse em Deus, sua cura foi milagrosa.
Somente uma brilhante vocação literária, transformaria uma faca, dores severas, a beira do desconhecido, cicatrizes e a mutilação (perda do olho esquerdo) na ampliação do autoconhecimento, no significado terapêutico do tempo, na luz da ciência médica, na força do acolhimento solidário da amizade e, sobretudo, no amor desmedido da poeta, romancista, artista, sua mulher, Rachel Eliza Griffiths (1978).
Escrever o livro, “o desfecho”, foi a cura. O anjo da vida venceu, mas as únicas vitoriosas são as palavras sobreviventes aos impérios. Para o autor, a grande lição é tomar a liberdade de expressão como um fato consumado. Leitura emocionante!
Nenhum comentário:
Postar um comentário