sexta-feira, 9 de outubro de 2020
Políticos e seus currículos de araque
Kassio Marques, escalado por Jair Bolsonaro para o STF a fim de votar com imparcialidade a favor de sua família, gabou-se em seu currículo de uma pós-graduação na Universidade de La Coruña, na Espanha. Faltou combinar com a universidade. Consultada, ela informou que Marques fez apenas um curso de quatro dias sem relação com qualquer pós, e, mesmo assim, como ouvinte. Para Marques, o encarregado de compor seu currículo "errou" ao traduzir o quesito. Seria mais honesto se dissesse "Desculpem, não colou".
É um "erro" frequente na biografia dos homens de Bolsonaro. Vide seus notáveis indicados para o MEC, Ricardo Vélez Rodrigues, Abraham Weintraub e Carlos Alberto Decotelli. Todos tinham em seus currículos cursos fictícios no exterior, plágios descarados ou autoria de livros alheios. Belo exemplo para os estudantes.
É um "erro" frequente na biografia dos homens de Bolsonaro. Vide seus notáveis indicados para o MEC, Ricardo Vélez Rodrigues, Abraham Weintraub e Carlos Alberto Decotelli. Todos tinham em seus currículos cursos fictícios no exterior, plágios descarados ou autoria de livros alheios. Belo exemplo para os estudantes.
Ricardo Salles, destruidor do Meio Ambiente, disse-se aluno de mestrado em Yale, embora nunca tenha sido sequer matriculado. E Damares Alves, sinistra ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, intitulou-se "mestra em educação e em direito constitucional". Não por uma universidade, mas por leituras da Bíblia. "Mestre é quem se dedica ao ensino bíblico", decretou, do alto de sua goiabeira ardente.
Os espertos vêm de longe. A primeira a ter sua erudição desmentida foi Dilma Rousseff, pré-candidata à Presidência, em 2009. Seu currículo Lattes incluía imaginários mestrado e doutorado em ciências econômicas pela Unicamp. Não corou ao ser apanhada.
Em 1967, aos 19 anos, ganhei um curso de língua e literatura portuguesa na Universidade de Coimbra. Era um curso de verão, sem valor acadêmico. Tentei cumpri-lo, mas, uma semana depois, achando-o chato, despedi-me dos colegas e fui saracotear em Paris. Mesmo assim, recebi depois um simpático certificado de inscrição. Vou procurá-lo — está em algum lugar — e juntá-lo ao currículo.
Os espertos vêm de longe. A primeira a ter sua erudição desmentida foi Dilma Rousseff, pré-candidata à Presidência, em 2009. Seu currículo Lattes incluía imaginários mestrado e doutorado em ciências econômicas pela Unicamp. Não corou ao ser apanhada.
Em 1967, aos 19 anos, ganhei um curso de língua e literatura portuguesa na Universidade de Coimbra. Era um curso de verão, sem valor acadêmico. Tentei cumpri-lo, mas, uma semana depois, achando-o chato, despedi-me dos colegas e fui saracotear em Paris. Mesmo assim, recebi depois um simpático certificado de inscrição. Vou procurá-lo — está em algum lugar — e juntá-lo ao currículo.
Pureza da vestal
Vejo aqui na minha página de Facebook: ‘Bolsonaro nunca mais, você é corrupto’. Posso falar palavrão aqui? Puta que o pariu, não fode, porra! Desculpa a linguagem aí. Fala merda o tempo todo, não sabe o que acontece
Jair Bolsonaro
O sincericídio do paraquedista
No dia em que Jair Bolsonaro disse ter acabado com a corrupção no governo, outra declaração causou espanto em Brasília. Esta, pela sinceridade.
No lançamento da campanha Outubro Rosa, o ministro Eduardo Pazuello admitiu seu completo despreparo ao assumir a pasta da Saúde. “Eu não sabia nem o que era o SUS”, confessou.
O Brasil pagou caro pela ignorância do general paraquedista. Quando ele pousou na Esplanada como ministro interino, em maio, o país contava 13 mil mortos pela Covid. Entre hoje e amanhã, deve ultrapassar a marca de 150 mil vidas perdidas.
A tragédia seria menor se o governo tivesse agido com o mínimo de seriedade, confiando a gestão da pandemia a gente qualificada. Bolsonaro preferiu entregar a tarefa a um militar inapto, que não sabia nem o que era o Sistema Único de Saúde.
Pazuello admitiu seu desconhecimento na quarta-feira, dia em que o Brasil ultrapassou os cinco milhões de casos confirmados da Covid. Especialistas alertam que o número está subestimado. Como nunca fez testes em massa, o país não sabe ao certo quantas pessoas já pegaram o coronavírus.
Em abril, Paulo Guedes anunciou que “um amigo na Inglaterra” forneceria 40 milhões de testes por mês. As promessas do ministro da Economia já viraram folclore, mas essa foi especialmente infeliz. Segundo o IBGE, 17,9 milhões de brasileiros fizeram algum tipo de exame até o fim de agosto. Isso significa que os testes não haviam chegado a 91,5% da população.
O sincericídio não foi o único vexame de Pazuello na solenidade de quarta. Sem saber o que dizer, o general se referiu ao câncer como “uma doença muito complicada”. “Então o câncer tá aí. Ele é... ele está aí. E isso precisa ser compreendido”, enrolou-se.
O militar foi a única autoridade a entrar no auditório sem máscara. Sentou-se entre a primeira-dama Michelle Bolsonaro e a ministra Damares Alves, a quem definiu como uma “parceira de todos os dias”. A pastora e o paraquedista têm mais em comum que a obediência cega ao chefe.
No lançamento da campanha Outubro Rosa, o ministro Eduardo Pazuello admitiu seu completo despreparo ao assumir a pasta da Saúde. “Eu não sabia nem o que era o SUS”, confessou.
O Brasil pagou caro pela ignorância do general paraquedista. Quando ele pousou na Esplanada como ministro interino, em maio, o país contava 13 mil mortos pela Covid. Entre hoje e amanhã, deve ultrapassar a marca de 150 mil vidas perdidas.
A tragédia seria menor se o governo tivesse agido com o mínimo de seriedade, confiando a gestão da pandemia a gente qualificada. Bolsonaro preferiu entregar a tarefa a um militar inapto, que não sabia nem o que era o Sistema Único de Saúde.
Pazuello admitiu seu desconhecimento na quarta-feira, dia em que o Brasil ultrapassou os cinco milhões de casos confirmados da Covid. Especialistas alertam que o número está subestimado. Como nunca fez testes em massa, o país não sabe ao certo quantas pessoas já pegaram o coronavírus.
Em abril, Paulo Guedes anunciou que “um amigo na Inglaterra” forneceria 40 milhões de testes por mês. As promessas do ministro da Economia já viraram folclore, mas essa foi especialmente infeliz. Segundo o IBGE, 17,9 milhões de brasileiros fizeram algum tipo de exame até o fim de agosto. Isso significa que os testes não haviam chegado a 91,5% da população.
O sincericídio não foi o único vexame de Pazuello na solenidade de quarta. Sem saber o que dizer, o general se referiu ao câncer como “uma doença muito complicada”. “Então o câncer tá aí. Ele é... ele está aí. E isso precisa ser compreendido”, enrolou-se.
O militar foi a única autoridade a entrar no auditório sem máscara. Sentou-se entre a primeira-dama Michelle Bolsonaro e a ministra Damares Alves, a quem definiu como uma “parceira de todos os dias”. A pastora e o paraquedista têm mais em comum que a obediência cega ao chefe.
A harmonia é o limite
Harmonia, civilidade e cortesia são atributos imprescindíveis às boas relações entre os humanos, sobretudo quando nas mãos deles está o destino da nação e na figura de cada um a representação dos poderes da República. Portanto, há de ser bem recebida a decisão do presidente Jair Bolsonaro de arquivar (ou abandonar, numa perspectiva otimista) a hostilidade que vinha exibindo em relação ao Supremo Tribunal Federal.
Há de se ressalvar, porém, que do “oito” da agressividade não é aceitável uma transição para o “oitenta” do excesso de informalidade, terreno pantanoso em que se corre o risco de resvalar para a promiscuidade. Esse é um cuidado a ser observado e preservado na fase inaugurada pelo presidente da República no âmbito da indicação do novo ministro do Supremo. Vale para o chefe do Executivo e vale também para integrantes do Legislativo e do Judiciário.
Não soa adequado um senador usar o pronome “nosso” para se referir ao desembargador Kassio Nunes Marques, ainda mais quando o referido congressista (Ciro Nogueira) é alvo de processo no STF. Assim como não parece apropriado o presidente ressaltar entre as qualidades de seu escolhido para compor a Corte Suprema o fato de ser seu parceiro no consumo de “tubaína”.
Há de se ressalvar, porém, que do “oito” da agressividade não é aceitável uma transição para o “oitenta” do excesso de informalidade, terreno pantanoso em que se corre o risco de resvalar para a promiscuidade. Esse é um cuidado a ser observado e preservado na fase inaugurada pelo presidente da República no âmbito da indicação do novo ministro do Supremo. Vale para o chefe do Executivo e vale também para integrantes do Legislativo e do Judiciário.
Não soa adequado um senador usar o pronome “nosso” para se referir ao desembargador Kassio Nunes Marques, ainda mais quando o referido congressista (Ciro Nogueira) é alvo de processo no STF. Assim como não parece apropriado o presidente ressaltar entre as qualidades de seu escolhido para compor a Corte Suprema o fato de ser seu parceiro no consumo de “tubaína”.
Sem dúvida alguma é muito melhor ver o presidente levar seu indicado ao encontro de dois ministros do STF em sinal de amabilidade do que vê-lo e ouvi-lo incentivar manifestações em prol do fechamento do tribunal guardião da Carta Maior. A despeito da intenção contida no gesto, talvez tivesse sido mais apropriado fazer a cortesia em ambiente profissional e não em jantar amigo na casa de Gilmar Mendes ou em tarde de pizza e futebol na residência de Dias Toffoli.
A ideia era transmitir ao país uma mensagem de harmonia entre os poderes, mas, para espíritos menos tolerantes ao hábito corrente em Brasília de confundir convivência civilizada com relações perigosamente inadequadas, pode parecer uma ultrapassagem dos limites da necessária harmonia e uma agressão ao indispensável preceito constitucional da impessoalidade.
A observância de rituais de formalidade não significa dizer que as relações entre altas autoridades da República devam se dar em ambientes hostis, muito menos sob a égide da descortesia. Tomemos os exemplos do presidente do Supremo, Luiz Fux, e outros colegas de tribunal que não têm como prática frequentar confraternizações onde juízes se misturam a advogados, investigadores a investigados, lobistas a congressistas. Nem por isso podem ser vistos como republicanamente desrespeitosos. Ao contrário.
Com toda a boa vontade com que se possa receber a adesão do presidente Bolsonaro aos bons modos no convívio com os outros poderes, convém não perder de vista determinadas fronteiras, a fim de não se transmitir aos brasileiros uma sinalização errônea a respeito do funcionamento das instituições, necessitadas que estão do galho forte do acolhimento, da admiração e da proteção social.
A ideia era transmitir ao país uma mensagem de harmonia entre os poderes, mas, para espíritos menos tolerantes ao hábito corrente em Brasília de confundir convivência civilizada com relações perigosamente inadequadas, pode parecer uma ultrapassagem dos limites da necessária harmonia e uma agressão ao indispensável preceito constitucional da impessoalidade.
A observância de rituais de formalidade não significa dizer que as relações entre altas autoridades da República devam se dar em ambientes hostis, muito menos sob a égide da descortesia. Tomemos os exemplos do presidente do Supremo, Luiz Fux, e outros colegas de tribunal que não têm como prática frequentar confraternizações onde juízes se misturam a advogados, investigadores a investigados, lobistas a congressistas. Nem por isso podem ser vistos como republicanamente desrespeitosos. Ao contrário.
Com toda a boa vontade com que se possa receber a adesão do presidente Bolsonaro aos bons modos no convívio com os outros poderes, convém não perder de vista determinadas fronteiras, a fim de não se transmitir aos brasileiros uma sinalização errônea a respeito do funcionamento das instituições, necessitadas que estão do galho forte do acolhimento, da admiração e da proteção social.
Política da miséria
Vamos simplificar a política brasileira. Ela cabe hoje em poucos números, que não são bonitos. Um deles: em 1,5 mil municípios brasileiros a ajuda emergencial de R$ 600 por conta da pandemia DOBROU a massa de salários do setor formal. É um retrato cruel da miséria brasileira.
Essas localidades se espalham pelo País inteiro com notável concentração no Norte e Nordeste. Mesmo no Sul e Sudeste, porém, em mais de 1 mil municípios a massa de salários do setor formal aumentou pela metade com o auxílio emergencial. Ocorre que esse efeito tem data para acabar: dezembro, com o fim do coronavoucher.
A essência do debate político pós-pandemia concentrou-se apenas nesse aspecto: como financiar um programa social que faça a transição da “emergência” para uma “renda básica”. Foi um dos raros elogios que a revista Economist dedicou ao governo brasileiro nos últimos tempos. A melhor conduta em países pobres como o nosso, assinalou a publicação, é mesmo dar dinheiro direto nas mãos das pessoas.
Depois de esperar em vão pela fórmula mágica de onde tirar esse dinheiro – fórmula que, se presumia, existisse no Ministério da Economia –, o presidente Jair Bolsonaro trouxe a bordo de sua coordenação política mãos experientes como as do senador Renan Calheiros. De quem ganhou fortes elogios por estar desmontando o “Estado policialesco” da Lava Jato e por ter passado a praticar não a “velha” ou a “nova” política mas, sim, a “boa” política.
Ela consiste há décadas em acomodar os mais variados interesses (como subsídios, renúncias fiscais, penduricalhos de salários, supersalários, entre muitos outros componentes de gastos públicos que sempre crescem) aumentando a carga tributária. De jantar em jantar de confraternização – Brasília parece de novo tão “normal” –, a pergunta é apenas qual será a fórmula de um novo imposto – dirigido contra o “andar de cima” ou não, mas novo imposto.
Quando o noticiário político produz todas as noites a confusão entre qual reforma, qual PEC, qual pacto, qual PL ou qual voz está valendo para definir os rumos, ele está apenas refletindo a falta de plano, foco e estratégia de um governo interessado só em reeleição. Soa contundente, e é: há pouco crédito quando o ministro da Economia reitera que tem um “road map” para a recuperação da economia. O que há é uma infindável manipulação de prazos regimentais em função de calendários eleitorais, como se dependesse da eleição de prefeitos a arrumação do País e a passagem do tempo resolvesse os problemas.
É verdade que são discretos ainda, mas já não dá para se ignorar os murmúrios em setores da economia preocupados com a subida dos juros a longo prazo, a deterioração do câmbio, a velocidade e a sustentação da recuperação pós-pandemia. Que se assume que será mais lenta do que a recuperação lá fora e nem um pouco homogênea (os exemplos mais fortes estão no contraste entre construção civil, no lado que volta a sorrir, e o de serviços como turismo e gastronomia, entre outros).
Nota-se clara convergência entre os relatórios de grandes bancos, o próprio Banco Central e o FMI quando se trata da crescente preocupação que essas várias instituições manifestam frente à dívida pública e à situação fiscal. No fundo, elas se voltam de olhos cada vez mais arregalados para a política brasileira diante de seu dilema: como proteger as camadas mais vulneráveis, que ficaram ainda mais vulneráveis, sem arrebentar a credibilidade do trato das contas públicas.
O problema é, simplesmente, miséria.
Essas localidades se espalham pelo País inteiro com notável concentração no Norte e Nordeste. Mesmo no Sul e Sudeste, porém, em mais de 1 mil municípios a massa de salários do setor formal aumentou pela metade com o auxílio emergencial. Ocorre que esse efeito tem data para acabar: dezembro, com o fim do coronavoucher.
A essência do debate político pós-pandemia concentrou-se apenas nesse aspecto: como financiar um programa social que faça a transição da “emergência” para uma “renda básica”. Foi um dos raros elogios que a revista Economist dedicou ao governo brasileiro nos últimos tempos. A melhor conduta em países pobres como o nosso, assinalou a publicação, é mesmo dar dinheiro direto nas mãos das pessoas.
Depois de esperar em vão pela fórmula mágica de onde tirar esse dinheiro – fórmula que, se presumia, existisse no Ministério da Economia –, o presidente Jair Bolsonaro trouxe a bordo de sua coordenação política mãos experientes como as do senador Renan Calheiros. De quem ganhou fortes elogios por estar desmontando o “Estado policialesco” da Lava Jato e por ter passado a praticar não a “velha” ou a “nova” política mas, sim, a “boa” política.
Ela consiste há décadas em acomodar os mais variados interesses (como subsídios, renúncias fiscais, penduricalhos de salários, supersalários, entre muitos outros componentes de gastos públicos que sempre crescem) aumentando a carga tributária. De jantar em jantar de confraternização – Brasília parece de novo tão “normal” –, a pergunta é apenas qual será a fórmula de um novo imposto – dirigido contra o “andar de cima” ou não, mas novo imposto.
Quando o noticiário político produz todas as noites a confusão entre qual reforma, qual PEC, qual pacto, qual PL ou qual voz está valendo para definir os rumos, ele está apenas refletindo a falta de plano, foco e estratégia de um governo interessado só em reeleição. Soa contundente, e é: há pouco crédito quando o ministro da Economia reitera que tem um “road map” para a recuperação da economia. O que há é uma infindável manipulação de prazos regimentais em função de calendários eleitorais, como se dependesse da eleição de prefeitos a arrumação do País e a passagem do tempo resolvesse os problemas.
É verdade que são discretos ainda, mas já não dá para se ignorar os murmúrios em setores da economia preocupados com a subida dos juros a longo prazo, a deterioração do câmbio, a velocidade e a sustentação da recuperação pós-pandemia. Que se assume que será mais lenta do que a recuperação lá fora e nem um pouco homogênea (os exemplos mais fortes estão no contraste entre construção civil, no lado que volta a sorrir, e o de serviços como turismo e gastronomia, entre outros).
Nota-se clara convergência entre os relatórios de grandes bancos, o próprio Banco Central e o FMI quando se trata da crescente preocupação que essas várias instituições manifestam frente à dívida pública e à situação fiscal. No fundo, elas se voltam de olhos cada vez mais arregalados para a política brasileira diante de seu dilema: como proteger as camadas mais vulneráveis, que ficaram ainda mais vulneráveis, sem arrebentar a credibilidade do trato das contas públicas.
O problema é, simplesmente, miséria.
A benevolência do establishment com Bolsonaro
O que mais impressiona, na era Bolsonaro, não é exatamente o fato de o presidente da República escancarar comportamentos que, em outros governantes, teriam motivados saraivadas de críticas e reações. O que surpreende, acima de tudo, é o processo de naturalização que parece envolver esses atos, aceitos cordatamente por políticos, instituições e setores da sociedade.
Tome-se como exemplo o Supremo Tribunal Federal, nossa Corte maior. Dez de seus integrantes estão se despedindo esta semana, às lágrimas, de seu decano. Ao mesmo tempo, assistem sem reação aos trâmites da nomeação de um substituto que “toma tubaína” com Jair Bolsonaro e foi escolhido com a ajuda do filho Flávio Bolsonaro, alvo de processos no STF, e do enroladíssimo advogado Fred Wasseff. Não houve, por parte de ministros do Supremo, reparos ao fato de Bolsonaro, em clara falta de educação, nomear o novo titular antes da aposentadoria do antecessor Celso de Mello, num procedimento inédito.
Caladinhos também estão representantes do mercado e do empresariado que ouvem auxiliares do presidente dizerem com naturalidade que ele não vai anunciar o programa Renda Cidadã antes do fim de novembro porque acha que as medidas fiscais impopulares que tem que tomar para financiá-lo podem dificultar seus planos de “varrer o PT” nas eleições. Depois do pleito, ele anunciará, seja lá o que for: tunga na classe média com o fim das deduções do IR, limitação do abono salarial, congelamento de aposentadorias ...
Deixar de tomar decisões de governo, e adiar seu anúncio para depois da eleição tem um nome: estelionato eleitoral, comportamento muito condenado. Fernando Henrique, por exemplo, jamais se recuperou da desvalorização cambial que esperou para fazer em janeiro de 1999, depois de reeleito, em vez de intervir na hora certa, antes da eleição. Dilma Rousseff perdeu apoio das bases petistas quando, reeleita, nomeou Joaquim Levy para fazer uma política econômica diversa da que levou aos palanques da reeleição. Paga-se um preço.
Será que, com o presidente que vem conseguindo banalizar tantos comportamentos incorretos e inadequados sob as vistas benevolentes do establishment, vai ser assim? Pensando bem, o governo Bolsonaro está operando tantas mudanças no estado de espírito das instituições, dos políticos e das elites que é bem capaz de todo mundo continuar caladinho.
Helena Chagas
Tome-se como exemplo o Supremo Tribunal Federal, nossa Corte maior. Dez de seus integrantes estão se despedindo esta semana, às lágrimas, de seu decano. Ao mesmo tempo, assistem sem reação aos trâmites da nomeação de um substituto que “toma tubaína” com Jair Bolsonaro e foi escolhido com a ajuda do filho Flávio Bolsonaro, alvo de processos no STF, e do enroladíssimo advogado Fred Wasseff. Não houve, por parte de ministros do Supremo, reparos ao fato de Bolsonaro, em clara falta de educação, nomear o novo titular antes da aposentadoria do antecessor Celso de Mello, num procedimento inédito.
Ao contrário, dois deles, Dias Tofolli e Gilmar Mendes – que verteu lágrimas na última sessão do decano na Segunda Turma – foram brindados com visita do presidente com o indicado, Kassio Nunes, a tiracolo e com ele confraternizaram. Não lembraram nem de dar um protocolar telefonema ao presidente da Corte, Luiz Fux, que ficou sabendo pela imprensa no dia seguinte – do convescote e da indicação.
No Senado, apesar da oposição de alguns, há poucas dúvidas de que o novo ministro do STF será aprovado com celeridade e até aplausos. Mesmo depois do mal-entendido em que cursos de extensão feitos no exterior foram confundidos com pós-doutorados em seu currículo, exposto no site do TRF-1. Afinal, quem liga para currículo hoje em dia? Tomar tubaína com o presidente, ou ser terrivelmente evangélico, de preferência pastor – quesito anunciado por Bolsonaro para a próxima escolha – pesa muito mais.
Tudo indica que o Supremo, "que já se deu por muito satisfeito porque Kassio Nunes, afinal, é um jurista e as outras opções cogitadas eram muito piores", vai esperar caladinho a nomeação de seu pastor no ano que vem. E que a maioria do Senado também irá engoli-lo, assim como está, aliás, engolindo a reeleição de seu presidente, o aliado do Planalto Davi Alcolumbre, apesar de ser expressamente proibida no texto constitucional. Mas que importância terá a Constituição a essa altura?
Caladinhos também estão representantes do mercado e do empresariado que ouvem auxiliares do presidente dizerem com naturalidade que ele não vai anunciar o programa Renda Cidadã antes do fim de novembro porque acha que as medidas fiscais impopulares que tem que tomar para financiá-lo podem dificultar seus planos de “varrer o PT” nas eleições. Depois do pleito, ele anunciará, seja lá o que for: tunga na classe média com o fim das deduções do IR, limitação do abono salarial, congelamento de aposentadorias ...
Deixar de tomar decisões de governo, e adiar seu anúncio para depois da eleição tem um nome: estelionato eleitoral, comportamento muito condenado. Fernando Henrique, por exemplo, jamais se recuperou da desvalorização cambial que esperou para fazer em janeiro de 1999, depois de reeleito, em vez de intervir na hora certa, antes da eleição. Dilma Rousseff perdeu apoio das bases petistas quando, reeleita, nomeou Joaquim Levy para fazer uma política econômica diversa da que levou aos palanques da reeleição. Paga-se um preço.
Será que, com o presidente que vem conseguindo banalizar tantos comportamentos incorretos e inadequados sob as vistas benevolentes do establishment, vai ser assim? Pensando bem, o governo Bolsonaro está operando tantas mudanças no estado de espírito das instituições, dos políticos e das elites que é bem capaz de todo mundo continuar caladinho.
Helena Chagas
Livros em chamas
Circularam no Twitter no dia 29 imagens de um casal que arranca páginas de livros de Paulo Coelho para atirá-las numa churrasqueira comum, dessas domésticas, dessas bem feias. As folhas, aos maços, caem sobre as brasas e se transformam em pequeninas labaredas. O casal exulta. Enquanto cuida de seus afazeres flamejantes, desfere insultos contra o escritor, que é chamado de “lesa-pátria” por ter criticado o governo. Entre um desaforo e outro, dizem que ele precisa ir morar em Cuba, na Venezuela ou na Argentina. Alguém ri ao fundo. A treva fumega.
A Academia Brasileira de Letras (ABL), que tem Paulo Coelho entre seus imortais, repudiou a cerimônia comburente. Em nota, a ABL argumentou, com razão, que a agressão nos traz memórias tenebrosas, como “a destruição das bibliotecas de Alexandria e Sarajevo, os crimes de Savonarola e as práticas do nacional-socialismo”. É isso mesmo. Talvez sem saber, os que agora fazem romances virar cinzas reeditam os pelotões nazistas que em 1933, na Alemanha, em fogueiras rituais no meio da rua, torraram exemplares de clássicos da literatura. Brincando com fogo, brincam com a História.
As mentalidades autoritárias são assim. Não desistem. A combustão não cessa. No dia 15 de dezembro de 1977 o Times-Union, jornal da cidade americana de Warsaw, Indiana, estampou uma foto de um grupo de senhores e senhoras da cidade inspecionando um ritual em que livros ardiam num grande cesto de lixo feito de tela aramada. Eram obras que, segundo o grupo, agrediam os valores da família. No ano passado, manifestantes na Etiópia queimaram cópias de um livro do primeiro-ministro (vencedor do Prêmio Nobel da Paz) Abiy Ahmed, para, com isso, dar apoio ao oposicionista Jawar Mohammed.
São fatos históricos notórios. Além deles, porém, há os episódios menos visíveis em que pessoas comuns se metamorfoseiam em incendiárias fanáticas. Isto é o mais terrível nas imagens do Twitter: quem está ali atentando contra livros não são bandos organizados de extrema direita, mas gente como a gente que, num ato instantâneo, se escancara horrorosamente desumana. Não, não é gente como a gente. A intolerância mais odiosa já se alojou na intimidade dos lares brasileiros.
Muitos dizem que o pior do fascismo é a brutalidade que ele autoriza no guarda da esquina. Estão certos. Na mesma perspectiva, podemos acrescentar que o pior do fascismo é a potência inflamável que ele acende entre os anônimos. Na impossibilidade prática de queimar as pessoas, como se fazia nos tribunais da Inquisição e no Holocausto, os novos incineradores queimam os nomes próprios dos que julgam “traidores”. Queimam biografias. Acreditam no fogo para linchar a honra alheia mais ou menos como acreditam no inferno.
É preciso olhar para essas imagens com atenção, por mais que elas nos rebaixem. É preciso escutar. Nas crepitações obscurantistas do cotidiano ouvimos o discurso em que a Pátria vira sinônimo de governo. Logo, quem ama o brasão nacional tem de baixar a cabeça para a autoridade, quem discorda é “impatriótico” e será condenado à fogueira e ao exílio e vai ter de morar na Venezuela.
É como estar dentro de uma distopia. O Brasil vira cenário da ficção científica Fahrenheit 451, de Ray Bradburry, em que o corpo de bombeiros usa lança-chamas para consumir as bibliotecas. Aqui e ali pipocam cenas distópicas na vida real e nas redes sociais. Em que tipo de monstruosidade nos estamos convertendo? Será que seremos isso, uma sociedade que queima florestas e depois queima a reputação dos que apontam as queimadas nas florestas? Enquanto demoramos a responder, a terra arde, a celulose vira fumaça e palavras são calcinadas.
A falência generalizada de livrarias faz soar o alarme, mas não percebemos nada. O desprestígio das bibliotecas nos alerta, em vão. Bibliotecas servem para as pessoas estudarem, em silêncio, concentradas nas páginas onde encontram sabedoria. Abrigam quem queira recolher-se e pensar. Bibliotecas não são acervos de livros, mas templos dedicados à postura essencial de ler, pensar e, mais ainda, de encontrar pessoas para o diálogo. Sim, bibliotecas são lugares de encontros. Como lugares de estudo, reservam salas para reuniões, onde os frequentadores podem conversar em torno de ideias.
Hoje essas duas potencialidades humanas, o recolhimento meditativo e o encontro dialógico, estão amaldiçoadas. Nada parece ser mais ameaçador para o fanatismo que aí está do que uma pessoa em silêncio com um livro diante dos olhos. Alguém que pense por sua própria conta é alguém que, uma hora ou outra, vai inventar de não obedecer. Onde é que já se viu? Mas além do pensamento, os piromaníacos violentos têm medo do encontro. Temem o diálogo, que só se realiza quando os pontos de vista não são coincidentes (só há diálogo porque há diferenças). Nada os assusta mais que o encontro entre diferentes.
Pensar é respeitar. Encontrar é desejar. Os brutos olham para isso e riscam o fósforo. “Livros, livros, à mão cheia” – para avivar a churrasqueira.
Eugênio Bucci
A Academia Brasileira de Letras (ABL), que tem Paulo Coelho entre seus imortais, repudiou a cerimônia comburente. Em nota, a ABL argumentou, com razão, que a agressão nos traz memórias tenebrosas, como “a destruição das bibliotecas de Alexandria e Sarajevo, os crimes de Savonarola e as práticas do nacional-socialismo”. É isso mesmo. Talvez sem saber, os que agora fazem romances virar cinzas reeditam os pelotões nazistas que em 1933, na Alemanha, em fogueiras rituais no meio da rua, torraram exemplares de clássicos da literatura. Brincando com fogo, brincam com a História.
As mentalidades autoritárias são assim. Não desistem. A combustão não cessa. No dia 15 de dezembro de 1977 o Times-Union, jornal da cidade americana de Warsaw, Indiana, estampou uma foto de um grupo de senhores e senhoras da cidade inspecionando um ritual em que livros ardiam num grande cesto de lixo feito de tela aramada. Eram obras que, segundo o grupo, agrediam os valores da família. No ano passado, manifestantes na Etiópia queimaram cópias de um livro do primeiro-ministro (vencedor do Prêmio Nobel da Paz) Abiy Ahmed, para, com isso, dar apoio ao oposicionista Jawar Mohammed.
São fatos históricos notórios. Além deles, porém, há os episódios menos visíveis em que pessoas comuns se metamorfoseiam em incendiárias fanáticas. Isto é o mais terrível nas imagens do Twitter: quem está ali atentando contra livros não são bandos organizados de extrema direita, mas gente como a gente que, num ato instantâneo, se escancara horrorosamente desumana. Não, não é gente como a gente. A intolerância mais odiosa já se alojou na intimidade dos lares brasileiros.
Muitos dizem que o pior do fascismo é a brutalidade que ele autoriza no guarda da esquina. Estão certos. Na mesma perspectiva, podemos acrescentar que o pior do fascismo é a potência inflamável que ele acende entre os anônimos. Na impossibilidade prática de queimar as pessoas, como se fazia nos tribunais da Inquisição e no Holocausto, os novos incineradores queimam os nomes próprios dos que julgam “traidores”. Queimam biografias. Acreditam no fogo para linchar a honra alheia mais ou menos como acreditam no inferno.
É preciso olhar para essas imagens com atenção, por mais que elas nos rebaixem. É preciso escutar. Nas crepitações obscurantistas do cotidiano ouvimos o discurso em que a Pátria vira sinônimo de governo. Logo, quem ama o brasão nacional tem de baixar a cabeça para a autoridade, quem discorda é “impatriótico” e será condenado à fogueira e ao exílio e vai ter de morar na Venezuela.
É como estar dentro de uma distopia. O Brasil vira cenário da ficção científica Fahrenheit 451, de Ray Bradburry, em que o corpo de bombeiros usa lança-chamas para consumir as bibliotecas. Aqui e ali pipocam cenas distópicas na vida real e nas redes sociais. Em que tipo de monstruosidade nos estamos convertendo? Será que seremos isso, uma sociedade que queima florestas e depois queima a reputação dos que apontam as queimadas nas florestas? Enquanto demoramos a responder, a terra arde, a celulose vira fumaça e palavras são calcinadas.
A falência generalizada de livrarias faz soar o alarme, mas não percebemos nada. O desprestígio das bibliotecas nos alerta, em vão. Bibliotecas servem para as pessoas estudarem, em silêncio, concentradas nas páginas onde encontram sabedoria. Abrigam quem queira recolher-se e pensar. Bibliotecas não são acervos de livros, mas templos dedicados à postura essencial de ler, pensar e, mais ainda, de encontrar pessoas para o diálogo. Sim, bibliotecas são lugares de encontros. Como lugares de estudo, reservam salas para reuniões, onde os frequentadores podem conversar em torno de ideias.
Hoje essas duas potencialidades humanas, o recolhimento meditativo e o encontro dialógico, estão amaldiçoadas. Nada parece ser mais ameaçador para o fanatismo que aí está do que uma pessoa em silêncio com um livro diante dos olhos. Alguém que pense por sua própria conta é alguém que, uma hora ou outra, vai inventar de não obedecer. Onde é que já se viu? Mas além do pensamento, os piromaníacos violentos têm medo do encontro. Temem o diálogo, que só se realiza quando os pontos de vista não são coincidentes (só há diálogo porque há diferenças). Nada os assusta mais que o encontro entre diferentes.
Pensar é respeitar. Encontrar é desejar. Os brutos olham para isso e riscam o fósforo. “Livros, livros, à mão cheia” – para avivar a churrasqueira.
Eugênio Bucci
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