sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Pensamento do Dia

 

António Santos (Santiagu)

O abismo

Foi-se o tempo em que o ministro da Economia era o esteio do governo federal, especialmente em tempos de crise. Com status privilegiado, o chefe da equipe econômica quase sempre teve autoridade e prestígio para suportar as pressões inerentes a seu cargo, sobretudo porque é dele que se esperam decisões que vão afetar diretamente a vida da maioria dos brasileiros. Hoje não é mais assim.

O presidente Jair Bolsonaro conseguiu a proeza de transformar seu ministro da Economia, Paulo Guedes, em personagem secundário no jogo de poder em Brasília. Nisso emparelhou com a presidente Dilma Rousseff, que fez de sua equipe econômica uma simples despachante de seus delírios fiscais.

E não se diga que a responsabilidade por esse fiasco é inteiramente do presidente da República e de sua patente incapacidade para estabelecer um rumo para seu governo. O ministro da Economia colaborou decisivamente para seu próprio apequenamento.


Escalado para ser a face racional de um governo que tinha tudo para ser, digamos, excêntrico, o ministro Paulo Guedes frustrou todas as expectativas, graças à sua incapacidade de aceitar o diálogo político, único meio de encaminhar propostas numa democracia. O ministro foi inábil para convencer até mesmo o presidente Bolsonaro de suas ideias.

Hoje, o ministro da Economia luta para retomar o protagonismo num governo claramente propenso a ignorá-lo em favor daqueles a quem Paulo Guedes apelidou jocosamente de “ministros fura-teto”, em referência aos colegas de Esplanada que defendem aumento de gastos.

Não que os projetos de Paulo Guedes sejam muito melhores que os dos ministros que alimentam o populismo bolsonarista – ao contrário, várias soluções apresentadas pelo ministro da Economia desde a posse ou eram gambiarras, como a volta da CPMF, ou eram simplesmente irrealizáveis, como a intenção de zerar o déficit público já no primeiro ano de governo. Mas o fato é que Paulo Guedes hoje “está quase sozinho, isolado, dentro do governo, na defesa da necessidade de se encontrar caminhos respeitando as regras atuais do jogo, começando pelo teto de gastos”, como enfatizou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, em entrevista ao Valor. Ou seja, o ministro da Economia já não consegue se fazer ouvir num governo que se inclina cada vez mais à demagogia, abandonando promessas de campanha a respeito da responsabilidade fiscal e da reforma do Estado.

A redução da “estatura da equipe econômica”, nas palavras do economista José Roberto Mendonça de Barros em entrevista ao Estado, “é algo raro de acontecer”. Manifestando uma opinião que está longe de ser isolada, Mendonça de Barros disse que “claramente o ministro da Economia e sua equipe perderam espaço no governo” e que “está claro que o ministro perdeu um pouco o rumo das coisas”. Segundo o economista, Paulo Guedes “repete temas parciais, como a CPMF, e não enfrenta o que é relevante”.

Para piorar, lembrou Mendonça de Barros, “todas as propostas da equipe econômica para compatibilizar a retomada do controle fiscal com os desejos do presidente foram sumariamente rejeitadas” por Bolsonaro. Nessa toada, com o presidente deixando todas as decisões importantes para depois das eleições municipais, “vamos chegar a dezembro sem a menor ideia de para qual lado se vai”, e, para piorar, “não temos uma política econômica consistente”.

O diagnóstico não poderia ser mais preciso. O esvaziamento do Ministério da Economia, algo praticamente inédito na história nacional, está na raiz da profunda confusão a respeito do futuro imediato do País. É resultado da soberba do ministro da Economia, que se julgou capaz de revolucionar o Brasil sem precisar combinar nem com o Congresso nem com o próprio presidente, mas é, sobretudo, consequência da transformação do governo em comitê de campanha do presidente Bolsonaro.

Movido por esse espírito, o presidente já deixou claro que ministros que não lhe servirem como dedicados cabos eleitorais serão condenados à irrelevância. O peso dessa decisão arrasta o País para o abismo.

Bananas americanas

O que estamos vendo nos Estados Unidos nos últimos dias é a surpreendente repetição, com anos de atraso, de situações que já vivemos aqui no Brasil no tempo em que tínhamos votação em cédulas eleitorais, contabilizadas manualmente. De acordo com a geografia da apuração, um candidato poderia sair à frente, e depois perder força. Havia, claro, fraudes, e ficou famoso, por exemplo, políticos mineiros atribuindo aos votos “da Zona da Mata” uma mudança de tendência.

Trump está surpreso com o crescimento de Biden com os votos pelo correio, e acusa fraude. Ao mesmo tempo, o presidente Bolsonaro promete aqui pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral. Desde que temos as urnas eletrônicas, nunca mais houve acusações de fraude, e Bolsonaro insiste na denúncia de fraudes sem provas, como seu avatar Trump. E pretende pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral.

À medida que a apuração da eleição presidencial nos Estados Unidos vai mostrando uma provável vitória do democrata Joe Biden, fica claro também que não é apenas a agenda internacional que será alterada, obrigando o governo brasileiro a se reposicionar. Também a maneira de se expressar e de tratar os adversários políticos e temas sensíveis no mundo ocidental mudará sensivelmente, o que colocará o presidente Bolsonaro no papel de espécie de político em extinção em países civilizados.

Restarão a ele exemplares raros, como o Aleksandr Lukashenko, da Bielorússia, que queria resolver a COVID-19 com vodka e sauna; o presidente do Turcomenistão, Gurbanguly Berdimukhamedov, que proibiu a palavra coronavírus, o premier húngaro Viktor Orbán. Todos eles, e mais pequenos ditadores africanos e do Oriente Médio, têm em comum com o ainda presidente Donald Trump uma agenda conservadora que vai da negação da ciência, aí incluído o meio ambiente, à defesa hipócrita da pátria e dos valores da família. 

A provável derrota de Trump não o retirará da política, pois já existe um movimento interno para fazê-lo candidato em 2024. Existe essa possibilidade porque a 22ª emenda da Constituição americana se refere apenas à impossibilidade de eleição para presidente por mais de dois mandatos.

A limitação foi aprovada depois que Franklin Roosevelt foi eleito por quatro mandatos. Tradicionalmente, um ex-presidente não exerce nenhum outro cargo, embora existam casos de ex-presidentes que voltaram ao Senado, como Andrew Johnson, ou William Howard Taft, que exerceu o cargo de Chefe de Justiça após sair da presidência. O único presidente que, não tendo sido reeleito, voltou à presidência depois foi Grover Cleveland, em 1892.

Nada indica que o presidente Trump aceite uma eventual derrota sem questiona-la na Justiça, tentando ir até mesmo à Corte Suprema, como reafirmou ontem. Não foi à toa que ele insistiu em nomear antes mesmo da eleição uma juíza para a vaga aberta. Com seis votos conservadores em nove, ele acredita que poderá ganhar no último recurso.

Talvez a principal razão para que Trump se entregue com tanto afinco a não aceitar uma derrota seja o receio das possíveis ações legais que teria que enfrentar em Nova York, onde está a maioria de seus negócios. Mais do que seu ego, que é outro grande obstáculo a uma posição razoável. Assessores e líderes republicanos não concordaram com a declaração de que havia fraude na eleição, mas Trump já disse que, “ganhar é fácil, perder é difícil”.

O ex-vice-presidente Biden tem se dedicado a marcar a diferença entre ele e Trump. Todos os seus pronunciamentos têm sido no sentido de unir o país, de pedir calma e paciência para que todos os votos sejam contados e garantir indiretamente que aceitará o resultado das urnas em caso de uma derrota que ele não vislumbra.

Já o presidente Trump dedica-se a mandar mensagens pelas redes sociais alertando contra supostas fraudes nunca comprovadas, e pedindo que as cédulas eleitorais chegadas pelo correio não sejam contadas. À noite, fez a mais sensacionalista declaração desde o início da apuração, reforçando, sem mostrar provas, a denúncia de que está havendo fraude na contabilização dos votos. 

É um fato singular na história da democracia americana, que coloca o país no rol das repúblicas de banana, expressão criada pelos próprios americanos para definir pejorativamente países politicamente instáveis, submetidos a governantes autoritários. 

A Terra plana, assim cantou José Miguel Wisnik

No dia 10 de setembro perdemos o astrofísico brasileiro João Steiner. Tinha 70 anos de idade. Professor titular do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, foi também diretor do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da mesma universidade e coordenou a participação brasileira na construção do Telescópio Gigante de Magalhães, o maior já feito até hoje, que será inaugurado em 2024, nos Andes chilenos.

Sorriso acolhedor, cabelos brancos, longos, por vezes indisciplinados, João tinha o physique du rôle do gênio bonachão, um tipo meio cinematográfico. Não havia na USP ninguém mais desarmado e menos arrogante do que ele. Membro da World Academy of Sciences, foi uma das maiores autoridades do mundo em buracos negros, mas não botava banca. Amava a ciência e a humanidade.

Uma vez, almoçando com um colega menos graduado no restaurante que fica atrás da Faculdade de Economia, na Cidade Universitária, ouviu uma pergunta que o desconcertou: qual era a sua opinião sobre o fato de um astronauta ser ministro da Ciência e da Tecnologia no Brasil? João sabia perfeitamente do descalabro e da incultura que começavam a se instalar no poder, mas, discreto por estilo e convicção, não se prestava a alaridos panfletários. Serenamente, pousou as duas mãos sobre a mesa, uma de cada lado do prato, e achou um ângulo de escape onde só havia más notícias: “Pelo menos ele sabe que a Terra é redonda”. A inteligência de João Steiner era assim, sempre nos presenteava com um pouco de bom humor.



No ano de 194 antes de Cristo perdemos Eratóstenes de Cirene, matemático e bibliotecário da Biblioteca de Alexandria. Tinha 82 anos de idade e deve ter sido um cara interessante, ele também. Medindo longas distâncias em passos e aplicando fórmulas trigonométricas, realizou um cálculo quase inacreditável. A cosmologia nascente já tinha percebido a esfericidade da Terra (Platão fala disso no Fédon), mas Eratóstenes quis saber o tamanho exato da circunferência do nosso planeta. De acordo com as contas que fez, a medida (convertida ao sistema métrico atual) seria de 39.700 quilômetros. Pelos números que conhecemos hoje, o grande bibliotecário errou por míseros 308 quilômetros, para menos, mas acertou no fundamental: deu um chega pra lá na chatice e na platitude.

O nosso problema é que, apesar dele, a chatice e a platitude não desistiram. Haja boçalidade! O discurso terraplanista angaria adeptos fervorosos, que primam pela rabugice enfurecida, ressentida, invejosa, destrutiva. Quando dão curso à conversa de que a Terra é plana, não pretendem dizer a verdade, escarnecem da verdade, apenas celebram seu rito bestial de afrontar a cultura e o espírito. Sentem-se humilhados diante do saber e respondem com insultos. Tomados por ódios pestilentos, marcham como autômatos para implantar sua igualdade na estupidez e sua unidade na servidão. Aí estão eles, em toda parte, a bordo de sua indústria de calúnias, prestando serviços voluntários aos delírios conspiratórios mais estapafúrdios. Dizem que ninguém foi à Lua, que vacina chinesa faz mal à saúde, que o nazismo era de esquerda, que o novo coronavírus é comunista, que Osama bin Laden não morreu e que Barack Obama não é americano, mas um muçulmano disfarçado e protegido pela máfia de pedófilos do Partido Democrata. O descalabro e a incultura não arredam pé do poder.

E então? De onde tirar bom humor? O que fazer?

No dia 27 de outubro, agora mesmo, na semana passada, o crítico literário, professor, poeta e compositor José Miguel Wisnik deu sua resposta para essas perguntas. O que fazer? Ora, cantar. Wisnik lançou um single no YouTube em que interpreta sua nova composição: A Terra plana. No título, que fique bem redondo, a palavra “plana” entra não como adjetivo, mas como verbo. A Terra, segundo o poeta, vai planando pelo cosmo, é isso. A letra cuida de explicar: “(...) entre rastros luminosos de corpos distantes (...) a Terra plana (...) redondamente certa (...) no universo deserto, curvo e dilatado sem planos nem enganos”.

A esta altura de tantas baixezas, a poesia não vai ensinar a ninguém o que Eratóstenes já tinha calculado, mas ao menos nos ajuda a dissolver a ignorância que incinera a imaginação. Quantos incêndios, quantas cinzas, quantas mortes... Queimaram a biblioteca de Alexandria, queimaram mulheres, cientistas, livros, florestas, e ainda queimam. Mesmo assim, canta Wisnik, “a Terra simplesmente plana carregando o peso da ganância que a maltrata”. A gente escuta e também plana com esse hino leve para um tempo de chumbo. A pegada é de passeata musical. No início da canção entram vozes de crianças repetindo uma palavra de ordem: “A Terra não é plana, a Terra não é chata”. Uma percussão fina ajuda. No piano, a nota si, sozinha, marca o compasso.

E lá vai a Terra, planando, flanando, “sem um chão que não seja o seu, sem um chão que não seja o céu”. O céu é o chão. Quando a gente olha para o alto, pensa que ele é azul. Quando, lá do alto, o astronauta contemplou a nossa redondice, viu que azul era ela. Até quando? Azuis eram os olhos de João Steiner.

América: A Bela e o Monstro

Escrevo no dia mais loooooooongo sem saber como irá acabar ou, melhor, como terminará a corrida às urnas, de certeza uma prolongada incógnita. Cresci ouvindo falar nesse outro infindável dia, de um tempo quando nem ainda concebido eu era. Tive dele conhecimento via o cinema. Sob fogo intenso, os americanos assaltando a costa da Normandia, impelidos pelo ideal de resgatar a Europa das garras de Hitler.

Obviamente, a causa da luta de hoje não se presta a comparações. Não estamos em guerra nem propriamente diante de uma reencarnação de Hitler. Há, é certo, milícias armadas junto de algumas urnas, todavia nada é semelhante àquele cenário ultradantesco do desembarque de 6 de junho de 1944.
E, no entanto, os pontos de contacto e de contraste não deixam de ser flagrantes.



O que aconteceu à América? Que é feito dos ideais que produziram a luta pelos direitos civis, os hippies, a cruzada contra a guerra do Vietname? Que construíram uma aparentemente sólida e indestrutível democracia, institucionalizando os valores da modernidade assumidos pelos Founding Fathers – Thomas Jefferson sendo apenas um deles –, postos em prática aqui ainda primeiro do que em França, sua terra de berço?

Quem conhece a História norte-americana sabe bem que ela se desenrolou sempre em profunda tensão entre as forças biológicas da natureza humana, que impulsionaram os europeus a espalhar-se pelas Américas, e o vigor dos ideais que procuravam conter o lado animal dos humanos, capazes dos piores crimes.

Eles – os ideais e os seres humanos – não mudaram. As mesmas forças continuam em presença. E nem sequer podemos pensar em simplistas divisórias entre direitas e esquerdas, mas entre biologia e ética. Cada grupo constrói o seu ideário, entretecendo-o de verdades que se ajustam às suas crenças e aos seus desejos mais profundos, e entrega-se à luta por eles.

A minha geração deixou-se embalar na ingénua esperança no “homem novo”, mas ele é uma utopia e, como todas as utopias, fundamental para nos fazer imaginar e sonhar, à Platão, com algo que nos faça sair desta caverna em que vivemos. Thomas Hobbes usava uma metáfora melhor, a da selva. E preveniu-nos, alertando-nos para a edificação de um Estado forte – o Leviatão –, porque os ideais, por mais belos que sejam, não bastam. Os Estados Unidos da América (e a Europa Ocidental mais os países que se entusiasmaram pelo projeto da modernidade) acreditaram que a criação de instituições democráticas sólidas, independentemente das pessoas que as geriam, seria suficiente para suster os embates das forças que, segundo a lógica da biologia, continuariam a digladiar-se. E a ideia resultou até à explosão das redes sociais, que puseram um microfone diante de cada cidadão, retirando o filtro que as instituições democráticas haviam estabelecido, a fim de debelarem os exageros que a biologia desbragada pode gerar. Nietzsche nunca terá decerto imaginado que advogava a retirada dos tapumes segurando o toiro.

O espaço que me é concedido não me permite explicitar este arrazoado, apenas me deixa umas dezenas de caracteres para advertir: sempre olhei para a América do Norte como um cadinho onde a Humanidade vem experimentando o futuro. Dantes, as experiências demoravam a chegar ao mundo todo. Agora, são instantâneas. O que significa: hoje aqui, amanhã em qualquer parte do globo.