sexta-feira, 29 de março de 2019

Deserto de ideias

O governo Jair Bolsonaro parece ser uma fonte inesgotável de ideias e opiniões. Nas redes sociais, o presidente fala de tudo – das ideologias, do comunismo, dos costumes, da imprensa, da lombada eletrônica, da placa de automóvel e até de uma questão do Enem da qual ele discorda. Nos discursos, o tom é altivo. Seu papel não seria apenas o de chefiar o Executivo federal. De acordo com suas palavras, sua missão no Palácio do Planalto consistiria em refundar o País, com a instauração de uma nova ordem social, “libertando-o definitivamente do jugo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica”, como afirmou no discurso de posse.

A abundância de ideias e opiniões do governo Bolsonaro contrasta, no entanto, com a ausência de projetos e políticas públicas para o País. Em recente entrevista ao Estado, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, fez notar que, além do projeto de endurecimento das leis penais de Sergio Moro e da proposta de reforma da Previdência – que o próprio Jair Bolsonaro não assume completamente, dizendo que preferiria não ter de aprová-la –, o novo governo não tem um projeto para o País. “Se tem propostas, eu não as conheço”, disse Rodrigo Maia.

Ao falar da constante presença de Jair Bolsonaro e de sua família nas redes sociais, o presidente da Câmara lembrou um dado básico, que já havíamos ressaltado nestas páginas: “O Brasil precisa sair do Twitter e ir para a vida real. Ninguém consegue emprego, vaga na escola, creche, hospital por causa do Twitter. Precisamos que o País volte a ter projeto”.

É um engodo a ideia de que se está construindo um novo Brasil, “livre de amarras ideológicas”, por força da atuação do presidente Jair Bolsonaro nas redes sociais. E a população dá sinais de ter percebido essa realidade. As pesquisas de opinião indicam uma significativa deterioração da avaliação de Bolsonaro em menos de três meses de governo.

A tarefa de governar o País é muito diferente do que simplesmente criticar políticas e ações públicas do PT no governo federal. “Criticaram tanto o Bolsa Família e não propuseram nada até agora no lugar. Criticaram tanto a evasão escolar de jovens e agora a gente não sabe o que o governo pensa para os jovens e para as crianças de zero a três anos”, afirmou o presidente da Câmara.

A ausência de propostas e projetos consistentes para o País contraria diretamente uma das promessas mais repetidas por Bolsonaro e seu entorno – de que o seu governo imprimiria um rumo completamente novo ao Brasil. Sem propostas para os problemas reais, não há como falar em novos caminhos para o País.

A consequência imediata dessa incapacidade de apresentar propostas é a continuidade nos erros da era petista. Foi o que se viu, por exemplo, na participação do Brasil na “Segunda Conferência de Alto Nível das Nações Unidas sobre Cooperação Sul-Sul”. Apesar de todo o discurso de que o governo Bolsonaro imprimiria uma nova política internacional, o Brasil deu mais um passo no sentido de reafirmar a tal cooperação Sul-Sul, com suas conhecidas limitações e entraves para uma adequada inserção do País no cenário internacional.

Não se sabe quais são os projetos do governo Bolsonaro para a saúde pública, tema de primeira importância para a população. O mesmo acontece na área de educação. Ao abdicar de apresentar propostas concretas, o governo Bolsonaro reduz sua atuação a disputas verbais, agressões e escândalos.

A manutenção do País num clima conflituoso de campanha eleitoral, que parece ser até aqui um dos grandes objetivos de Bolsonaro, condena, assim, o seu próprio governo a uma preocupante paralisia. Aquele que prometeu um novo Brasil parece agora mais interessado na repercussão de seus tuítes. As urnas deram a Jair Bolsonaro uma missão bem concreta e com precisas responsabilidades institucionais. Ao presidente da República cabe construir soluções para os problemas nacionais. A ausência de projetos é caminho certo para o fracasso. O País não merece tamanho descuido.

Gente fora do mapa

Orhan Genel

Foi ditadura, e daí?

O que aconteceu em 31 de março de 1964 foi um golpe, depois veio um golpe dentro do golpe e tudo aquilo foi uma ditadura. Que, ao enfrentar resistência da luta armada de grupos de esquerda antidemocráticos (o termo técnico é terrorismo) e de correntes da sociedade civil organizada (imprensa, sindicatos, universidades, grupos políticos conservadores e liberais) – estas últimas são as que tiraram o País do regime de exceção –, dedicou-se a reprimir, censurar, prender e torturar, contrariando os próprios códigos de conduta das Forças Armadas. E daí?

E daí que o assunto é página virada e, no caso do Brasil, só assume importância política atual por causa da patética dedicação do presidente da República a aspectos secundários da “guerra cultural”. É bem verdade que Bolsonaro não está sozinho nesse empenho em recorrer a algum episódio traumático do passado como forma de moldar o debate político do presente.


Em Israel, o revisionismo do mito de fundação do país influencia também as atuais eleições. Na Rússia, é a interpretação da implosão da União Soviética como uma “catástrofe geopolítica” a ser corrigida que sustenta Vladimir Putin. Na China, o ressurgimento do nacionalismo é uma arma poderosa de legitimação do partido comunista empenhado em desfazer um século de “humilhações impostas por potências estrangeiras”. Nos Estados Unidos, Trump fala de uma “América grande de novo”, como se alguma vez tivesse deixado de ser.

A tentativa de Bolsonaro de dar a 64 uma relevância que também os integrantes do Alto-Comando das Forças Armadas acham que ficou para os historiadores tem pouco a ver com os exemplos acima. É parte do cacoete do palanque digital de campanha eleitoral. E já não se trata de perguntar quando ele vai descer da plataforma da agitação eleitoral e se sentar na cadeira presidencial, pois a resposta está dada: nunca.

O presidente e seus seguidores mais aguerridos nas redes sociais criam e se retroalimentam de “polêmicas” que, na época pré-digital, se chamavam de briga de mesa de boteco. Sobe o volume da gritaria à medida que o tempo avança e as coisas não acontecem como os “revolucionários” esperavam que evoluíssem. E encontram na “velha política”, nas “oligarquias corruptas”, na “mídia”, no “marxismo cultural” as “explicações” para a própria incapacidade de criar uma narrativa abrangente e dotada de clara estratégia de como tirar o País do buraco.

As reações contrárias de diversos setores à “comemoração” de 64 provocam nos militantes dessa franja da direita brasileira um “frisson” de alegria, como se sentissem confirmados em suas piores suspeitas. São a eles que os atuais comandantes militares se referem quando alertam que não estão dispostos a tolerar nenhum tipo de fanatismo, de um lado ou de outro. É o tipo de recado, porém, que provavelmente fará os mesmos militantes se sentirem reconfortados.

Nesse sentido, as agressões verbais por intelectuais que influenciam Bolsonaro e seus entes mais próximos aos generais no governo (xingados de “idiotas”, “cagões” e “comunistas infiltrados”) não são deslizes típicos da mesa do boteco. Na peculiar visão de mundo que move os agressores, trata-se do necessário resgate do espírito da História, no qual a nova “hora zero” de 64 explicaria a razão de o País ser hoje uma democracia aberta e representativa e não uma república popular ou socialista. Por isso, consideram que “comemorar” o distante 64 seria parte da luta de ideias.

Sem dúvida alguma, ideias têm consequências. E ideias malucas e idiotas costumam ter consequências péssimas.

Cem dias de fúria

Foi uma lua de fel. Os 100 primeiros dias do governo Bolsonaro confirmaram ao país que a “nova política” era mesmo tudo o que prometia: um emplastro destrutivo que despreza a política, a gestão pública e a diplomacia. A culpa não foi da imprensa, do Congresso, da “velha política”, da torcida, do pensamento negativo ou do PT acima de tudo, do petista acima de todos. O prejuízo desse infantilismo ainda não é calculável. O mercado confiou em analistas de conjuntura que cometeram o pecado capital de confundir desejo com fato. Aplicou muito dinheiro nesse desejo, entoou o canto da arquibancada e mandou os céticos se calarem. Daí persistir em estado de negação por ter subestimado a vocação de Jair e superestimado a clarividência de Paulo Guedes.

Foi um festival pornográfico. Não me refiro à ducha alaranjada nem à imaginação de Damares. Nem às conexões milicianas, nem à funcionária-fantasma, nem ao patrimonialismo filhocrático, nem aos vídeos que culpam o Bolsa Família pelo mau desempenho escolar de crianças pobres, ou que recomendam rasgar cadernetas de saúde que orientam adolescentes a prevenir doenças, ou que permitem ao general lembrar o capitão que não há síndrome de “Drown”. Por trás da pornografia, há corrosão institucional.


Foi uma peça dividida em dois atos. No primeiro mês, com as instituições de férias (o Judiciário, o Legislativo, as universidades, a Lava Jato, o pré-Carnaval), o governo lançou alguns balões de ensaio. Com pouca gente para atrapalhar, exceto a imprensa, sempre ela, o mês de janeiro permitiu experimentos autocráticos preliminares: restringiu transparência e ampliou sigilo de documento público, criou sistema de monitoramento da sociedade civil e continuou a atiçar a militância para o serviço sujo nas ruas, no campo e nas redes.

Daí em diante, veio a realidade institucional e o cotidiano administrativo. Primeiro, na cozinha da política pública. Conflagrado em conflitos internos gestados na Virgínia e entretido com sua ordem a escolas para filmar crianças cantando o hino e o slogan do governo, o MEC se esqueceu da tarefa mundana de aquisição de livros didáticos. No Ministério do Meio Ambiente, órgãos ambientais foram proibidos de falar com a imprensa enquanto o desmatamento explode em relação ao mesmo período de 2018 (para piorar, a liberação recorde de novos venenos pelo Ministério da Agricultura afeta a própria agricultura no longo prazo). O Ministério da Mulher, da Família e dos Direito Humanos começou pela retirada de LGBTs dos grupos de atenção da pasta, num dos países que mais violenta homossexuais no mundo. Também faz vista grossa a invasões de terras indígenas que se alastram pelo país. A cereja do bolo é o doping acadêmico desses três ministros campeões em honestidade: Rodríguez maquiou seu currículo Lattes, Salles disse ser mestre em Yale sem nunca ter pisado em sala de aula daquela universidade e Alves contou que seu mestrado em Direito da Família foi bíblico.

Nas relações externas, a cruzada ideológica contra o globalismo já trouxe prejuízo no comércio com árabes e chineses. As visitas internacionais não geraram, por assim dizer, grande impressão: em Davos, a fala envergonhada do presidente durou a eternidade de 6 minutos, depois, restou se ausentar da coletiva de imprensa; nos Estados Unidos, a vassalagem a Trump surpreendeu até mesmo a Fox News; em Santiago, o elogio a Pinochet conseguiu ofender até a direita chilena. Para não falar no tensionamento na fronteira da Venezuela.

Não é surpresa que o índice de popularidade tenha atingido o nível mais baixo de um presidente em início de governo desde Collor. Filhos derrubam ministros (como Bebianno, vítima de Carlos), substituem ministros (como Ernesto Araújo, escanteado por Eduardo), intoxicam a articulação política e o filho vereador despacha para o pai quando este se ausenta. Ainda surpreende que tenham decidido se indispor com ninguém menos que o presidente da Câmara. Rodrigo Maia sugere que Jair saia do Twitter e governe. Explica que governar significa negociar e buscar voto. Nem Cunha falou assim com Dilma.

Com a ala militar hesitante, Moro encolhido e Guedes traído pelo boicote da dinastia bolsonara a sua reforma de estimação, quem sapateou nestes 100 dias foi mesmo a ala pré-moderna do governo. Segundo sua teoria da revolução, precisam do “povo” nas ruas para levar abaixo as instituições. Feita terra arrasada, governariam. Não desconfiam de que eles podem morrer no processo. A democracia vai antes.
Conrado Hübner Mendes

Jair Bolsonaro, o presidente aprendiz do Brasil

Uma das principais razões pelas quais Jair Bolsonaro venceu a eleição presidencial no ano passado foi o fato de prometer movimentar de novo a economia depois de quatro anos de recessão. Ao nomear Paulo Guedes, um defensor do livre mercado, como seu superministro da Economia, ele conquistou o apoio do mundo empresarial e financeiro. Muitos imaginavam que a chegada de Bolsonaro à Presidência por si só traria nova vida para a economia. Mas, depois de três meses, ela continua moribunda como sempre. Os investidores começam a perceber que Guedes tem uma árdua tarefa de conseguir aprovar no Congresso a reforma da Previdência, crucial para a saúde fiscal do Brasil. E o próprio Bolsonaro não vem colaborando.

O déficit fiscal de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) tem um enorme peso sobre a economia, significando que os juros para os tomadores de empréstimo privados serão mais altos do que seriam do contrário. As pensões respondem por um terço do total das despesas públicas e são uma das razões pelas quais o Estado gasta pouco na infraestrutura fragilizada. O projeto de reforma do governo enviado ao Congresso no mês passado estabelece uma idade mínima para a aposentadoria, eleva as contribuições e preenche lacunas, com uma previsão de economias de R$ 1,2 trilhão durante dez anos. O déficit da Previdência foi de R$ 241 bilhões no ano passado. A reforma da Previdência, por si só, não fará com que o Brasil retome um crescimento econômico robusto. Serão necessárias reformas fiscais e outras medidas para aumentar a competitividade. Mas ela se tornou um objeto sagrado.

Bolsonaro está numa situação privilegiada porque, depois de dois anos de debate público e político, a reforma da Previdência hoje é menos impopular do que antes. Mas não é necessariamente uma proposta que conquista votos. E Bolsonaro não faz campanha para isso. “Toda a discussão sobre a reforma da Previdência é algo que os brasileiros gostariam de não ter”, afirma Monica de Bolle, economista brasileira do Peterson Institute for Internacional Economics.

A aprovação, assim, exige liderança do topo. Que está ausente. Em sua campanha, Bolsonaro denunciou a “velha política” corrupta do “toma lá, dá cá” no Congresso. Mas ele não possui uma estratégia alternativa para controlar o Legislativo. Entrou desnecessariamente em confronto com alguns aliados, incluindo Rodrigo Maia, o poderoso presidente da Câmara. O padrasto da mulher de Maia, Wellington Moreira Franco, um ex-ministro, foi preso em 21 de março junto com o ex-presidente Michel Temer, por suspeitas de suborno, o que ambos negam. O que levou a comentários feitos pelos filhos de Bolsonaro, que são assessores próximos do presidente, e que Maia considerou como um ataque pessoal. Sua resposta foi que ele não marcaria votações sobre a reforma da Previdência para um governo que chamou de “deserto de ideias”. As autoridades esta semana tentaram apaziguar Maia. Mas a reforma da Previdência deve sofrer atrasos e diluição.

O grande problema é que Bolsonaro ainda tem de mostrar que entende a sua nova função. Ele dissipou capital político, por exemplo, exortando as Forças Armadas a comemorarem o aniversário em 31 de março do golpe militar de 1964. Seu governo é de uma “confusão monumental”, afirmou Claudio Couto, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). À parte a sua equipe econômica, seu governo é uma coleção de generais aposentados, políticos de médio escalão, protestantes evangélicos, um filósofo antes obscuro chamado Olavo de Carvalho. “Ninguém sabe para onde ele vai, qual o curso que está tomando”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Ele avança, depois recua, o tempo todo.”

Se o governo tem um elemento-chave, trata-se do general Hamilton Mourão, o vice-presidente, que tem tentado impor alguma disciplina política. Mas, com frequência, entra em atrito com a família Bolsonaro. Olavo de Carvalho o chamou de “idiota” e afirmou que, se as coisas continuarem como estão por mais seis meses, “tudo estará acabado”.

Embora de modo diferente, outros começam a pensar o mesmo. E ainda por cima, estão surgindo evidências de que a família Bolsonaro está ligada a membros de um grupo criminoso de ex-policiais do Rio de Janeiro acusado do assassinato da ativista Marielle Franco, o que eles negam.

Dois dos quatro presidentes eleitos anteriormente no Brasil sofreram impeachment porque, como afirmou Fernando Henrique Cardoso, “não foram mais capazes de governar”. Por mais que odeiem Bolsonaro, os democratas não devem desejar que ele não chegue ao fim do seu mandato. Ainda é o início. Mas sua Presidência já enfrenta um teste crucial. “Temos duas alternativas”, disse seu porta-voz esta semana. “Aprovar a reforma da Previdência ou afundarmos num poço sem fundo.” Se o seu chefe pelo menos fosse assim claro.

Imagem do Dia

Havana, Magí Puig

O valor de 'pi'

Uma notícia de jornal trouxe-me à memória um fantasma da adolescência: “pi”. “Pi”, para quem não sabe, tem a ver com matemática. É a resultante da razão entre a circunferência e o diâmetro de um círculo. Não sei o que isso significa —apenas copiei a descrição do jornal. Durante toda a vida escolar, fui atormentado por “pi”. Quando o professor tirava o giz do bolso do guarda-pó, enchia o quadro com números e falava em “pi”, eu já sabia que aquilo logo me renderia um zero.

“Pi”, com esse nome de esquilo de desenho animado, é um desafio para os matemáticos. Desde o grego Arquimedes, eles vêm travando sangrentas batalhas entre si, fazendo cálculos para determinar o valor do bicho. Um “pi” simples vale 3,14 —não me pergunte de quê. Mas, há milênios, esse número tem sido acrescido de decimais, a tal ponto que, pelos cálculos do suíço Peter Trüb, em 2016, “pi” já estava em 22,4 trilhões de dígitos —nem a inflação na Venezuela chegou a tanto. Agora, a japonesa Emma Haruka Iwao acaba de estabelecer um novo valor: 31,4 trilhões de dígitos.

E como ela chegou a isto? Operando, durante 121 dias, 25 computadores, que processaram 170 terabytes de dados. Um terabyte, para se ter ideia, armazena 200 mil músicas. Pois tente imaginar 31,4 trilhões de dígitos.

Devíamos chamar Emma ao Brasil. Só ela, usando sua intimidade com “pi”, poderia ajudar a Lava Jato a calcular o total de dinheiro movimentado pela corrupção nos últimos 30 anos, envolvendo governantes, burocratas, empresários, políticos e partidos. Deve estar em níveis de "pi”.

Quando nos damos conta da naturalidade com que temos ouvido falar em milhões ou bilhões de reais roubados, e não distinguimos mais uns dos outros, é porque já nos tornamos cínicos ou indiferentes. E por que não? Afinal, como disse o juiz Ivan Athiê, aquele que soltou Michel Temer outro dia, “propina não é crime —é gorjeta”.

Ruy Castro

Bolsonaro não deve dizer 'desta água não beberei', o segredo é ferver antes

O vocábulo governabilidade tornou-se uma assombração para Jair Bolsonaro. Nos seus pesadelos, hienas, aves de rapina, abutres, roedores e raposas da política se juntam para apoiar o seu governo. Depois, mandam pendurar uma tabuleta na porta:"Base Aliada". Para o capitão, já ficou demonstrado que esse tipo de arranjo passou a dar cadeia no Brasil. Daí dizer que não lhe passa pela cabeça desperdiçar os seus dias jogando dominó com Lula e Temer atrás das grades.

Resta responder: como governar? Ao atravessar na traqueia de Paulo Guedes as emendas de bancada impositivas, a banda fisiológica da Câmara exibiu sua musculatura. Com seus interesses maldisfarçados atrás do apoio a Rodrigo Maia na troca de caneladas do presidente da Câmara com a família Bolsonaro, a turma do balcão está assanhada. Respira-se em certas bancadas uma atmosfera conhecida.

Os partidos pedem, eles reivindicam, eles exigem. Desatendidos, eles adotam a velha tática do "levanta-que-eu-corto". Recusando-se a saciar os apetites, Bolsonaro receberá novos trocos. Quando o capitão der por si, os votos do centrão estarão gritando "NÃO" no painel eletrônico da Câmara, quiçá do Senado. Vem aí a votação da medida provisória que reestruturou o organograma do governo. Ela se presta às piores maldades. Por exemplo: a redução do número de ministérios de 22 para 15.

Não é que Bolsonaro esteja se recusando a encostar o estômago no balcão. O problema é que a mercadoria que ele ofereceu —um conta-gotas de emendas orçamentárias e cargos federais mixurucas nos Estados— não saciou os apetites de hienas, aves de rapina, abutres, roedores e raposas. A fome aumenta na proporção direta da diminuição dos índices de popularidade do presidente.

Para complicar, Bolsonaro não é visto no zoológico como avis rara. Ao contrário. Os ministros suspeitos, o laranjal do PSL, as encrencas do primogênito Flávio Bolsonaro e o cheque do ex-faz-tudo Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro levam a ala gulosa do Legislativo a chamar o presidente de "um dos nossos".

Num cenário assim, ou Bolsonaro negocia ou a reforma da Previdência pode virar suco. A história recente demonstra que ignorar o pedaço fisiológico do Congresso pode não ser um bom negócio. Bem alimentada, essa turma fornece estabilidade congressual. Submetida a dietas forçadas, desestabiliza o que vê pela frente. Dilma Rousseff, como Bolsonaro, fez cara de nojo. Caiu. Michel Temer entregou todas as vantagens que o déficit público pode pagar. E sobreviveu a duas denúncias criminais.

Nesta quinta-feira, Bolsonaro tratou como "chuva de verão" seu arranca-rabo com Maia. "O sol está lindo. O Brasil está acima de nós. Da minha parte não há problema nenhum. É página virada." As palavras do presidente foram recebidas pelos líderes partidários não como um armistício, mas como conversa fiada. Os 28 anos de mandato fizeram de Bolsonaro um personagem manjado na Câmara. Ali, sabe-se que o capitão costuma virar a página para trás. Prefere os temporais às chuvas de verão. Avalia-se que Bolsonaro não demora a disparar novos raios que os partam.

Se quiser fugir da bifurcação que condena os presidentes à queda ou à cumplicidade, Bolsonaro terá de tentar uma terceira via. Precisa parar de dizer "desta água não beberei". O segredo está em ferver antes. As demandas que chegassem ao Planalto iriam para a chaleira. As que saíssem do processo purificadas seriam atendidas. Aquelas cujos germes sobrevivessem às altas temperaturas iriam para o esgoto, com escala no noticiário policial.

Estilo democrático de ser

"Nunca antes neste país" pode ser uma frase surrada da velha política, mas temos aí é uma ordem autocrática com aparência democrática. A massa de cidadãos despossuídos, sem lideranças capacitadas, consagrou um líder de estatura mediana, orientado por gurus de meia-confecção. Não é de estranhar que seus melhores quadros provenham das Forças Armadas
Carlos Guilherme Mota

Que tal comemorar 'o dia seguinte', o 1º de abril?

Já que a ordem do dia é comemorar, que tal “o dia seguinte”, o 1º de abril? É uma data simpática, que não rende trocas de farpas, que não divide ainda mais uma sociedade alquebrada e não remexe em feridas. Não traz à tona lembranças dolorosas, torturas, prisões, desaparecimentos, exílios, censura e medo.


A mentira está em voga, no mundo da notícia virou fake news. Deixa de ser inofensiva quando frauda eleições. Ou quando estraga reputações privadas e públicas. O 1º de abril é uma data de chiste, um dia de gracejos, de pegadinhas. Quem cai na mentira é chamado de bobo. Diante dos 55 anos do 31 de março, que o Brasil recorda por fidelidade à História e para não repetir erros trágicos, preferi jogar luz sobre o desprezado dia seguinte para dizer: “Não somos bobos”.

O 1º de abril veio da França e da Inglaterra, segundo alguns historiadores. A brincadeira surgiu no início do século XVI, quando a virada do ano chegou a ser comemorada de 25 de março até o 1º de abril. O novo Ano Novo logo caiu em descrédito. Gozadores enviavam presentes esquisitos e convites para festas inexistentes a quem insistia em adiar o calendário para o “April Fools’”, o Dia dos Tolos.

O 1º de abril encontrou sua vocação universal. Virou piada. Não em Brasília, que ainda aguarda o início de 2019. Nem a ordem nem o progresso se instauraram nesse governo amador e atabalhoado, que mete os pés pelas mãos até em família e no próprio partido. Decisões estapafúrdias são anuladas, outras resistem.

No Brasil, a tradição da pegadinha teria começado em Minas Gerais: um periódico de vida breve, “A Mentira”, foi lançado a 1º de abril de 1848 com a notícia falsa da morte do imperador Dom Pedro II. Desmentiu a brincadeira. Tivemos constrangimentos notórios na imprensa. Um foi a história do boimate. Cruzamento do boi com tomate, publicado como pegadinha na revista britânica “New Scientist”, no April Fools’ de 1983. Tão absurdo que não poderia em sã consciência virar notícia. Mas virou verdade científica numa revista importante brasileira. Que se desculpou pelo “lastimável equívoco”.

Para não dizer que só falei de flores em momento pesado, queria lembrar, ainda com assombro, que o atual presidente foi eleito depois de tecer homenagem pública e apaixonada a um coronel torturador. O Brilhante Ustra, em nome de Deus. É surpresa que o capitão, bélico por formação, se curve submisso aos americanos e que deseje tornar feriado o 31 de março? Vai passar. O estandarte do sanatório geral vai passar.

Em 1964, eu era uma criança. Meu pai, bacharel em Direito, tinha alma militar. Foi lacerdista por convicção, me levava às inaugurações do Guandu, do Aterro do Flamengo. Foi janista por desespero, ouvíamos discos de varre, varre, vassourinha. Achava-se revolucionário e não golpista, por ódio ao comunismo, a tese que comprou por ingenuidade e autoritarismo.

Depois, diante da ditadura que exilou, torturou, censurou, esquartejou, enforcou e sumiu com corpos de universitários, jornalistas, intelectuais e até militares dissidentes, percebeu que o 31 de março — por acaso o dia de seu aniversário — estava muito mais próximo do Dia da Mentira do que ele imaginava. Como se sentiu tolo! Viva o 1º de abril.
Ruth de Aquino