sexta-feira, 29 de março de 2019

Que tal comemorar 'o dia seguinte', o 1º de abril?

Já que a ordem do dia é comemorar, que tal “o dia seguinte”, o 1º de abril? É uma data simpática, que não rende trocas de farpas, que não divide ainda mais uma sociedade alquebrada e não remexe em feridas. Não traz à tona lembranças dolorosas, torturas, prisões, desaparecimentos, exílios, censura e medo.


A mentira está em voga, no mundo da notícia virou fake news. Deixa de ser inofensiva quando frauda eleições. Ou quando estraga reputações privadas e públicas. O 1º de abril é uma data de chiste, um dia de gracejos, de pegadinhas. Quem cai na mentira é chamado de bobo. Diante dos 55 anos do 31 de março, que o Brasil recorda por fidelidade à História e para não repetir erros trágicos, preferi jogar luz sobre o desprezado dia seguinte para dizer: “Não somos bobos”.

O 1º de abril veio da França e da Inglaterra, segundo alguns historiadores. A brincadeira surgiu no início do século XVI, quando a virada do ano chegou a ser comemorada de 25 de março até o 1º de abril. O novo Ano Novo logo caiu em descrédito. Gozadores enviavam presentes esquisitos e convites para festas inexistentes a quem insistia em adiar o calendário para o “April Fools’”, o Dia dos Tolos.

O 1º de abril encontrou sua vocação universal. Virou piada. Não em Brasília, que ainda aguarda o início de 2019. Nem a ordem nem o progresso se instauraram nesse governo amador e atabalhoado, que mete os pés pelas mãos até em família e no próprio partido. Decisões estapafúrdias são anuladas, outras resistem.

No Brasil, a tradição da pegadinha teria começado em Minas Gerais: um periódico de vida breve, “A Mentira”, foi lançado a 1º de abril de 1848 com a notícia falsa da morte do imperador Dom Pedro II. Desmentiu a brincadeira. Tivemos constrangimentos notórios na imprensa. Um foi a história do boimate. Cruzamento do boi com tomate, publicado como pegadinha na revista britânica “New Scientist”, no April Fools’ de 1983. Tão absurdo que não poderia em sã consciência virar notícia. Mas virou verdade científica numa revista importante brasileira. Que se desculpou pelo “lastimável equívoco”.

Para não dizer que só falei de flores em momento pesado, queria lembrar, ainda com assombro, que o atual presidente foi eleito depois de tecer homenagem pública e apaixonada a um coronel torturador. O Brilhante Ustra, em nome de Deus. É surpresa que o capitão, bélico por formação, se curve submisso aos americanos e que deseje tornar feriado o 31 de março? Vai passar. O estandarte do sanatório geral vai passar.

Em 1964, eu era uma criança. Meu pai, bacharel em Direito, tinha alma militar. Foi lacerdista por convicção, me levava às inaugurações do Guandu, do Aterro do Flamengo. Foi janista por desespero, ouvíamos discos de varre, varre, vassourinha. Achava-se revolucionário e não golpista, por ódio ao comunismo, a tese que comprou por ingenuidade e autoritarismo.

Depois, diante da ditadura que exilou, torturou, censurou, esquartejou, enforcou e sumiu com corpos de universitários, jornalistas, intelectuais e até militares dissidentes, percebeu que o 31 de março — por acaso o dia de seu aniversário — estava muito mais próximo do Dia da Mentira do que ele imaginava. Como se sentiu tolo! Viva o 1º de abril.
Ruth de Aquino

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