quinta-feira, 4 de março de 2021

Pensamento do Dia

 

Becs (Argentina)

Bolsonaro em modo desespero

Crises às vezes transformam governantes medíocres em líderes. Em outras ocasiões, trituram aqueles que, por falta de sorte, noção ou sei lá o quê, vão parar no lugar errado na hora errada. Já deu para perceber que estamos mais próximos do segundo caso. Há uma inquietação geral, no governo, Congresso e arredores, em relação ao comportamento de Jair Bolsonaro nos próximos dias, quando o pior pode acontecer e o país entrar em colapso sanitário total, virando uma grande Manaus.

A situação já é, por si só, dramática. E chegamos a ela com uma considerável colaboração do presidente da República, que contagiou parte da população com seu negacionismo, rejeitando medidas de isolamento e até máscaras, ignorando a dor dos que perdem parentes e amigos, negligenciando nas providências mais óbvias de prevenção e atendimento, inclusive a compra de vacinas – que teria que ter começado a ser negociada muitos meses antes do que foi. Mas, mesmo quando achamos que as coisas não podem mais piorar, que mais de 1.800 mortos num dia só é o limite, elas pioram.

As próximas semanas serão, segundo os especialistas, as piores da pandemia. Rezemos para que estejam errados, mas até agora eles têm acertado. O que nos leva a temer não só por nossas vidas e as daqueles que amamos, mas também pelo país, presidido nesse momento pelo sujeito mais inadequado que se poderia imaginar, alguém absolutamente incapaz de ter empatia com o sofrimento, uma figura saída do pior dos pesadelos. O que fará Jair Bolsonaro?

O agravamento das últimas semanas, com alta galopante no número de mortes e contaminações, falta de UTIs, lentidão na vacinação, entre outros problemas, foi recebido pelo presidente da República com a aparente insensibilidade de sempre. Mas Bolsonaro, como aquele sujeito que briga com a mulher e sai chutando o cachorro, passou a um ativismo tresloucado, talvez na esperança de desviar o foco – como se alguém em sã consciência pudesse desviar o foco da morte. Além de culpar a mídia pelo “pânico”, o presidente acirrou o conflito com os governadores, demitiu o presidente da Petrobras, zerou os impostos sobre o diesel, aumentou os impostos dos bancos, resolveu privatizar de supetão a Eletrobras e os Correios.

O que mais fará Jair Bolsonaro, que investiu com um discurso pesado contra os governadores que retomaram medidas de isolamento e lockdown? Sentindo-se acuado e atropelado, recorrerá a algum drible na Constituição e na lei, como a decretação imotivada de estado de emergência ou de sítio? Vai pedir aos caminhoneiros amigos para que, sim, façam greve para acirrar os ânimos ou atrapalhar a vida de governadores adversários? Vai chamar os militares para cercar alguém? Eles provavelmente não irão, se a missão os afastar da Carta. Mas, e se?

Não conseguimos imaginar como ele, candidato à reeleição, vendo sua popularidade sangrar, irá reagir. Mas o presidente já entrou claramente no modo desespero. Sabe-se que há uma turma, no Planalto, tentando acalmá-lo. Vai? O que não se pode esquecer é que um chefe de Estado e de governo, no presidencialismo, tem poderes imensos, uma caneta que, tresloucada, pode trazer muitos prejuízos à política, à economia, à democracia.

Atravessando a rua, chega-se ao Congresso, que, mesmo sob nova direção, tem um papel a cumprir nesse roteiro. É possível que, como ocorreu na fase 1 da pandemia, com a Câmara de Rodrigo Maia e o Senado de Davi Alcolumbre, o Legislativo torne-se o protagonista de medidas importantes no combate à pandemia. No outro canto da Praça, também o STF, com decisões sobre vacinas, ações do Ministério da Saúde e isolamento, deve seguir na mesma toada.

O importante agora, porém, é que, diante do modo desespero, Legislativo e STF, vigilantes, estejam prontos a exercer com firmeza aquele papel constitucional que lhes cabe no sistema de “freios e contrapesos” da democracia representativa.

'Piada' macabra

Enquanto seres humanos puderem contemplar sentados, de braços cruzados, à tortura e morte de seus irmãos, a civilização não passará de uma triste piada 
Henry Milller, "O colosso de Marússia"

Mortes, recessão e desemprego

As notícias não são boas, porque a recessão, o desemprego e as mortes por covid-19 avançam. Mesmo assim, o presidente Jair Bolsonaro vive num mundo só dele, que talvez não seja compartilhado nem pela maioria de seus seguidores, cujo negacionismo em meio à crise sanitária não chega a ponto de se recusar a tomar uma vacina. Em vez de liderar o combate à pandemia, Bolsonaro ataca governadores e prefeitos que tentam conter sua expansão. “Criaram pânico, né? O problema está aí, lamentamos. Mas você não pode entrar em pânico. Que nem a política, de novo, do ‘fique em casa’. O pessoal vai morrer de fome, de depressão?” — disse Bolsonaro, ontem, a apoiadores, em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília.

Como sempre acontece quando se vê diante de dificuldades, o presidente terceiriza responsabilidades e se faz de vítima: “Para a mídia, o vírus sou eu”. Ontem, o Brasil registrou 1.910 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas, um novo recorde desde o início da pandemia, e mais 71.704 novos casos, segundo informou o Ministério da Saúde. O número de óbitos pela doença chegou a 259,2 mil, e o total de casos aumentou para 10,718 milhões. O cenário é de colapso iminente do Sistema Único de Saúde (SUS) na maioria dos estados. Em Santa Catarina, por exemplo, dezenas de pessoas morreram por falta de UTI; casos graves estão sendo transferidos para o Espírito Santo.


A transmissão da doença está sendo homogênea e mais rápida do que a vacinação; o estoque de contaminados aumenta exponencialmente, sem leitos suficientes nas UTIs para internação, inclusive na rede privada. Entretanto, a narrativa de Bolsonaro é obsessivamente eleitoral, responsabiliza governadores e prefeitos pela recessão e o desemprego, por causa das medidas de distanciamento social. Explora o senso comum das pessoas que querem manter seus empregos ou atividades produtivas como se não houvesse amanhã.

A causa da recessão e do desemprego em todo o mundo é a pandemia da covid-19, que somente pode ser combatida de forma eficaz e definitiva com a vacinação em massa da população. O negativismo de Bolsonaro em relação ao distanciamento social, à eficácia das vacinas e ao uso adequado de máscaras aumenta as dificuldades para combater o vírus, a recessão e o desemprego, porque tira do eixo de coordenação da política de saúde pública o Ministério da Saúde e estimula a população a reproduzir atitudes temerárias em relação ao vírus, como aglomerações, abraços e apertos de mão, sem o uso correto de máscaras.

Com 4,1% de recessão em 2020, o Brasil saiu do ranking das 10 maiores economias do mundo e caiu para a 12ª colocação, segundo levantamento da agência de classificação de risco Austin Rating. Em 2019, o Brasil ficou na nona posição. Fomos superados por Canadá, Coreia e Rússia. São raros os momentos da história em que o Brasil andou para trás. Mesmo durante a hiperinflação, no governo Sarney, todos os indicadores sociais melhoraram. Recentemente, isso somente ocorreu durante a recessão do governo Dilma Rousseff (PT), que foi afastada pelo impeachment.

Bolsonaro subestima o que está acontecendo. É uma fuga da realidade. Com base nas projeções do FMI para 2021, a Austin estima que o Brasil pode cair para a 14ª posição no ranking das maiores economias do mundo, sendo superado também por Austrália e Espanha, considerando um cenário otimista de alta de 3,3% do PIB brasileiro deste ano e uma taxa de câmbio média de R$ 5,24 por dólar.

A contrapartida para evitar um desastre maior na economia é a aprovação do auxílio emergencial, sobre cuja necessidade há um amplo consenso, mas existem muitas divergências quanto às condições em que isso pode ser feito. Ontem, em nota técnica, o Ministério da Economia alertou o Congresso Nacional de que a prorrogação do auxílio emergencial sem respeitar os limites fiscais “tem o potencial de deteriorar a trajetória inflacionária, reduzir a atividade econômica e aumentar o desemprego”. Entretanto, isso ‘e estimulado por Bolsonaro, cujas decisões intempestivas e intervencionistas na economia estão “fritando” o ministro Paulo Guedes, o que também agrava a crise.

A guerra perdida

Na noite da última 5ª feira o primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, aproveitou o início do feriado do Purim – festa judaica para celebrar a salvação dos judeus persas, descrita no livro de Ester – e contracenou com um humorista na televisão, combatendo fake news sobre vacinas. No mesmo dia Jair Bolsonaro fez uma live no sentido inverso, para combater o uso de máscaras como medida preventiva ao coronavirus. Os dois episódios ilustram porque Israel é um caso de sucesso na vacinação em massa e o Brasil é uma tragédia de proporções crescentes.

A existência de uma liderança positiva, capaz de unir o país em torno de um destino comum tem sido a diferença nas nações que começam a vencer a guerra contra a Covid-19. Nos Estados Unidos do governo de Joe Biden houve uma mudança da água para o vinho em relação à era Trump. Lá estão vacinando mais de dois milhões de pessoas por dia, o presidente incentivou o uso de máscara e colhe os resultados, com a queda expressiva das mortes por covid.

O mesmo acontece na Inglaterra de Boris Johnson. As mortes caíram 27% em uma semana, 28% dos ingleses já foram vacinados e em abril começam a vacinar as pessoas entre 40 a 49 anos.

Na Itália, esquerda e direita deixaram de lado suas diferenças. Formaram um governo de união nacional voltado para o combate à covid e para a reconstrução do país. Até a Liga, partido nacional-populista e eurocético, aderiu ao governo do novo primeiro ministro, Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu, carinhosamente chamado de Super Mário pelos italianos.

No Brasil, o presidente é uma liderança negativa e desagregadora que guerreia contra tudo e todos, menos contra o coronavirus. Guerreia contra as máscaras, contra o distanciamento social, contra a vacina. Guerreia com governadores e secretários de Saúde, contra a verdade e contra a saúde dos brasileiros.

Não é de estranhar, portanto, que enquanto em grande parte do mundo as mortes e os casos de infecção recuam, no Brasil disparam. Ontem o país teve novo recorde de mortos, 1.726, e bateu o recorde de média móvel de óbitos pelo quarto dia consecutivo. Nesta 4° feira completaremos 42 dias seguidos perdendo mais de 1.000 brasileiros a cada dia. Antes do final de março podemos chegar a dois mil por dia.

Tivéssemos uma liderança capaz de promover a coesão nacional, o Brasil estaria agora tomando as medidas necessárias para evitar que as pessoas morram como moscas no que deve ser o pior março de nossas vidas.

Secretários de Saúde clamam pelo toque de recolher em todo o território nacional e lockdown onde a ocupação de leitos de UTIs chegue a 85%. O mesmo defendem ex- ministros da Saúde de diferentes governos, como José Serra, Alexandre Padilha, José Gomes Temporão e Luiz Henrique Mandetta. Todos são unânimes quanto à necessidade de medidas drásticas durante duas ou três semanas para evitar o colapso total neste mês.

Mas elas não virão pelas mãos de Jair Bolsonaro porque isto seria admitir sua contundente derrota. Líderes populistas não são dados a tomar medidas duras quando elas podem afetar a sua popularidade.

O Brasil virou o epicentro da pandemia, preocupa o mundo inteiro e tem tudo para ultrapassar os Estados Unidos em número de mortos, se a condução do combate ao vírus continuar na mesma toada do negacionismo.

Na última audiência no Senado o ministro da Saúde apelou para as leis da guerra para evitar que o Parlamento cumpra seu papel investigativo com a instalação da CPI da pandemia. Segundo Eduardo Pazuello isto seria abrir uma nova frente de combate, algo equivalente ao erro de Hitler na Segunda Guerra Mundial, que travou, simultaneamente, a batalha nas frentes oriental e ocidental.

Convenientemente, Pazuello esqueceu-se de outros ensinamentos de guerra, entre eles o de concentrar o golpe na direção principal. No caso da pandemia, no coronavírus e na vacinação em massa. Nesse terreno, sua gestão já fracassou. O Brasil tem vacinado em média pouco mais de cem mil pessoas por dia.

Nas guerras, comandantes que cometem graves erros são destituídos, quando não enfrentam corte marcial. Que general continuaria no comando tendo sérias responsabilidades pela morte de 250 mil soldados?

No Brasil de Bolsonaro, Pazuello continua impávido no cargo. Pode morrer um milhão de brasileiros e ele continuará ministro. Basta obedecer cega e servilmente ao presidente.

Com eles, a guerra está perdida. A única maneira de evitar a derrota total é o Parlamento “parar esse cara”, como prega o senador Tasso Jereissati.

Imagem (nova) do Brasil

 


Quem assiste à própria morte sem reagir não merece viver

O que pretende Jair Bolsonaro ao aconselhar os brasileiros a desprezarem o uso de máscaras contra a Covid? Por que defende que morram os que tiverem de morrer desde que a economia seja salva? Por que cita como estudo de uma universidade alemã o que se trata de resultados de uma enquete feita nas redes 

Por que mantém no comando do Ministério da Saúde um general que nada entende do assunto e que se cercou de militares tão ignorantes quanto ele? Quando governadores acenam com medidas rigorosas de isolamento, por que Bolsonaro os combate com a firmeza que nunca demonstrou no combate ao vírus?

Se não bastasse, por que ele sabota a compra de vacinas e repete que a eficácia delas é duvidosa e que jamais será imunizado? Já se passaram datas emblemáticas da pandemia como as que marcaram as primeiras 50 mil mortes, 100 mil e 200 mil. Esperou-se pelo menos uma manifestação de tristeza dele. Não houve.


É impossível que ele não saiba que o uso de máscaras, o isolamento e a vacinação é a receita que deu certo nos demais países do mundo afetados pela doença. É impossível que não saiba que para salvar a economia é preciso salvar vidas também. Quanto mais o vírus aja sem ser barrado, mais a economia afunda.

Então por que Bolsonaro escolheu associar-se à Covid na devastação que ela provoca no Brasil? O sistema público de saúde colapsou em diversos Estados. O privado, idem Em média, nos últimos 7 dias, morreram 1.180 pessoas, elevando o total de mortos para 254.263 desde março último, e de casos para 10,5 milhões.

O que o presidente da República tem contra o povo que o elegeu e que parece capaz de reelegê-lo apesar do seu comportamento assassino? Por que deliberadamente tornou-se o apóstolo da morte? Por que os demais poderes assistem a tudo sem esboçar uma forte reação? Afinal, por que toleramos o intolerável?

Que tipo de povo é o brasileiro que compactua inerte com tudo isso?

Sem respostas para o futuro

Ando sem estrutura emocional para enfrentar o Twitter. Cada vez que entro passo raiva. Esta semana, por exemplo: 

“Onde houver consenso, Bolsonaro estará fora. Vacina salva vidas, Bolsonaro ataca. Máscara previne? Ele tripudia. Isolamento evita o contágio? Bolsonaro vai pra rua. SUS colapsado? Bolsonaro debocha. No curto prazo pode até funcionar para ele manter a base de radicais unida. No longo, é certeza de colapso.” 

Isso foi no domingo. 

“Bolsonaro inaugurou o governo do cada um por si. Estados e municípios que se virem e comprem vacina; doentes que se virem pra achar vaga em UTI; investidores que se virem com as intervenções do governo; o país que se vire para vencer a pandemia.” 

Isso, anteontem. 

Dois ótimos tuítes, que qualquer pessoa sensata compartilharia sem restrições... desde que não soubesse que foram assinados pelo único homem que, durante dois anos, teve o poder real de fazer alguma coisa para livrar o Brasil de Bolsonaro, mas não fez: Rodrigo Maia. 

Descobrir quem é Bolsonaro agora é muito pouco e muito tarde, deputado. Há mais de 60 pedidos de impeachment fechados numa gaveta da sua biografia. 


A derrota política de um país não acontece só por causa dos seus governos, mas também (e talvez sobretudo) por causa das suas oposições, porque cabe a elas denunciar erros, cobrar competência e oferecer alternativas reais ao eleitor. 

Uma oposição digna do nome enfrenta o poder; uma oposição responsável é comprometida com o país, e não com os seus eventuais líderes.

Ao definir Ciro como “candidato de direita”, o ex-prefeito Fernando Haddad mostra bem de que lado está.

A esquerda liderada pelo PT está ansiosa para repetir o catastrófico desempenho de 2018, jogando todo mundo que não é subserviente a Lula no mesmo monturo. 

Bando de lemingues. 

Não aprendem nada, nunca. 

Que país desesperador. 

Eu escrevi lá no início que ando sem estrutura emocional para enfrentar o Twitter, mas a verdade é que ando sem estrutura emocional para enfrentar o Brasil. 

Quando Flávio Bolsonaro gasta R$ 6 milhões numa mansão incompatível com os seus ganhos, no momento mais crítico da nossa História recente, não está apenas comprando uma casa. Está mandando um recado para a sociedade, mostrando como a sua família se julga inatingível e inimputável. 

E, pelo que se viu até agora, é mesmo. 

Daqui a dois dias ninguém mais vai falar no assunto, e mais um “gênio das finanças” seguirá sossegado em sua trajetória milionária. 

Um dia o futuro vai olhar para nós e perguntar como foi que, durante a maior crise sanitária de todos os tempos, deixamos na presidência do país um homem que se aliou ao vírus e cortejou a morte. 

Como foi que aceitamos os seus disparates dia após dia, enquanto morríamos como moscas, e não fizemos nada? 

Colapso no sistema de saúde, falta de vacinas, hospitais recorrendo a contêineres frigoríficos para receber mortos — e uma população sem reação diante das suas falas obtusas, da sua falta de compaixão, dos seus rompantes de asno perverso. 

Os que estivermos vivos vamos olhar nos olhos do futuro e para dentro de nós mesmos, e não vamos encontrar resposta. 

Largados e pelados diante de gente tão perversa quanto estúpida

A perversidade dos políticos brasileiros, que continuamente nos estapeia o rosto, deu-me também um soco no estômago nesta semana. A funcionária da empresa de limpeza que serve a nossa redação em São Paulo, Adriana, sumiu durante um dia inteiro. Não avisou porque havia faltado nem conseguíamos falar com ela. A suposição lógica é que poderia estar com Covid. Ficou acertado que, se não tivéssemos notícia no dia seguinte, tentaríamos contatar a sua família.

Felizmente, ela não estava doente. Quando a encontrei na redação, perguntei-lhe o que havia acontecido. Ela disse que o pai de 64 anos havia sido internado e intubado. A doença o pegara. “Não é só uma gripe, não”, ouvi. Fiquei surpreso. Imaginei que, diante de todos os protocolos de segurança que adotamos, ela já estivesse ciente da gravidade da situação. Indaguei, então, se ela havia encontrado o pai recentemente, porque isso a obrigaria a fazer quarentena. “Não, seu Mario, ele até ia ver muito a gente quando o ônibus era gratuito para ele, mas depois que suspenderam, faz tempo que a gente não se vê. Ontem, tentei ver no hospital, não deixaram. Ele vai ficar uns 20 dias lá, né?”


O soco de realidade pegou forte: ali estava uma brasileira humilde que acreditara na enormidade dita e repetida por Jair Bolsonaro e seu bando de que a Covid não passa de uma gripezinha. Ali estava uma brasileira humilde cujo pai de 64 anos sofrera com a decisão do prefeito Bruno Covas, criatura de João Doria, de suspender a gratuidade do transporte coletivo em São Paulo para idosos entre 60 e 65 anos, para atender à voracidade dos donos das empresas de ônibus que maltratam a população com um serviço de péssima qualidade.

Se alguém aí disser que sou “socialista fabiano”, saiba que o que vemos no Brasil nada tem a ver com racionalidade e capitalismo. É só o aguçamento da perversidade que nos castiga desde sempre, sob governos alegadamente de esquerda, direita ou centro. Não existe ideologia no país. Existe ferocidade. Existe ignorância. Existe cupidez. Existe crueldade. Perversidade que nunca usou máscara.

Ontem, quando foi batido o recorde de mortes diárias por Covid, Bolsonaro lambuzava-se com leitão, em almoço com outros cretinos, enquanto a falta de direção levava governadores mais uma vez a bater cabeça sobre o que fazer diante do agravamento da pandemia, mais preocupados com as consequências eleitorais de um lockdown de verdade do que propriamente com a sobrevivência dos pobres. Os grandes empresários ausentaram-se da cena, depois de conseguir publicidade com ações de benemerência no início da pandemia. Não entenderam ainda que a imunização em massa é a única saída econômica e que se trata de coisa séria demais para ficar na mão dos políticos. Ministros do Supremo concentram-se em usar mensagens roubadas por hackers para destruir uma das poucas coisas boas que conseguimos ter nos últimos anos — e, assim, garantir que tudo continue como sempre foi, com ou sem pandemia. Nas nossas vidas individuais, não sabemos mais o que fazer: tranco o meu filho de 15 anos em casa, em outro ano de solidão e sedentarismo completos? A escola vai continuar com as poucas aulas presenciais? Cadê a vacina?

Com exceção de Israel, Reino Unido e Estados Unidos, onde a vacinação avança velozmente, o descalabro é geral. Na França, Alemanha e Itália, por exemplo, milhões de vacinas ainda não foram aplicadas por causa de desorganização, entraves burocráticos e resistência da população aos imunizantes. A desorganização e a ignorância não são monopólios brasileiros, mas os nossos risonhos lindos campos têm mais flores do mal, e elas não fenecem. Enquanto os outros entrarão nos trilhos mais rápido, deixando os campos devastados para trás, não há perspectiva de que isso venha a ocorrer ainda este ano no Brasil. Nem trilhos temos. Estamos largados e pelados, nas mãos de gente atavicamente tão perversa quanto estúpida. Resta esperar que os Estados Unidos consigam mesmo atingir a imunidade de rebanho no meio do ano, para que possam exportar e doar as vacinas que financiaram e produziram para estes e demais tristes trópicos. Confiemos na Sétima Cavalaria.

Não, não é uma gripe, Adriana, e lhe dedico este desabafo que você não sabe que poderia fazer.

Cemitério na cabeça

Se eu tiver poder para decidir, eu tenho o meu programa e o meu projeto prontos para botar em prática no Brasil. Preciso ter autoridade. Se o Supremo Tribunal Federal achar que pode dar o devido comando dessa causa a um poder central, que eu entendo ser legitimamente meu, eu estou pronto para botar meu plano
Jair Bolsonaro

A covid-19 está sob o controle de Bolsonaro

Afirmar que a covid-19 está fora de controle no Brasil por incompetência de Jair Bolsonaro é um erro. É o mesmo erro de chamar o Governo de Bolsonaro de “desgoverno”. Bolsonaro governa e a disseminação da covid-19 está, em grande parte, sob o seu controle. Se o que vive o Brasil é caos, é um caos planejado. É necessário compreender a diferença para ter alguma chance de enfrentar a política de morte de Bolsonaro. Se existe alguma experiência semelhante na história, eu a desconheço. No Brasil, certamente nunca aconteceu antes. Estamos subjugados a um experimento, como cobaias humanas. A premissa da pesquisa desenvolvida no laboratório de perversão de Bolsonaro é: o que acontece quando, durante uma pandemia, uma população é deixada exposta ao vírus e a maior autoridade do país dá informações falsas, se recusa a adotar as normas sanitárias e também a tomar as medidas que poderiam reduzir a contaminação.

O resultado, em perdas de vidas humanas, conhecemos: o Brasil ultrapassará os 260.000 mortos até o final dessa semana e aumenta velozmente suas chances de se tornar em breve o país com o maior número de vítimas fatais da história da pandemia de covid-19 no século 21. Enquanto vários países do mundo terão sua população inteiramente vacinada nos próximos meses e começam a vislumbrar a possibilidade de superar a covid-19, o Brasil enfrenta uma escalada.

Em 2020, Estados Unidos e Reino Unido se alinhavam ao lado do Brasil entre os piores desempenhos relacionados à covid-19. Hoje, com o democrata Joe Biden na presidência, os Estados Unidos dão sinais de que vão deixar essa posição em breve e o Reino Unido do direitista Boris Johnson dá exemplo na campanha de vacinação, com o número de mortes baixando dia a dia.

O Brasil se isola no horror da covid-19, como contraexemplo e pária global. Dados da Organização Mundial da Saúde mostram que, enquanto a média de mortes no mundo recua em torno de 6%, no Brasil cresce 11%. Essa consequência é mais visível. Afinal, nesse crime há corpos, nesse momento em número suficiente para povoar somente com cadáveres uma cidade de porte médio. E crescendo à média atual de quase 1.300 mortos por dia.

Outro efeito é menos óbvio: o que descobrimos sobre nós, como sociedade, quando submetidos a essa violência, e o que cada um descobre sobre si quando as escolhas sanitárias, em vez de determinadas pela autoridade de saúde pública, dependem da sua própria decisão. Essa segunda parte do experimento tem se demonstrado bastante perturbadora e poderá minar os laços sociais ao longo de anos e até décadas, como aconteceu com países submetidos à perversão de Estado no passado.

Seguir alegando incompetência do governo Bolsonaro na condução da covid-19 ou é sintoma ou é má fé. Sintoma porque, para uma parte da população, pode ser demasiado assustador aceitar a realidade de que o presidente escolheu disseminar o vírus. A mente encontra um caminho de negação para que a pessoa não colapse. É um processo semelhante ao sequestrado que encontra pontos de empatia com o sequestrador para ser capaz de sobreviver ao horror de estar totalmente a mercê da vontade absoluta de um perverso.

Já má fé é compreender o que está acontecendo e, mesmo assim, seguir negando porque convém aos seus interesses, sejam eles quais forem. A pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e da Conectas Direitos Humanos provou que o governo federal executou um plano de disseminação do vírus. A análise de 3.049 normas federais mostrou que Bolsonaro e seus ministros tinham —e ainda têm— o objetivo de infectar o maior número de pessoas, o mais rapidamente possível, para a retomada total das atividades econômicas.

As provas estão lá, em documentos assinados pelo presidente e por alguns de seus ministros. O estudo comprova o que qualquer pessoa com capacidade cognitiva média pode verificar no seu cotidiano, a partir dos atos e das falas do presidente. A ação deliberada de disseminação do vírus não é apenas uma percepção, é também um fato. O que faltava era a documentação do fato, já que não basta perceber, é preciso demonstrar e documentar. E hoje está documentado e essa documentação tem se tornado base para novos pedidos de impeachment e comunicações no Tribunal Penal Internacional.

Em carta pública, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde reivindicou nessa semana a determinação de um toque de recolher para todo o território brasileiro e o fechamento de bares e praias, entre outras medidas. Os secretários afirmaram que o país vive o pior momento da pandemia e exigiram “condução nacional unificada e coerente”. Também pediram a suspensão das aulas presenciais e de eventos, incluindo atividades religiosas. “A ausência de uma condução nacional unificada e coerente dificultou a adoção e implementação de medidas qualificadas para reduzir as interações sociais”, declararam. “Entendemos que o conjunto de medidas propostas somente poderá ser executado pelos governadores e prefeitos se for estabelecido no Brasil um ‘Pacto Nacional pela Vida’ que reúna todos os poderes, a sociedade civil, representantes da indústria e do comércio, das grandes instituições religiosas e acadêmicas do País, mediante explícita autorização e determinação legislativa do Congresso Nacional”. Bolsonaro, porém, obviamente não quer. E, como a imprensa noticiou, seus subordinados, muitos deles generais de quatro estrelas, avisaram que não fará.

Bolsonaro se recusa. Porque há condução do governo e seus atos estão focados na disseminação do vírus. Esse é o equívoco de quem acredita que é necessário convencer Bolsonaro a liderar um pacto nacional pela vida. Ele já executa um pacto nacional, mas pela morte, e não estou usando uma metáfora. Ele já fez várias declarações públicas e explícitas para que o povo deixe de ser “maricas”, afinal “mortes acontecem”, “todos nós morreremos um dia” e “toca o barco”. Por isso, mesmo no pior momento da pandemia, o presidente segue fiel e dedicado à sua política, estimulando aglomerações e comércio aberto, além de atacar o uso de máscaras.

Em Porto Alegre, um de seus apoiadores, o prefeito Sebastião Melo (MDB), ecoa o chefe: “Contribua com sua família, sua cidade, sua vida, para que a gente salve a economia do município de Porto Alegre”. Percebam que estamos diante de uma completa inversão: ao longo da história, autoridades públicas das mais variadas geografias e línguas pediram sacrifícios econômicos para salvar vidas. O bolsonarismo inverteu essa lógica: exige o sacrifício da vida —dos outros, bem entendido— para salvar a economia. E assim o Brasil de Bolsonaro e do sacrifício da vida supostamente em nome da economia exibiu em 2020 o pior PIB dos últimos 24 anos. Enquanto países que fizeram lockdown já começam sua recuperação também econômica, o Brasil descarrilha.

Diante da abundância de provas sobre a política de disseminação do vírus, é preciso olhar com atenção para aqueles que seguem apoiando Bolsonaro, em público ou nos bastidores. As razões para a má fé são várias, a depender do indivíduo e do grupo. Uma parte dessa entidade que chamam “mercado” ainda aposta que Bolsonaro seja capaz de continuar fazendo as “reformas” neoliberais que deseja que sejam feitas. Uma parte do que chamam de “agronegócio” também aposta na destruição da Amazônia para aumentar o estoque do mercado de terras para especulação e ampliar a fronteira agropecuária. O mesmo vale para a mineração.

Se é fato que uma parcela já recuou por conta do impacto cada vez maior do desmatamento na recusa de produtos brasileiros na Europa, parte espera que Bolsonaro consiga avançar com mais algumas maldades antes de retirar seu apoio, seja ele à luz do dia ou nas sombras. Só então se escandalizará ao subitamente descobrir a intenção de Bolsonaro de enfraquecer a legislação ambiental e abrir as terras indígenas para exploração predatória. Em algum momento, essas cândidas criaturas do mercado vão retirar seu apoio enojadas, em entrevistas ponderadas e pontuadas por jargões econômicos na imprensa liberal. Afinal, como poderiam esses inocentes imaginar que Bolsonaro não era um estadista, justo Bolsonaro, um homem tão elegante e contido? Para alguns, finalmente, ainda há algo a ganhar com Bolsonaro e Paulo Guedes e, para isso, não importa quantos morram, desde que os enterros não sejam na sua família ou no seu seleto clube de amigos.

O mesmo vale para algumas lideranças do pentecostalismo e do neopentecostalismo evangélico, que também ainda acreditam ter bastante a ganhar, mesmo que parte da sua base de fiéis morra de covid-19. O desespero crescente lhes trará outros clientes para compensar sua má fé. Como é claríssimo, os pastores de mercado apostam em manter seu poder agora e nas próximas eleições. Com o sistema hospitalar dando sinais de colapso, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), considerou cultos religiosos “atividades essenciais”. Para agradar aos pastores, que andavam publicamente reclamando de sua atuação, as aglomerações para o benefício da igreja-empresa estão permitidas.

O fervor pela ciência demonstrado por Doria, em nome do qual consolidou-se como o principal opositor de Bolsonaro no primeiro ano de pandemia, foi substituído pelo novo mote anunciado por ele na segunda-feira: “esperança, fé e oração”. Diante da pressão dos vendilhões dos templos e sua ameaça de retirar apoio na disputa presidencial, rifa-se mais uma vez a vida. E segue aquilo que consideram prioritário: a eleição presidencial de 2022. Afinal, há de sobrar um número suficiente de eleitores vivos até lá.

E o que dizer dos políticos, o Centrão puxando o cortejo de corruptos de bolso e de alma, mas longe de estar sozinho? Todas as violações de Bolsonaro não são suficientes para fazer andar a fila de mais de 70 pedidos de impeachment e sempre aumentando. Afinal, o que vale é garantir a impunidade dos próprios parlamentares, essa sim considerada emergencial por aqueles escolhidos para representar os interesses de uma população que hoje morre de covid-19.

Ainda que os fatos sejam conhecidos, é necessário enfileirá-los para compreender que essa é a realidade: há um presidente executando uma política de morte. Não é histrionismo, não é força de expressão, não é hipérbole. É a realidade e muito mais brasileiros morrerão por causa das ações de Bolsonaro.

Em 2021, a conjuntura do Brasil para enfrentar a política de morte de Bolsonaro é muito pior do que em 2020. E isso já se reflete no número de vítimas. Diante disso, nos deixaremos matar? Porque é basicamente essa a questão. Nesta quarta-feira, atingimos o maior número de mortos em um dia desde o início da pandemia: 1.910 pessoas, 1.910 pais, mãe, filhas, filhos, irmãos, irmãs, avôs, avós perdidos, 1.910 famílias despedaçadas. E isso num país com sistema público de saúde, centros de pesquisa respeitáveis e invejável capacidade de vacinação em massa.

O Congresso, que no primeiro ano da pandemia foi importante para estabelecer o auxílio emergencial de 600 reais e para derrubar os vetos mais monstruosos de Bolsonaro, como o de negar água potável aos indígenas, com Arthur Lira (PP) não fará nada para impedir nem as maldades nem o próprio Bolsonaro. Pelo contrário. O judiciário, com destaque para o Supremo Tribunal Federal, conseguiu barrar vários horrores desde o início da crise sanitária, mas nem de longe é suficiente para impedir a monstruosidade do que o Brasil enfrenta. Sem contar que há grande disputa ideológica dentro do judiciário.

O tal do mercado eventualmente em algum momento retirará seu apoio, caso Bolsonaro faça os setores mais poderosos do empresariado perder mais dinheiro do que ganhar, o que já está acontecendo em várias áreas. Mas não dá para contar com as elites econômicas que, se algum dia tiveram alguns expoentes genuinamente preocupados com o país, hoje claramente se lixam para a população. As elites intelectuais têm mostrado que estão pouco dispostas a fazer mais do que protestar em sua bolha como faz qualquer um nas redes sociais. É claro que há exceções em todas as áreas, mas a profunda crise do Brasil mostra que as elites brasileiras são ainda piores do que se supunha.

As periferias que reivindicam seu legítimo lugar de centro gritam: “é nós por nós”. E é. A questão, quando o “nós” é ampliado, é quem são o nós?

A complexidade do “nós” é que Bolsonaro foi eleito pela maioria dos que foram às urnas. Bolsonaro disse exatamente o que faria. E quem votou nele sabia exatamente quem ele era. E mesmo assim ele venceu, o que fala muito desse “nós”. Apesar de executar uma política de morte e converter o Brasil num pária do mundo, as pesquisas mostram que Bolsonaro ainda tem uma aprovação significativa. Caso a eleição fosse hoje, teria chance real de ser reeleito. Isso também fala do “nós”.



Talvez quem tenha melhor expressado o drama do “nós” seja o governador da Bahia, Rui Costa (PT). Ao ser entrevistado ao vivo pela TV Globo, ele chorou. Porque é difícil de entender o “nós”. E, diante do “nós”, a impotência aumenta. “É duro você receber mensagens com as pessoas perguntando: ‘E meu negócio? E a minha loja?’ O que é mais importante: 48 horas de uma loja funcionando ou vidas humanas?”, desabafou Costa. “Não gostaria de estar tomando decisões como esta. Gostaria que todas as pessoas estivessem usando máscaras. Mesmo aquelas que se consideram super-homens, se consideram jovens. Se não é por ele, pelo menos pela mãe, pelo pai, pela avó, pelo parente, pelo vizinho. Essas pessoas, sozinhas, decretaram o fim da pandemia.”

“Essas pessoas”, as quais o governador se refere, é o “nós”. É o “nós” que lotou as praias, é o “nós” que fez Carnaval, é o “nós” que faz festas, obrigando policiais a arriscarem sua vida para impedir que continuem, é o “nós” que resolveu reunir a família no Natal e os amigos no Réveillon, porque afinal de contas “ninguém aguenta mais”. É o “nós” que lota as igrejas porque sua fé, que precisa daquelas quatro paredes para existir, é mais importante do que a vida do seu irmão. É o “nós” que se acha mais esperto porque segue enchendo a cara nos bares com os parças. É o “nós” que anda sem máscara por todos os lugares. E é também o “nós” que já anunciou que tomar vacina é para otário.

Nessa altura, alguém pode dizer que esse nós não é “nós”, mas “eles”, o outro lado. Ouso dizer que, se a realidade fosse tão simples como “nós” e “eles”, Bolsonaro já teria sido submetido ao impeachment e já estaria sendo investigado pelo Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade. O “nós” é um nó. E vamos precisar desatá-lo para enfrentar a política de morte de Bolsonaro.

A parte mais perversa da execução do projeto de Bolsonaro é justamente revelar o bolsonarismo mesmo de quem odeia Bolsonaro. Essa é a parte mais demoníaca do experimento do qual somos todos cobaias. Sim, a orientação do presidente é matar e morrer: não use máscaras, aglomere-se, abra seu negócio, vá trabalhar, mande as crianças para a escola, use medicamentos sem eficácia, se tomar vacina pode virar jacaré. Diante do conjunto de orientações para disseminar o vírus, o que resta é cada um tomar decisões individuais que, poderia se esperar, contemplassem em primeiro lugar o bem-estar do outro, mais desprotegido, e o bem-estar coletivo, o do conjunto da comunidade.

Quando na segunda-feira o governador Rui Costa chorou, ao vivo, na TV, diante de milhões de telespectadores, é por sua incompreensão e impotência diante de gente que o ataca por ter que fechar seu negócio por 48 horas para que vidas possam ser salvas. Dois dias. Dois. No Reino Unido, por exemplo, as lojas, as academias, os salões de beleza, os cinemas, os bares e restaurantes etc estão fechados desde novembro e não é permitido ver outra pessoa que não more na mesma casa nem mesmo no parque. Os britânicos passaram o Natal, o Réveillon e os feriados sob essas normas. Uso o exemplo do Reino Unido porque Boris Johnson, o primeiro-ministro, não é um “esquerdopata”, mas um dos expoentes da safra de populistas de direita do mundo. E mesmo assim. Os britânicos podem reclamar, mas dentro de suas casas, porque essas são as regras e quem determina as regras numa pandemia são as autoridades sanitárias. Ponto final.

Bolsonaro também determina as regras sanitárias na pandemia. Mas, como já foi amplamente demonstrado, escolheu a disseminação do vírus. E então, para salvar a própria vida e não colocar a do outro em risco, cada um precisa estabelecer suas próprias regras sanitárias. É nessa volta do parafuso que o “nós” se complica. O “nós” então precisa responder a perguntas bem difíceis. Nós todos precisamos. O que o cotidiano está mostrando é que, eventualmente e às vezes até com frequência, “nós” também somos “eles”.

Lidamos muito mal com limites. Não há problema nenhum em ter limites quando não se perde nada ou quando se perde pouco. Mas, quando precisa perder algo que realmente custa, aí complica. A justificativa do “nós” para quebrar regras da Organização Mundial da Saúde é sempre legítima porque supostamente é em nome de um bem maior.

Nosso cérebro encontra as mais elevadas justificativas para recusar limites que nos obrigam a perder muito. E, quando confrontados, achamos que é o outro que não entende a conjuntura ou que está numa posição mais protegida para tomar decisões. O “nós”, quando pode, raramente se pergunta se deve. O “nós” sempre tem melhores justificativas do que o “eles” para fazer o que quer e o que acha importante. E que muitas vezes é mesmo muito importante. Mas, atenção, estamos numa pandemia que já matou quase 260 mil pessoas no Brasil e mais de 2,5 milhões no mundo. O aumento da contaminação significa não apenas mortes, mas novas mutações do vírus que podem ser imunes às vacinas existentes e comprometer as medidas globais de enfrentamento do vírus.

Quando se toma uma decisão numa pandemia nunca é apenas sobre a nossa própria vida. Só quem quer disseminar a morte, como Bolsonaro, diz que cada um tem o direito de fazer o que quer porque se trata apenas de si. Quando o presidente declara que não tomará vacina porque essa decisão supostamente só diria respeito a ele, Bolsonaro faz esse anúncio exatamente porque tem certeza do contrário. Ele sabe que essa declaração vai muito além da sua própria vida. Qualquer decisão numa pandemia vai impactar muito além da vida de qualquer um. Se é um presidente, autoridade pública máxima, torna-se uma orientação à população.

É muito difícil lutar contra o governo federal, que tem a máquina do Estado na mão e a capacidade de amplificar suas orientações a toda a população. É imensamente mais difícil lutar contra um presidente da República em meio a uma crise sanitária. Em vez de seguirmos normas federais que protegem a todos os brasileiros e especialmente os mais vulneráveis, normas determinadas pelo Estado, fomos submetidos a ter que tomar nossas próprias decisões sanitárias e, ao mesmo tempo, sermos atropelados pelas dos outros.

Há quem não esteja nem aí, claro que há. Mas há muitos que querem tomar as melhores decisões e realmente acreditam que tomam, mas não são sanitaristas, não foram formados para ser, não têm obrigação de ser. É também a esse experimento que Bolsonaro submeteu os brasileiros. Essa experiência está deixando marcas em cada um e está corroendo ainda mais relações que já estavam difíceis. Está corroendo uma sociedade já bastante dividida, cujos laços estão cada vez mais esgarçados.

Ao deslocar a responsabilidade para o indivíduo, Bolsonaro está perversamente nos tornando cúmplices de seu projeto de morte. Quando ele invoca o direito individual de não usar máscara e de não tomar vacina, ele está maliciosamente dizendo também o seguinte: se é cada um que decide e faz o que quer e você está reclamando de mim, por que você não decide se proteger e proteger os outros? Simples assim, ele poderia dizer. Ou “talquei?” É diabólico, porque ele faz isso parecer trivial, como se fosse possível numa pandemia que as decisões sanitárias dependam da escolha individual.

A história nos conta que, na ditadura civil-militar (1964-1985), apenas uma minoria se insurgiu contra o regime de exceção. A maioria dos brasileiros preferiu fingir não ouvir os gritos dos torturados, centenas deles até a morte, ou dos mais de 8.000 indígenas assassinados junto com a floresta amazônica. Ainda assim, tudo indica que foi uma reação mais forte e expressiva do que essa que testemunhamos e protagonizamos como sociedade agora, diante de um projeto de extermínio.

O processo da retomada da democracia, com todas as suas falhas, a maior delas a impunidade dos assassinos de Estado, foi capaz de criar a avançada Constituição de 1988. É a chamada “constituição cidadã”, que ainda sustenta o que resta de democracia hoje, apesar de todos os ataques do bolsonarismo. O que essa sociedade fraca, corrompida, individualista e pouco disposta a se olhar no espelho será capaz de criar se não for capaz de se insurgir contra mortes que seriam evitáveis?

Se dermos por perdido, se nos dermos por perdidos, se dermos por impossível, se nos dermos por vencidos, aí já está dado. Completaremos o caminho rumo ao matadouro. Obedientes à política de morte de Bolsonaro, porque gritar nas redes e no whatsapp não é desobedecer a absolutamente nada. É pouco mais do que dissipar energia se autoiludindo que é ação. Para sermos nós, independentemente de quantos nós exista dentro desses nós, precisamos nos unir num objetivo comum: interromper a política de morte de Bolsonaro.

Em 2020, escrevi nesse mesmo espaço: como um povo acostumado a morrer (ou acostumado a normalizar a morte dos outros) será capaz de barrar seu próprio genocídio? Essa pergunta é hoje, quase 260 mil mortos depois, muito mais crucial do que antes. Nossa única chance é fazer o que não sabemos, ser melhores do que somos, e obrigar o Congresso a cumprir a Constituição e fazer o impeachment. E, lá fora, pressionar os organismos internacionais a responsabilizar Bolsonaro por seus crimes.

A cada dia cada um precisa se somar a todos os outros para esse projeto comum. E, talvez, ainda possamos nos descobrir capazes de nos tornarmos “nós”, o que significa ser capaz de fazer comunidade. A primeira pergunta da manhã deve ser: o que faremos hoje para impedir Bolsonaro de seguir nos matando? E a última pergunta deve ser: o que fizemos hoje para impedir Bolsonaro de seguir nos matando?

O que mais falta acontecer, ver e provar para compreender que estamos submetidos a um projeto de extermínio? Primeiro vimos pessoas morrerem em agonia por falta de oxigênio nos hospitais. Depois assistimos às cenas de pessoas intubadas que, por escassez de sedativos, tiveram que ser amarradas em macas para não arrancarem tudo por dor e desespero. O que mais falta? Qual é o próximo horror? De qual imagem necessitamos para entender o que Bolsonaro está fazendo? Precisamos compreender por que estamos nos deixando matar, subvertendo o instinto primal de defender a vida, que mesmo o organismo mais primário possui. Mas precisamos entender enquanto agimos, porque não há tempo. A alternativa é seguir assistindo Bolsonaro executar sua política de morte até não podermos mais assistir porque também estaremos mortos.