sábado, 14 de novembro de 2020

Cuidado, frágil!

 


Rotos e esfarrapados

A disputa eleitoral deste ano nos Estados Unidos escancarou para todo o mundo a facilidade com que um país se pode deixar arrastar para a radicalização e, com ela, para o retrocesso.

Em 1967, Anthony Downs, um dos mais celebrados cientistas políticos americanos, elaborou um requintado argumento a fim de demonstrar que os Estados Unidos dificilmente cairiam em tal armadilha. Numa sociedade próspera, com apenas dois grandes partidos, sem tradições ideológicas comparáveis às da Europa, um candidato teria de pender para o centro, sob pena de se isolar e perder de lavada. A virtude estaria sempre no centro. Tal argumento podia ser lido como um retrato fiel do que acontecera três anos antes, quando o destempero radical do sulista Barry Goldwater empurrou o Partido Republicano para um abismo. Aquele pleito e a teoria de Downs casavam-se perfeitamente. Nada que ver, é claro, com a eleição de 2020. Ainda próspero, mas economicamente muito mais vulnerável, sem ideologias do tipo europeu, mas com algo muito pior, um racismo desabrido e crescente, a polarização se impôs no país desde a eleição de 2016.

Donald Trump não sucumbiu como Barry Goldwater. Ao contrário, mostrou-se altamente competitivo. Transformou a grossura verbal em potente arma política, a ponto de se apresentar como vítima de fraude nas urnas. Chega mesmo a declarar que não passará o cargo a Joe Biden no dia 20 de janeiro, como prescreve a lei. Quem diria, o modelo mundial de democracia subitamente transformado em ícone de república bananeira.

Claro, nós, brasileiros, rirmos do grande irmão do norte é como o roto rir do esfarrapado. Primeiro, porque não somos uma sociedade próspera: somos bem o contrário disso. Segundo, porque não temos dois partidos centenários, teoricamente capazes de moderar os enfrentamentos políticos. Temos 26 siglas representadas na Câmara dos Deputados, nenhum deles detendo sequer 20% das cadeiras, sendo, por conseguinte, muito mais parte do problema que da solução. No nível de Trump, ou aspirando a tal, temos no Planalto o sr. Jair Bolsonaro, que não transformou a pandemia num desastre muito maior porque não foi capaz, e porque o Brasil, nesse aspecto, tem pelo menos uma defesa de que os Estados Unidos carecem: um sistema público de saúde.



Eis a diferença fundamental: não tivemos uma polarização entre dois partidos políticos com identidades bem delineadas, mas entre duas maçarocas desorientadas, cujo único objetivo era se destruírem uma à outra. Clara ilustração disso é a facilidade com que Jair Bolsonaro recorreu ao clássico estelionato eleitoral, trocando a “nova política” que prometera instaurar, pelo “Centrão”, lídimo representante do fardo arcaico que insiste em se perenizar. Noves fora, não estamos na iminência de um retrocesso: estamos bem no meio dele, com remotas chances de ajustar as contas públicas nos próximos cinco anos, na obrigação de destinar outra grande soma ao auxílio emergencial, caso o coronavírus retorne numa onda ainda pior, e, para chover um pouco no molhado, incapazes de superar nosso obsceno quadro de desigualdades sociais e educacionais e nossos problemas de saneamento e segurança.

Não se requer nenhuma lupa para perceber que as entranhas do Estado brasileiro estão tomadas por uma chusma de grupos de interesse (as chamadas corporações), altruístas como piranhas que se agitam num rio à espera de vacas que se aproximam. Alguém sabe como moderar o apetite de piranhas? No plano político, teoricamente existem dois mecanismos: de um lado, os três Poderes (Legislativo, Judiciário e Executivo) e, em particular, os partidos políticos; de outro, elites dignas do nome, ou seja, grupos dotados de recursos (econômicos, educacionais, etc.) e imbuídos de um grau razoável de dedicação ao bem comum. No Brasil, infelizmente, as instituições que corporificam os três Poderes e os partidos têm funcionado mais como correias de transmissão do que como mecanismos de balizamento e contenção dos grupos de interesse.

Restaria falar sobre as elites, questão mais complexa, sobre a qual o espaço disponível apenas me permite uma breve delineação. Desde o advento do petismo temos ouvido que elites conspiratórias são a causa última dos nossos males. Observo, todavia, que essa imagem nada tem que ver com o conceito de elite que sugeri no parágrafo anterior. Tampouco emprego o termo elite para designar as cúpulas das organizações corporativas criadas naquele longínquo tempo da ditadura varguista: federações e confederações da indústria, do comércio, da agricultura, etc., bem como as entidades sindicais que fazem o contraponto do lado trabalhista. Admito que indivíduos dotados de algum sentimento verdadeiramente “elitista” possam existir em tais organizações, mas como tais, elas não preenchem suficientemente os requisitos que tenho em mente. Um estudo mais extenso dessa questão deveria começar admitindo que um dos grandes problemas brasileiros possa ser a carência, e não a abundância de verdadeiras elites.

Apatia política agrava pobreza e desigualdade

A apatia política tem agravado a desigualdade na sociedade brasileira. Ao documentar em estudo a década perdida no combate à pobreza e à desigualdade, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que Executivo e Legislativo não atuaram com a agilidade necessária para adaptar a rede estatal de proteção social às circunstâncias do longo ciclo recessivo dos últimos cinco anos.

Quando foi mais necessário ampliar a transferência de recursos aos mais pobres, os principais veículos disponíveis — Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada (BPC) — demonstraram ser ineficazes. Outros programas de cunho social, como seguro-desemprego, abono salarial ou seguro-defeso, também ficaram aquém do desafio.

Não houve preocupação ou iniciativa para modificar nossa rede de combate à pobreza e à desigualdade numa situação de crise fiscal profunda. Resultado: 13,6 milhões de pessoas vivendo na pobreza extrema, na estimativa do IBGE divulgada na quinta-feira. Por qualquer ângulo que se se analise, o quadro é dramático. O Nordeste, com 27% da população, concentra 60% dos mais pobres.

“Todos os indicadores, sem exceção, contam a mesma história: a pobreza vinha melhorando até 2014 e piora abruptamente”, constataram os pesquisadores Rogério Barbosa, Pedro Ferreira de Souza e Sergei Soares. A partir de 2015, a desigualdade volta a avançar, mostra a análise dos dados de renda domiciliar.

É eloquente o aumento dos que vivem em pobreza extrema (renda máxima de R$ 89 per capita, pelo critério do Bolsa Família). Em 2018 havia 2,4 milhões — ou 38% — a mais nessa situação do que em 2012. Entre 2014 e 2018, 3,8 milhões ingressaram nessa faixa —crescimento de 80% em quatro anos.

O sistema de proteção social tem virtudes inegáveis. Mas, postos à prova, tanto Bolsa Família quanto BPC e seguro-desemprego se revelaram pouco eficazes para conter o estrago no mercado de trabalho. “Na realidade, o programa chegou a encolher nos anos de crise”, dizem os pesquisadores.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, fala em estender o auxílio emergencial ante uma nova onda da pandemia. Ipea e IBGE mostram que esse não é o único ponto, nem o principal. Programas sociais são necessários não apenas em momentos de crise. Não existem para inflar popularidade do presidente, mas para tirar a população da miséria. Para isso, precisam respeitar os limites fiscais do Estado. Do contrário, o risco é o retorno da inflação, maior de todos os geradores de desigualdade.

A fragilidade econômica impõe urgência na reformulação de programas como Bolsa Família, BPC ou seguro-desemprego, para dar-lhes a eficácia desejada. Governo e Congresso deveriam sair da apatia e redesenhar a rede de proteção social, pois a perspectiva é de agravamento da crise. Quem não tem renda tampouco tem poder, mas não pode ser deixado para trás.

Canalhas, canalhas, canalhas!

Muitos que ajudaram Jair Bolsonaro a se eleger, sabendo quem ele é, agora fingem espanto cada vez que ele aumenta a voltagem das barbaridades que despeja de sua boca pestilenta. Teve até general escrevendo cartinha lamuriosa. Sentem-se traídos? Bem feito.

Apesar de suas evidentes dificuldades com a sintaxe, Bolsonaro sabe se expressar como poucos quando se trata de insultar alguém. Como fez em recente cerimônia, em que ofendeu o povo brasileiro e bravateou contra o presidente eleito dos EUA.

Bolsonaro arrasta o país ao ridículo mundial junto com sua figura grotesca, capaz de comemorar a interrupção dos testes da vacina contra a Covid e de lançar suspeitas infundadas sobre a imunização; aparelhar a Anvisa e destruir o que resta da credibilidade do órgão regulador, num momento em que a pandemia está longe de ser controlada. Isso é um crime contra o país.



No Amapá, o clima é de convulsão social em consequência do apagão de energia. Há mais de dez dias, a população se tornou refém da inépcia da empresa transmissora e das autoridades, em todos os níveis. Abandono não é novidade nos confins da Amazônia. E qual o plano dos fardados para a região ? Controlar ONGs e levar embaixadores para um passeio.

Quanta degradação e incompetência ainda vamos aguentar? Ah, sim! Enquanto a elite do dinheiro grosso continuar se beneficiando da agenda econômica encarnada em Paulo Guedes. Não importa o preço que iremos pagar em mais brasileiros mortos e em apodrecimento moral.

Bolsonaro nos legará um farrapo de país. Na mesma cerimônia, disse: "Não estou preocupado com minha biografia, se é que tenho biografia". Nisso, ele tem razão. Bolsonaro e família não têm biografia. Sua história será contada nos arquivos policiais.

Aos que contribuíram para o estado de coisas que levou à sua eleição, aos que o naturalizam como figura normal do jogo democrático, aos que lhe dão sustentação política, evoco Tancredo Neves em 1964. Canalhas, canalhas, canalhas!

Brasil e seus eleitos

 


Pé no chão

A notícia do encontro de Luciano Huck com Sergio Moro levou de volta à cena da sucessão presidencial o apresentador que andava sumido desde a eclosão da pandemia. Outro efeito foi expor o ex-juiz ao frio e à chuva dos ataques à direita e à esquerda e enquadrá-lo na moldura de companhia questionável: um tanto tóxica no meio político, mas bem-aceita na sociedade.

Por ora, fica por aí o andamento da construção de uma candidatura de centro capaz de enfrentar Jair Bolsonaro em 2022. Isso no tocante ao que os artífices da empreitada estão dispostos a revelar ao público, porque nos bastidores a coisa segue o ritmo das conversas, aproximações e lances antecipados para futuras alianças que vêm acontecendo desde o ano passado.

Huck recolocado, Moro testado e João Doria instigado, mas mais interessado em se firmar como contraponto a Bolsonaro do que em disputar espaços internos na articulação de uma alternativa ao presidente. Este é o quadro e dele não veremos grandes evoluções até que se possa dar por encerrada a crise sanitária, definida a troca (ou repetição) do comando no Congresso e delineados os rumos da economia, para o bem ou para o mal.

Aqui o mapa do resultado do primeiro turno da eleição municipal tem importância relativa. Para antecipar definições sobre vencedores e perdedores em 22, o peso é zero. Temos exemplos a mancheias de derrotados numa e vitoriosos na seguinte, e vice-versa. Importa sim o tamanho do eleitorado que sairá representado por essa ou aquela força política, aí sim projetando uma tendência do estado de espírito do eleitorado.

Pelas pesquisas, o desenho revela uma inclinação ao já conhecido e/ou testado: Bruno Covas em São Paulo, Eduardo Paes no Rio de Janeiro, o atual prefeito em Belo Horizonte, os herdeiros de Eduardo Campos e ACM Neto no Recife e em Salvador, respectivamente. Se confirmadas as intenções de voto, teremos a prevalência do ânimo conservador (não no sentido ideológico) sobre humores pautados por revolta e ressentimento.

É verdade que não temos nada parecido com figuras de escol em matéria de experiência e biografia. Temos de desconsiderar perfis ideais e trabalhar com as hipóteses postas. No campo da candidatura dita de centro, Sergio Moro não agrega e Luiz Henrique Mandetta não passa pelo crivo dos interesses do partido dele (DEM). Restam Luciano Huck e João Doria. Numa avaliação crua, Huck por enquanto se situa na desvantagem em relação a Doria.

Pelo seguinte: o governador é do PSDB e já compôs uma aliança com o DEM e o MDB que inclui a eleição municipal em São Paulo e outras capitais (Rio e Salvador, por exemplo), a composição da chapa de 2018 com a cessão ao DEM da vice e a chance de assumir o governo a partir de abril de 2022, além da escolha dos próximos presidentes da Câmara e do Senado. Fechou, assim, com as forças políticas de maior peso.

Esse pessoal pode mudar e se transferir para uma candidatura de Luciano Huck? Até pode, mas não fará isso antes de o apresentador mostrar capital eleitoral/partidário e transformar-se de celebridade popular em candidato competitivo. Uma coisa é este ou aquele político demonstrar simpatia e posar para fotos com Huck, outra é ver esses personagens embarcar na canoa dele para valer.

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Doria, contudo, tem obstáculos fortes para ultrapassar: o pouco conhecimento em âmbito nacional, uma certa antipatia país afora com a supremacia paulista e a desconfiança do eleitorado do próprio estado pelo fato de ter abandonado a prefeitura para concorrer ao Palácio dos Bandeirantes depois de ter prometido cumprir o mandato.

Para vencer essas dificuldades, Doria se posiciona como um contraponto a Bolsonaro a fim de ganhar projeção e firmar imagem de governante civilizado e eficaz. Ciente do peso do quesito aversão a “paulistices”, no lugar de se referir aos “paulistas”, adota a expressão “brasileiros que moram em São Paulo”. Por sua vez, Huck e até Ciro Gomes não têm responsabilidades governamentais e podem se movimentar com mais liberdade.

A despeito da indefinição do panorama hoje mais calcado em hipóteses a ser definidas a partir de meados de 2021, uma coisa é certa: os políticos tradicionais que em 2018 ficaram com Bolsonaro de modo utilitário e entraram na eleição desarticulados não vão repetir a dose.

E o papel do Centrão? É como diz um dos donos da voz da experiência na política tradicional: “o centrão é o primeiro na fila dos cumprimentos ao vencedor”.

Água mole em pedra dura...



A estupidez insiste sempre
Albert Camus

Demência de Bolsonaro

Para nós que passamos 21 anos de vida adulta (1964-1985) sob a ditadura, os generais eram sujeitos sinistros, de óculos escuros, que nos ditavam quando, se e em quem podíamos votar, o que podíamos ler, ver, escutar, dizer e escrever e, se falássemos em instituições, direitos e liberdade, eles mandavam prender e arrebentar. Eles tinham as armas, as verbas e as canetas com as quais impor sua autoridade. E os porões, instrumentos de tortura e beleguins para aplicá-la. A mera visão de uma farda era intimidadora. Ela nos reduzia moralmente à menoridade, às calças curtas, à fralda.

Aí está algo incompreensível para um brasileirinho de hoje. Ele não entenderá como os militares podiam ter essa força. Para ele, militares são sujeitos que Jair Bolsonaro põe no governo, exibe nas redes sociais e logo começa a depreciar, diminuir, desmoralizar e, por fim, fulmina com a demissão. Em menos de dois anos, já fez isso com 16 generais, quatro brigadeiros e um almirante, e só entre os oficiais de alta patente.



Segundo levantamento da Folha, Bolsonaro demite um desses caciques por mês, até os que, por causa dele, abriram mão de suas promoções. Nada se compara, claro, ao esbofeteamento simbólico a que vive submetendo o general Eduardo Pazuello, pseudoministro da Saúde e seu mais dedicado ajudante de ordens. Se Bolsonaro trata assim os graúdos, imagine seu apreço pelos 6.000 fardados do segundo time com que entupiu os ministérios, estatais, autarquias e bancos públicos. Só lhe servem para alimentar sua ilusão de que comprou o Exército.

Pode ser psicologia de galinheiro, mas estou certo de que Bolsonaro faz tudo isso para se compensar de humilhações em sua medíocre carreira militar. É uma forma de demência, que parece fascinar os generais —ou não se submeteriam a ela.

O brasileirinho de hoje tem razão. Se eles são assim, como conseguimos passar 21 anos sob suas botas?

Terras da reforma agrária vão parar na mão de políticos

Terras em assentamentos de reforma agrária aparecem nas declarações de bens de centenas de candidatos a prefeito nas eleições de 2020. Seriam eles políticos camponeses, que utilizam as propriedades para subsistência? Não exatamente. Os assentamentos são áreas públicas, algumas delas frutos de desapropriações, entregues em projetos de democratização do acesso à terra pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ou por seus similares, nos governos federal e estaduais. Um levantamento inédito feito pelo portal De Olho nos Ruralistas na base de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), divulgado com exclusividade por EL PAÍS, mostra que alguns desses candidatos declaram oficialmente que acumulam patrimônio milionário, diversos lotes em assentamentos —o que contraria o princípio distributivo da reforma agrária— e fazendas tradicionais, adquiridas regularmente no mercado.

Parte expressiva dessas terras fica políticos nove Estados que compõem a Amazônia Legal: Mato Grosso, os sete estados da região Norte e a maior parte dos municípios do Maranhão. Foi essa região a escolhida, por governos de diferentes orientações políticas, para que pequenos produtores tivessem acesso à terra. E é nela que os políticos ostentam as terras como propriedades quaisquer. A pesquisa mostra que esses candidatos nasceram em vários pontos do país e têm ali seu Eldorado político— em meio a terras concebidas para terem função pública, e não para servirem à especulação imobiliária.

Nada menos que 895 imóveis em assentamentos foram declarados por 35 candidatos a prefeito, 38 candidatos a vice e 822 candidatos a vereador. Entre os 35 que tentam ser prefeitos, ao longo de todo o Brasil, 15 (43%) declararam possuir terras da reforma agrária na Amazônia Legal. O percentual nessa região entre os que buscam as vice-prefeituras (39%) e as Câmaras Municipais (42%) são similares. A proporção é três vezes maior que aquela entre o total de municípios da Amazônia Legal (772) e o total de municípios do país (5.570). A história de cada um desses candidatos confirma a tendência de concentração de território e renda entre políticos —com as terras da reforma agrária transformadas em instrumentos de enriquecimento.

A reportagem procurou, desde o início da semana, todos os políticos citados na reportagem, mas até a publicação desta edição obteve somente uma resposta, citada nesta matéria.

Candidato à reeleição em Novo Santo Antônio (MT), o goiano Adão Soares Nogueira possui quase 5 milhões de reais. Mesmo assim ele tem terras no Projeto de Assentamento (PA) Macife I. Não um lote, mas quatro. Somente essas propriedades ultrapassam os 3 milhões de reais, conforme ele informou à Justiça Eleitoral. Conhecido como Adão Belchior, esse político do DEM nascido em Paranã, hoje um município do estado do Tocantins, viu o patrimônio saltar de 3,5 milhões de reais, quando assumiu a prefeitura, há quatro anos, para 4,9 milhões de reais.

O município na região do Araguaia foi construído em território Xavante, nas margens do Rio das Mortes. Possui 2.000 habitantes e um Produto Interno Bruto (PIB) de 15,2 milhões de reais, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas três vezes superior ao patrimônio do prefeito. O PIB per capita é de 6.840 reais. As terras entregues pelo poder público para a produção de camponeses viraram fazendas nas mãos de Belchior. Mais de 3 milhões de reais de sua riqueza — em terras que somam 582 hectares — são frutos de assentamentos. Não do que ele produz ali, apenas do preço das terras. Os assentamentos federais são de responsabilidade do Incra, criado na ditadura militar, em 1970. Alguns estados têm órgãos com a mesma função.

O acúmulo de imóveis da reforma agrária nas mãos de um único dono é visto como uma distorção do sistema. “Na melhor das hipóteses são assentamentos antigos, já bastante descaracterizados”, diz Pedro Martins, assessor jurídico da ONG Terra de Direitos na Amazônia. No caso de Adão Belchior, que acumula também terras que não eram da reforma agrária, a produção se destina à pecuária: o político goiano tem 499 cabeças de bois da raça nelore, avaliadas por ele em 1 milhão de reais. Isto localizado em um dos 267 municípios que mais desmatam no Brasil, aqueles do Arco do Desmatamento.

Outra assentada com patrimônio milionário no Arco do Desmatamento é a paranaense Carmelinda Leal Martins Coelho (DEM), prefeita de Carlinda, no norte do Mato Grosso. Entre os 2,88 milhões de reais declarados ao TSE estão 226.000 de quatro lotes no assentamento Carlinda. O próprio município nasceu de um assentamento, em 1981. Não é algo incomum na Amazônia: em Manicoré, município do sul do Amazonas que também está entre os que mais desmatam no Brasil, um projeto do Incra no quilômetro 180 da Transamazônica é hoje um vilarejo, o distrito de Santo Antônio do Matupi, um polo de expansão de madeireiros na região.Imagem de arquivo de um vilarejo no Amazonas que deveria ser um assentamento.


A situação em Carlinda já causava preocupação no professor Damião de Souza Ramos em 2009. Criado no assentamento, ele apontava no site Só Notícias a transferência das terras para latifundiários: “Existem linhas inteiras divididas entre dois proprietários, outras com blocos de 6, 5 e 4 sítios por proprietários”. Em 2006, na primeira eleição que disputou, a prefeita de Carlinda dispunha de 1,94 milhão de reais. Nascida em Assis Chateaubriand, no Paraná, mas radicada no Mato Grosso, a milhares de quilômetros, a candidata à reeleição pelo DEM é dona de um rebanho de 566 cabeças de boi, declaradas por 1,48 milhão de reais.

Um dos líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Gilmar Mauro explica que diferentes tipos de assentamento formaram diferentes perfis de beneficiários da reforma agrária. “Existem projetos desde o governo João Goulart, no início dos anos 1960”, observa. Ele foi o primeiro presidente a criar assentamentos como conhecemos, embora a entrega de grandes áreas para empresas de colonização já fossem uma prática comum, em especial no Mato Grosso. Muitos projetos foram criados, em especial na Amazônia, durante a ditadura que derrubou Goulart, sem levar em conta a necessidade dos assentados. Alguns valorizavam a capacidade econômica de quem recebia os lotes, beneficiando pessoas do sul do Brasil — e não camponeses pobres da Amazônia.

Gilmar estima que existam cerca de 1 milhão de assentados no Brasil, dos quais 400 mil fazem parte da base do MST, contrário à política de distribuição de títulos de propriedade. “Defendemos que os assentados devem receber termos de uso, com direito de hereditariedade, não que possam ser donos e vender as terras”, afirma. “Para nós, elas são um bem público comum”. O movimento teme que essas propriedades voltem ao mercado e sirvam à especulação imobiliária. “Com a desindustrialização que o Brasil vive nos últimos tempos, o capital se concentra no rentismo, no comércio e nas grandes propriedades rurais destinadas à produção de commodities”, diz.

Candidato a prefeito de Alto Paraíso, em Rondônia, João Pavan (DEM) declarou dois lotes no Projeto de Assentamento Dirigido (PAD) Marechal Dutra, em Ariquemes. Com outros imóveis urbanos e rurais, Pavan —mais um paranaense, de Astorga— declarou 525.000 reais em bens. O projeto de colonização entregava lotes de 100 hectares em meados dos anos 1970. O objetivo era incentivar a produção de café. Em outro PAD incentivava-se o cultivo de cacau. O senador Confúcio Moura (MDB-RO), duas vezes governador de Rondônia, declarou em 2018 ter quatro lotes no PAD. Nascido em Goiás, ele declarou quase 4,3 milhões de reais em bens. As quatro terras de 629 hectares no PAD foram registradas por 60.000 reais. Os dois lotes de Pavan, por 13.000. Alto Paraíso também está no Arco do 

Outros dois proprietários de terras em áreas de reforma agrária disputam a prefeitura de Bom Jesus do Araguaia, no nordeste do Mato Grosso. O prefeito Ronaldo Rosa de Oliveira, o mato-grossense Rone do Murerê (DEM), e o vice-prefeito, Marcilei Alves de Oliveira, o goiano Mansão (PSB), foram eleitos em 2019, numa eleição suplementar feita após a cassação de Joel Ferreira (PSDB) e Edmárcio Moreira da Silva (PRP), acusados de comprar votos. Rone e Mansão decidiram se enfrentar. O patrimônio de 878.000 reais de Rone inclui um terreno no PA Macife, novamente ele, avaliado em 400.000 reais, e duas terras em Bom Jesus do Araguaia. Em 2019, ele foi acusado por vereadores de usar servidores da prefeitura em uma reforma na sua casa. Seu oponente Mansão declarou 1.186.102,67 de reais em bens e, assim como Rone, tem uma propriedade no PA Macife, de 700.000. Mais 229 cabeças de gado, avaliadas em 239.793 reais.

Mais dublês de pecuaristas e assentados tentam ser prefeitos no Mato Grosso. Em Novo São Joaquim, outro município formado em território Xavante, o agricultor Antônio Augusto Rodrigues (PSB) informa que o terreno de 34,81 hectares no PA Santo Idelfonso vale 600.000 reais. O projeto de assentamento foi criado em 1977, durante o governo Ernesto Geisel. Conhecido como Alemão Roque e nascido no município, Rodrigues declarou ao TSE um total de 1,27 milhão de reais, o que inclui a fazenda e 296 cabeças de gado. A média de bois por brasileiro é de pouco mais de uma cabeça por pessoa. Em entrevista por telefone, Alemão Roque afirmou que é assentado pelo Incra e que continua morando no Pará, mais precisamente no sítio Santa Augusta. “Estou no assentamento desde o começo”, afirmou. “Em 1996 começou a luta pela terra e em 1998 eu fui para lá, quando fiz 18 anos”. O candidato argumenta que sua parcela de terra não tem mais ligação com o Governo. “Fui um dos primeiros titulados. Venceu o prazo das regras vigentes, pedi a baixa da cláusula resolutiva e hoje meu lote é quitado”. Quanto às cabeças de gado, ele justifica que adquiriu ao longo dos últimos 21 anos. “A gente trabalha com arrendamento. Eu arrendo outras terras."

A advogada Maíra de Souza Moreira, da ONG Terra de Direitos, diz que as alterações de legislação a partir de 2017 — início da gestão de Michel Temer (MDB), após o impeachment de Dilma Rousseff (PT) — abriram margem para uma nova concentração de terras da reforma agrária e a regularização de fazendas localizadas em terras públicas. “Antes, a lei impedia a alienação das terras antes de dez anos de permanência. Agora, pode ser feita logo após a quitação”, diz. Isso facilita a reinserção precoce das terras no mercado e barra as famílias que realmente precisam se consolidar no campo. “A lei também facilita a regularização, de forma individualizada, de propriedades em terras públicas”, afirma.

Aos poucos essa lógica se expande pelas bordas da Amazônia. Em Cruzeiro do Sul, no Acre, na fronteira com o Peru, Adonis Francisco de Almeida, o Sargento Adonis (PSL), informou ao TSE possuir quatro terrenos rurais no Projeto de Assentamento Dirigido Santa Luzia, onde vivem 885 famílias, segundo o Incra. As quatro propriedades somam 334 hectares. Em duas delas ele informou ao TSE ter escritura pública, oriunda de inventário. Nas outras duas ele seria “posseiro de boa fé”, ou seja, diz que se apropriou de forma legítima, para subsistência, de um bem público. O patrimônio total do policial, que inclui 90 cabeças de gado, é de 1.152.000 de reais. Mais um assentado milionário.

Foi no PAD Santa Luzia que o PM fez seu maior evento de campanha, no penúltimo sábado (31). “Vamos libertar Cruzeiro do Sul de cem anos de escravidão política”, discursou. O assentamento foi criado no início dos anos 1980, nos últimos anos da ditadura, quando ainda se falava em “colonização” — termo com viés racista que ainda faz parte do nome do Incra. Com o ciclo da borracha em decadência, o desmatamento foi uma das principais alternativas utilizadas pelos assentados.

No Pará, um dos estados que mais desmatam no Brasil, o município de Eldorado dos Carajás ficou conhecido pelo massacre de dezenove membros do MST, no dia 17 de abril de 1996, durante operação da PM, que saiu em defesa de fazendeiros da região. A data motivou a criação do Dia Mundial da Luta pela Reforma Agrária. É ali que o prefeito Celio Rodrigues da Silva, o Celio Boiadeiro (MDB), tenta a reeleição com um patrimônio de 1,67 milhão de reais. Uma de suas propriedades fica “na área do Incra”, no PA Água Fria. E o que o candidato nascido em Arinos (MG) produz ali? Gado: ele informa ter 200 cabeças de boi, no valor de 400 mil reais — o preço de 2.000 por cabeça é o mais comum entre candidatos pecuaristas de todo o Brasil.
“Estado deveria intervir”

Para o advogado Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), os dados são impressionantes. “Quem trabalha com a questão agrária desconfia que alguns assentamentos não funcionam, não dão certo”, diz o jurista, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA). “Há interesses econômicos por trás. Mas, quando a gente vê no concreto, fica pensando como eles declaram”. As informações no TSE são as mesmas que os políticos entregam à Receita Federal, com os valores originais dos bens. Muitos números, atualizados, são até dez vezes maiores.

Marés vê duas hipóteses para que tantos candidatos acumulem terras da reforma agrária. A primeira: eles realmente são assentados. “Outros compraram depois a gleba, porque ninguém recebe dois lotes. Ainda que fosse assentado em um, comprou outro no processo”. Isso indica uma reforma agrária malfeita. “Quando as políticas públicas não são adequadas, a terra volta a se concentrar”. A outra hipótese explica os milionários: eles são pessoas de fora dos assentamentos, que simplesmente compram os lotes. “Demonstra uma situação pior: políticas públicas débeis e erradas”.

Presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) durante o segundo Governo de Fernando Henrique Cardoso, Marés lembra que a concentração de fazendas nas mãos de políticos sempre foi comum no país, pois a terra é uma reserva de capital. “Tem uma grande vantagem ser prefeito: você faz estradinha, arruma a estrada que já existe, faz asfalto... Isso vai valorizando a terra”, diz. “O prefeito também tem o poder de conseguir obras públicas estaduais e federais, através de seus deputados. É um bom negócio. Escandaloso, mas um bom negócio”.

Em São Geraldo do Araguaia, no Pará, o pecuarista maranhense Regivaldo Pereira da Costa (MDB) possui um lote de 173,7 hectares no que ele chama de Fazenda Nova Esperança — na verdade uma terra em assentamento, no PA Gameleira, declarada por 360 .000. Entre suas propostas para a prefeitura estão o projeto “Vicinal Bonita”, para deixar as estradas vicinais trafegáveis e seguras, e o programa “Estrada Legal”, para manutenção de estradas na zona rural.

Segundo Carlos Marés, a reforma agrária mal feita gera uma reconcentração de terra: “O dinheiro público faz um baita investimento para melhorar as condições de vida das pessoas e aí se reconcentra. É um sinal de que a política foi totalmente ineficaz. Não toda a reforma agrária, mas a política que levou a isso. O Estado deveria intervir”.

Alceu Luís Castilho/Leonardo Fuhrmann/Maria Franco Ramos, para o site De olho nos ruralistas, um observatório do agronegócio e das políticas ruralistas no Brasil, com o apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF), em parceria com o Pulitzer Center.

Bolsonaro chega ao limite da indecência ao banalizar a morte

A opção do presidente por comemorar um suposto fracasso de uma vacina e usar um cadáver como instrumento de poder coloca em letras garrafais a dimensão da crise ética que vivemos:Basta! 

O vírus matou a legitimidade do Governo de Jair Bolsonaro. E se isso ainda era motivo de dúvidas para uma parcela da população, a opção do presidente por comemorar nesta semana um suposto fracasso de uma vacina e usar um cadáver como instrumento de poder colocou em letras garrafais a dimensão da crise ética que vivemos. 


Imoral, o Governo da fraude, da violência, da ameaça e da mentira banalizou a morte. As urnas o levaram ao poder. Mas sua legitimidade não se limita ao que ocorre na votação. Numa democracia, existe um ponto mágico no qual um Governo deixa de ser legítimo. Isso acontece quando ele não só se mostra incapaz de proteger seus cidadãos, mas atua deliberadamente para ampliar o sofrimento. Apoie nosso jornalismo.

A chegada do vírus não foi uma responsabilidade do Governo. Mas esteve em suas mãos a opção por um outro caminho que jamais foi assumido. A pior crise sanitária em 100 anos poderia ter mobilizado uma nação por sua sobrevivência. 

Em sua obra "A negação da morte", Ernest Becker apresenta a civilização humana como mecanismo de defesa contra a consciência de nossa morte. Estudos revelam ainda que uma população, quando confrontada com um desafio existencial, está disposta a abraçar um líder forte que, pelo menos psicologicamente, dá sinais de proteção. Paradoxalmente, líderes tidos como “fortes” como Bolsonaro e Donald Trump mostraram como tais termos são meras narrativas construídas para justificar uma característica que não passa de uma cortina de fumaça para esconder personalidades medíocres. 

Asfixiada, a alma de um país encontrou ironicamente na distante eleição americana de um político tradicional um motivo para comemorar como se a escolha tivesse sido sua. Como se aquela alma machucada tivesse recebido um sopro de esperança diante de jovens de todas as cores que tomaram as ruas das cidades dos EUA para destravar quatro anos de um grito preso no peito. 

Pária, Bolsonaro mergulha o país em sua irrelevância internacional e aprofunda o extremismo de suas declarações. Nesta semana, ensaiou uma ameaça contra Joe Biden, evocando a “pólvora” quando acaba a diplomacia. Mas, acima de tudo, foi na contramão de todas as grandes democracias do mundo ao não reconhecer a queda de Trump. Não se trata apenas de manter um aliado. Ao se recusar a admitir o resultado, Bolsonaro fez uma demonstração perigosa de como está disposto a reagir se for derrotado em 2022.

Não há espaço para eleger santos. Mas chegou a hora de frear um movimento antidemocrático diante das evidências do caráter irresponsável de um líder. Talvez, assim, evitaríamos que esse movimento transforme uma nação em um experimento de destruição. Evitaríamos que esses mesmos líderes transformem a sociedade em uma longa noite de pesadelos que, como num caleidoscópio, vão ganhando novos monstros a cada giro. Em cada giro, uma dor do desmonte de uma democracia. Na história dessa dor, cada percurso de uma lágrima passa a ser tão vacilante como o rumo de uma nação que parece ter se esquecido de seu destino. 

No poder, aqueles que conduzem o Estado deram claras demonstrações nesta semana de que não respeitam qualquer tipo de fronteira da ética. Juntos, precisamos acordar desse pesadelo. O desafio não é o de travar uma batalha entre esquerda e direita. Mas sonhar com a construção da paz social, com a vitória da verdade. As instituições precisam reagir, a sociedade não pode se calar e terá de se organizar. Não é mais o momento de transformar ataques à democracia em memes bem elaborados. Esse espaço, agora, precisa ser preenchido pela indignação, pois o que está em jogo é nosso futuro. Chegamos ao limite da indecência e da imoralidade. Basta!