segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Brasil covarde

A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos de independência; ela só quer acompanhadores de procissão, que só visam lucros ou salários nos pareceres. Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma ideia não repercute na massa e, quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador de louco.


(...)

O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para própria felicidade da espécie humana.

Entretanto, no Brasil, não se quer isto. Procura-se abafar as opiniões, para só deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes.
Lima Barreto, Elogio da morte, ABC 19/10/1918

As almas mortas e a montanha

“Diga- me, mãezinha, têm morrido camponeses seus? — Nem me fale paizinho — dezoito homens! Disse a velha com um suspiro. — E tudo gente boa que morreu, bons trabalhadores. É verdade que nasceram outros depois, mas o que valem? É tudo criançada; mas o fiscal chegou, mandando pagar a taxa por alma, da mesma forma. Os homens estão defuntos, mas eu tenho que pagar como se estivessem vivos.”

No livro Almas mortas, o escritor ucraniano Nikolai Gogol ironiza a servidão russa na época do czar Pedro, o Grande, que resolveu cobrar impostos sobre todas as almas. Cobrava até de quem não era católico, apesar de não ser nada religioso. Os proprietários de terras eram obrigados a pagar os impostos pelo número de servos, inclusive os que haviam morrido. Pável Ivánovitich Tchítchicov, o personagem central do romance, resolve ganhar dinheiro com isso.

Charmoso, educado, sagaz e boa pinta, usa de convencimento para enganar pequenos proprietários. Aproveita-se da burocracia russa ineficiente, e do regime de servidão e da miséria, para hipotecar almas como se todas estivessem vivas e, com isso, obter lucro. Se o proprietário vende uma alma, para Tchitchicov, o vendedor não perde nada. Pelo contrário, ele economiza no imposto que teria que pagar e ainda ganha uma quantia em rublos. Quanto ao comprador, essas almas mortas passarão a fazer parte do seu patrimônio.


O plano de Tchitchicov é simples. Ao comprar almas mortas a partir de pequenos proprietários de terra, esses servos permanecem em livros dos fazendeiros até o próximo recenseamento e, muito embora mortos, são tributáveis. Ao comprá-los, aliviam a carga fiscal dos proprietários. Seu plano é instalar esses servos mortos nas listas fiscais de uma propriedade distante, em que ele vai, então, ser capaz de obter uma hipoteca generosa do governo e sair com uma pequena fortuna. Certos aspectos da pandemia de covid-19 aqui no Brasil lembram o romance de Gogol.

Ultrapassamos a marca de 600 mil mortes por covid-19, mantendo, porém, uma média de 500 óbitos por dia. Na sexta-feira, quando atingimos esse patamar, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, deu uma entrevista coletiva minimizando o fato, para destacar que: (1) o governo está empenhado em viabilizar a terceira dose da vacina contra a covid-19 e (2) um número muito maior de pessoas diagnosticadas com a doença se recuperou. De fato, cerca de 20,6 milhões de pessoas tiveram covid-19 e sobreviveram; no momento, 285.032 estão enfermas.

A forma burocrática da entrevista e a falta de empatia do ministro estão em linha com a política sanitária do governo federal. Contaminado na viagem do presidente Jair Bolsonaro à ONU, mesmo sem sintomas, teve que fazer três semanas de quarentena em Nova York, para voltar ao Brasil. Sua desastrosa atuação durante a pandemia também está sendo investigada pela CPI do Senado. Os senadores deverão concluir seus trabalhos nas próximas semanas e, segundo o relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL), as consequências serão inquéritos civis e criminais, a serem conduzidos pelo Ministério Público, a Polícia Federal e o Tribunal de Contas da União (TCU). O relator proporá a demissão do ministro Queiroga e/ou a abertura de um processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro, por crime de responsabilidade. Estamos no Brasil, a um ano das eleições, e o nosso país, como dizia o maestro Antônio Carlos Jobim, não é para principiantes: nada de demissão nem impeachment.

Nossa realidade vai além das obras de ficção. Muita incompetência e espertezas macabras foram desnudadas pela CPI da Saúde, porém, nada se aproxima tanto da história de Gogol como o caso macabro da Prevent Sênior, empresa que se especializou no atendimento de idosos, em cuja estratégia de tratamento, além do “kit cloroquina”, nos casos graves, segundo denúncias de médicos e pacientes, os “cuidados paliativos” seriam uma espécie de eutanásia não consentida, para dizer o mínimo. O trauma coletivo da pandemia no Brasil é irreversível, principalmente para os familiares e amigos desses 600 mil mortos por covid-19.

Graças ao SUS, milhões de pacientes passaram pelas enfermarias dos hospitais, alguns com longas internações. O que mudou no modo de vida e na forma de pensar dessas pessoas? O escritor alemão Thomas Mann, cuja mãe era brasileira, ao descrever as polêmicas entre pacientes num sanatório de Davos, nos Alpes suíços, fez um mosaico do que estava acontecendo na Europa à beira da I Guerra Mundial. Na Montanha mágica, a tuberculose muda a noção de tempo durante a internação, enquanto a vida segue o curso trágico da História e médicos charlatães oferecem aos ricos pacientes falsas opções de cura. Naquela época não existia a penicilina; hoje, temos também as vacinas contra a covid-19.

O que restou do paraíso

Nestes dias em que estourou o escândalo dos Pandora Papers, envolvendo dinheiro em contas no exterior, estava precisamente consultando o belo livro de Jean Delumeau “O que sobrou do paraíso”. Rico em pesquisa e erudição, foi editado no Brasil pela Companhia das Letras e fala do paraíso desde os primeiros textos sagrados, passando pelos visionários e terminando no declínio da ideia, com o cansaço sobre as imagens repetidas e, o que é mais decisivo, o desencantamento do mundo.

Isto não interessava a Delumeau, mas talvez possa funcionar como comentário a sua obra. O paraíso era um lugar para onde iam as pessoas e, no seu irreversível declínio, acabou sendo o lugar para onde vai a fortuna.

Aliás, a partir de São Paulo, com a frase “o que os olhos não podem ver”, muitas descrições do paraíso religioso se deslocaram das delícias que o lugar oferece para a importância dos males que ele suprime.

Agora que o paraíso é apenas ocupado pelo dinheiro que as pessoas conseguem acumular, podemos avaliá-lo também não pelos prazeres que oferece, mas pelos transtornos que evita.

Certamente, no paraíso fiscal, a publicidade das fortunas era um dos males evitados, até que surgiram esses vazamentos do tipo Pandora Papers. E o mais importante dos males realmente evitados é o pagamento de impostos.

No Brasil, dois nomes públicos foram relacionados nos Pandora Papers. Paulo Guedes, com dinheiro nas Ilhas Virgens; Roberto Campos Neto, no Panamá.

Isso não configura crime. No entanto, desde 2013, temos uma lei de conflito de interesses. Guedes formula a política fiscal; Campos, no Banco Central, a política monetária. Estariam fora do conceito de conflito de interesses? Suas atividades públicas repercutem nas suas poupanças externas?

Guedes aparece num vídeo na internet defendendo que não se taxem os recursos em paraísos fiscais. Deve ter seus motivos técnicos, mas a argumentação teria outro peso se, na mesma defesa, confessasse que tem US$ 9,5 milhões de dólares no Caribe.

É muito delicado desenhar o projeto fiscal de um país, determinar o que devemos justamente devolver ao governo, e escapar com seu dinheiro para um paraíso fiscal.

Na verdade, a expectativa das pessoas comuns é bem maior que simplesmente cobrar um pequeno imposto das fortunas expatriadas. Elas esperam que suas autoridades econômicas cerrem fileiras condenando os paraísos fiscais.

O declínio da ideia de paraíso não foi nada problemático para a literatura. De um modo geral, no universo ficcional, é um lugar entediante, que, nem de longe, rivaliza com as emoções e peripécias do inferno.

O fim dos paraísos fiscais, por sua vez, tornaria a vida levemente mais suportável na Terra, se imaginarmos não apenas o drible aos impostos, mas também o estímulo à aplicação do dinheiro na vida real de cada país.

Na Inglaterra, David Cameron ficou enfraquecido após um escândalo, o Panama Papers, e deixou o governo pouco tempo depois. Não há indícios de que tenha transgredido alguma lei.

Se examinarmos o conteúdo das manifestações de protestos, foi apenas uma espécie de queda de confiança. Um desencanto não com a ideia de um paraíso, como o provocado pelo curso do capitalismo. Mas com a ideia de que os líderes nacionais estão comprometidos com o destino de seus povos, que não pedem sacrifícios de que tentam fugir secretamente.

Segundo a mitologia, a caixa de Pandora, ao se abrir, revela todas as maldades, mas contém também uma virtude: a esperança.

É possível falar disso no mundo hoje? A caixa acabou de ser aberta, e suas consequências planetárias ainda não aconteceram. Muitos acreditam que a ideia de paraíso fiscal é intrínseca ao capitalismo. Mas seria pedir muito que os dirigentes políticos se abstivessem do esporte de sonegar impostos?