sábado, 9 de abril de 2022

2022 a 1648 – O começo e o fim do Estado nacional

Penso que nem mesmo o Dr. Pangloss, personagem de Voltaire, seria capaz de manter seu proverbial otimismo se lhe fosse dado deitar uma vista d’olhos sobre o mundo atual.

Numa fração de segundo, Pangloss certamente imergiria num sono profundo, durante o qual se lembraria da Paz de Westfalia (tratados celebrados em 1648, pondo fim à Guerra dos Trinta Anos) e da esperança dos reis lá reunidos de estarem lançando as bases de uma paz perpétua. Um mundo de Estados, quero dizer, de carapaças protetoras, que deixariam para trás os antigos castelos medievais. Estes eram bonitos, sem dúvida, mas haviam se tornado incapazes de garantir proteção a seus habitantes a partir do instante em que os exércitos se adestraram para o uso militar da pólvora.

Nesse aspecto, a grande inovação foi o reconhecimento da soberania territorial de cada Estado. Um país, mesmo se fosse dezenas de vezes mais poderoso que outro, só poderia penetrar o território deste violando sua soberania, ou seja, recorrendo à força militar e violando suas fronteiras, e ficaria sujeito à retaliação do país atacado, que certamente daria um jeito de arranjar aliados. Constituía-se, dessa forma, um sistema no qual todas as unidades políticas seriam Estados, uma vez que uma fronteira distante de seu “centro” funcionaria como uma carapaça protetora. Nascia, assim, o sistema europeu de Estados.

Dois segundos mais e Pangloss, despertando de seu sinistro sonho, teria à sua frente os escombros da Ucrânia, milhares e milhares de mortos, escolas e hospitais destroçados, falta de água potável em algumas regiões e o refulgente dourado dos trigais obliterado pelo incessante despejo de bombas. Assestando para mais longe seu binóculo, veria na janela do Kremlin a glacial figura do tirano russo.

Este mundo com que Pangloss hoje se depara nos apresenta quatro desafios que certos obtusos são incapazes de decifrar de imediato, mas que, com algum afinco, acabam compreendendo.


Primeiro, a sobrevivência da democracia. Nas últimas duas décadas, multiplicou-se por todo o mundo o número de indivíduos – muitos até portadores de diplomas universitários – que adorariam ver as democracias do planeta reunidas num féretro universal. Para nossa sorte, só em uns poucos países seu anseio está ganhando contornos de realidade. Não lhes passa pela cabeça como ficaríamos se, no mundo inteiro, a democracia fosse substituída por tiranias. Com um pequeno esforço, poderiam descortinar esse cenário, bastando-lhes para tal recordar-se de um momento em que não estivemos longe disso: se a Alemanha hitlerista, a duras penas derrotada pelos aliados, nos tivesse vencido.

O segundo desafio é que duas das três superpotências hoje existentes (Rússia e China) são regidas por regimes políticos ferreamente totalitários. A China, aparentemente mais afeita ao trabalho e capaz de interagir prudentemente com povos cujo idioma não compreende, beneficia-se da enorme vantagem de poder investir pesadamente em setores estratégicos de vários países, de comprar e vender em larga escala e de cada vez mais atrair a simpatia de terras como o Oriente Médio e a África, onde sua presença era praticamente nula até pouco tempo atrás.

Em terceiro lugar, mas não menos importante, as duas mencionadas superpotências encontram-se confortavelmente sentadas em formidáveis arsenais nucleares. Permitam-me aqui os leitores um breve retorno aos tratados de Westfalia. A primeira grande brecha aberta no sistema europeu de Estados foi o surgimento, nos anos 1950, dos Mísseis Balísticos Intercontinentais (ICBMs, na sigla em inglês). Para ter uma ideia exata desse novo desafio, convém lembrar que as bombas atômicas lançadas ao fim da Segunda Grande Guerra sobre Hiroshima e Nagasaki foram literalmente “jogadas”, quero dizer, atiradas manualmente a partir de aeronaves de médio porte.

Um quarto capítulo nesta sinistra novela ocorreu em 1962, quando Nikita Kruschev, o chefe político da União Soviética, valendo-se do fato de Cuba ter se convertido ao comunismo, cometeu o desatino de instalar um míssil na ilha de Fidel Castro. Consta que o presidente John Kennedy e seus ministros, reunidos às pressas, mostraram-se inicialmente atarantados. O papel decisivo teria cabido a Robert Kennedy, irmão mais jovem do presidente, que teria dado um murro na mesa e tomado a decisão: ou o sr. Nikita tira aquela porcaria de lá imediatamente ou vai arcar com pesadas consequências. Kruschev entendeu o recado.

Para bem aquilatar a fundura do abismo a que chegamos, reparem que aquele rapaz que preside a Coreia do Norte tem condições de atingir com um míssil nuclear qualquer ponto dos Estados Unidos. Posso imaginar que ele não hesitaria em fazê-lo, se não fosse o puxão de orelhas que levaria de seu “grande irmão”, a China.

Eis aí, em breves linhas, a enrascada em que o mundo se meteu. A Terra não é grande coisa, mas, se queremos viver nela, convém providenciarmos presidentes e ministros mais equilibrados que o atual inquilino do Kremlin.

O nosso espírito atormentado

As tipologias são sempre redutoras, mas, como em tudo o que é complicado na vida, têm alguma capacidade de nos ajudar a pensar e, se não a compreender, a ler o que se passa no mundo. É que, por vezes, as coisas são tão difíceis de entender que só o simples facto de as nomearmos já nos faz avançar, como quando nos perdemos numa caminhada e, antes de tudo, precisamos de voltar a encontrar o Norte… A guerra das palavras também existe e os tempos não estão propícios à linguagem metafórica, mas digamos que exércitos de observadores se têm alinhado de um lado e do outro: otimistas versus pessimistas. No reino dos especialistas em relações internacionais, também temos assistido aos humanistas e aos maquiavélicos – os que privilegiam o legado dos valores da liberdade e do primado da lei, os primeiros; os que optam por ver o lado mais sombrio do conflito, os segundos.

Bombardeio na estação de Kramatorsk

Como bom otimista, em 1992, logo a seguir à dissolução da União Soviética, o cientista político americano Francis Fukuyama viu o fim da História nas democracias liberais do Ocidente. Agora, arriscou o pescoço (a expressão é do próprio) e já disse que “a Rússia caminha para a derrota definitiva na Ucrânia”. Pelo contrário, num artigo muito pessimista, publicado em março pela Bloomberg, o historiador britânico Niall Ferguson considera que “a Administração Biden está a cometer um erro colossal ao pensar que pode prolongar a guerra na Ucrânia, derrubar Putin e dizer à China para manter as suas mãos longe de Taiwan”. Em Fukuyama e em Ferguson residem, certamente, duas perspetivas diferentes, mas em nenhum dos lados do Atlântico alguém se atreve a dizer de que lado está a razão.

Na Europa, dois anos (e muitas vacinas administradas) depois, a incerteza sobre o desfecho da guerra faz parecer a incerteza provocada pela pandemia uma brincadeira de crianças. Não é comparável, mas Putin está obcecado com o passado imperial da Rússia enquanto o Ocidente se concentra nas analogias com a História. Já não estamos na Guerra Fria, mas há semelhanças: a ameaça nuclear regressou assim como o confronto entre potências e uma guerra travada por procuração. Desde a invasão, a resposta europeia tem sido unânime no apoio aos refugiados e na ajuda militar à Ucrânia, ainda que o Conselho Europeu não tenha conseguido entender-se sobre o embargo às exportações de gás e petróleo russos (tal como as tipologias, os números também ajudam a ler o mundo: são mil milhões de dólares por dia). Volodymyr Zelensky já dispensou a adesão à NATO e, em entrevista à The Economist, também disse que “a vitória é salvar tantas vidas quanto possível”: “O nosso território é importante, sim, mas em último caso é só território.”

Seis semanas após o início da guerra, quando os nossos espíritos são atormentados com as atrocidades cometidas nos arredores de Kiev, manter a perspetiva otimista é tão difícil quanto responder ao grande dilema: como acabar com a guerra sem entrar na guerra? Os europeus também merecem que os seus líderes adotem a clareza das palavras do Presidente ucraniano: a Europa mudou a 24 de fevereiro de 2022 como os EUA mudaram a 11 de setembro de 2001 – e nunca mais será a mesma.

Este filme, você já viu. No fim, depois do tiroteio, o bandido escapa

Boa parte dos senadores celebra discretamente mais uma chance de extrair vantagens do governo com o anúncio feito por Randolfe Rodrigues (Rede-AP) de que reuniu as assinaturas necessárias para protocolar o pedido de abertura de uma CPI destinada a investigar suspeitas de roubalheira no Ministério da Educação.

CPI é uma ótima oportunidade de fazer negócios, a maioria deles inconfessáveis. Governo algum admite ser alvo de uma CPI mesmo que ela não dê em nada, e quase sempre não dá. Por mais barulho que produza, seus relatórios finais acabam sendo esquecidos. De todo modo, barulho, e mais em ano eleitoral, causa estragos.

Bolsonaro autorizou o senador Ciro Nogueira (PP-PI), chefe da Casa Civil da presidência, a valer-se de qualquer tipo de arma para impedir a instalação da CPI dos Pastores Dourados. Embora provisório, o nome faz sentido. Bolsonaro deu passe livre a pastores evangélicos dentro do ministério. Glória a Deus!

Dois deles, Gilmar Santos e Arilton Mourão, cobraram propina a prefeitos interessados em obter para seus municípios recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. A propina poderia ser paga em dinheiro vivo, em quilos de ouro ou mediante a compra de exemplares de uma edição especial da Bíblia.


Para que uma CPI seja criada são necessárias 27 assinaturas de senadores. É o número mínimo. Randolfe disse que colheu as 27. O provável é que conte com mais assinaturas, guardadas em segredo. Nogueira não sabe quem assinou ou não. Na dúvida, começou a chamar senadores para conversar em seu gabinete.

O processo de convencimento dos senadores para que não assinem o requerimento de pedido de abertura da CPI, ou para que retirem suas assinaturas, passa, naturalmente, pela oferta de agrados – liberação do pagamento de emendas ao Orçamento, cargos nos diversos escalões do governo e a eterna gratidão de Bolsonaro.

Nogueira tem larga experiência no ramo. Já esteve dos dois lados do balcão. No momento, está do lado de dentro como fonte pagadora. Em 2014, quando estava do lado de fora, recebeu propina do grupo J&F para apoiar a reeleição da presidente Dilma Rousseff. Quem disse? A Polícia Federal, que o investigou.

Ele está sendo acusado de crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. As conclusões da investigação foram remetidas ao Supremo Tribunal Federal e deverão ser submetidas ao exame de Augusto Aras, Procurador-Geral da República, a quem caberá oferecer ou não a denúncia contra Nogueira.

A levar-se em conta a folha corrida de Aras, aposte que ele não oferecerá. Aras está no cargo para livrar a cara de Bolsonaro, dos filhos dele e de aliados importantes. É o caso de Nogueira. O relatório final da CPI da Covid-19 foi parar nas mãos de Aras. Deu no quê? Deu em nada até aqui. Nem dará.