quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Bolsonaro reescreve a história da ditadura

Cascudo é uma pancada dada na cabeça com os nós dos dedos. Quando menino, levei alguns aplicados pela tia Iracema, que se socorria deles para pôr um pouco de ordem entre seus 13 filhos.

Em entrevista ao canal do Youtube Cara a Tapa, Bolsonaro citou “cascudo, tapa ou afogamento” como “coisas erradas” que aconteceram durante os 21 anos da ditadura militar de 64.

Ignorou torturas, mortes e desaparecimentos. Verdade que o afogamento era uma técnica de tortura que consistia em mergulhar um preso num tonel de água até que ele se dispusesse a falar.


Mas não a qualificou de tortura, nem mesmo uma tortura branda. Não era branda. Era violenta como qualquer outro tipo de tortura. Como introduzir um rato vivo na vagina de uma presa. Aconteceu.

Os militares usaram o inexistente “perigo do comunismo” para suprimir a democracia. E da tortura para defender a democracia que simplesmente deixou de existir por um ato de força deles.

A Justiça Militar recebebeu 6.016 denúncias de tortura. Estimativas feitas depois apontam para 20 mil casos. Presos foram espancados, estrangulados e submetidos a choques elétricos.

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, cujos trabalhos foram concluídos em 2014, identificou 434 mortes e desaparecimentos de vítimas do regime militar.

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Bolsonaro já disse que o número de mortes deveria ter sido muito maior. A seu gosto, pelo menos umas 30 mil. E que seu ídolo foi o coronel Brilhante Ulstra, o único torturador condenado.

Na entrevista, contou que chegou à Câmara dos Deputados em 1991 e que havia por lá “um montão” de beneficiados pela lei da anistia. Descreveu-os assim para negar as torturas da ditadura:

“Apareceram os torturados com a pele mais lisa que a branca de neve. Uns diziam: ‘Ah, me quebraram os ossos todos’. Tira Raio-X do cara e vê se tem algum calo ósseo.”

A ex-presidente Dilma Rousseff foi presa pela ditadura. Ao dar seu voto no processo de impeachment para cassá-la, Bolsonaro exaltou Brilhante Ulstra que havia mandado torturá-la.

É esse sujeito que se diz cristão? Que foi se batizar nas águas do rio Jordão, em Israel, por um pastor evangélico que depois seria preso por corrupção? Que à caça de votos vai a passeatas por Jesus?

Diante da enxurrada de manifestos em defesa da democracia, ele negou que esteja se movimentando para dar um golpe:

“Alguém já viu eu me movimentando com generais por aí, conspirando?”

Evidente que sim. No momento, ele e seus generais tentam desacreditar as urnas eletrônicas e o sistema de apuração de votos para não reconhecer uma eventual derrota em outubro.

Ele ainda convocou o público a ir para o ato de 7 de setembro, mais um ensaio para o golpe:

“Vamos todos, no dia 7 de setembro, estar presentes em Copacabana, onde vamos dar um grito muito forte dizendo a quem pertence a nossa nação e o que nós queremos”.

A nação pertence a todos os brasileiros. Ao jurar a Constituição em sua cerimônia de posse, Bolsonaro afirmou que governaria para todos os brasileiros, não só para os que o elegeram.

O caráter à flor da pele

Mais em opiniões populares do que em textos, há algum consenso quanto à correspondência entre traços faciais de figuras do poder e caráter aberto ao desvario e à corrupção. Diz-se que as inclinações morais lhes transparecem nos rostos, ou, numa expressão corriqueira, que "estão na cara". Mas já houve para isso uma designação culta: fisiognomonia.

Trata-se nada mais nada menos de "leitura facial", ou seja, a hipótese, aceita no passado por muita gente sisuda, de que na estrutura corporal do indivíduo haveria legíveis marcas psicológicas e morais. Imperadores de antigas dinastias chinesas levavam tão a sério a leitura desses sinais que por eles escolhiam seus ministros.

O fenômeno chegou à modernidade. Shakespeare faz Lady MacBeth dizer ao marido: "Teu rosto, meu nobre, é um livro em que os homens podem ler coisas". O que se lia? "Falso, sangrento, enganador, luxurioso." A literatura romanesca é pródiga nas descrições em que as distintas partes corporais revelam características de comportamento, e não apenas visuais, mas táteis: até o medo exalaria um odor específico.

Em outros tempos de estudos jurídicos, ainda circulavam as ideias oitocentistas de Cesare Lombroso, para quem zigomas acentuados, bossas cranianas e maxilares protuberantes indicavam tendências criminosas.


A fisiognomonia sempre foi a ciência prática de caricaturistas. Agora ela tem chance de uma insólita reentrada na cena pública brasileira, em meio à crise ético-política que turva a legitimidade do poder.

Sumindo a credibilidade dos aparatos de Estado, vazam fisicamente os traços de caráter dos dirigentes.

A afecção visual pode ser tão concreta quanto a mental. Um traidor e golpista, agente das sombras, é figurado como vampiro, algo a se temer. Um delirante predador parlamentar, como ratazana voraz. Quando se põe lenha na fogueira do autocratismo, a contrapartida da imaginação coletiva é a representação por arquétipos críticos da encarnação do poder.

Livre para interpretar, o povo "lê", sentindo. Foi assim que um John Kennedy jovial, queimado de sol e maquiado venceu no famoso debate televisivo um Richard Nixon suado e sombrio (26/6/1960). Houve quem achasse melhor a fala de Nixon, mas a cara de Kennedy, imbatível, deu início à era da telegenia.

Entre nós, é hoje notável a força negativa do flagrante defeito: no dirigente que mente contra todas as evidências, o arquétipo da cara de pau despudorada traduz a falha moral. A troca da palavra pelo palavrão, do sorriso pelo deboche, se distorce à flor da pele como, no mamulengo nordestino, os nervos do mau-caráter se mostram à flor do pano. Isso marca ponto no placar de jogo do povo, no qual a fisiognomonia também chuta em gol.

Mentiu porque não o fez. Mente de novo porque não o fará se reeleito.